Capítulo 8
Aviso de gatilho
Abuso psicológico
Violência contra mulher
Menção a crises de ansiedade
Após me acalmar, na volta para casa, vi que foi uma decisão infeliz de Mari ao me levar ao pronto socorro. Foi coisa de minutos que eu poderia resolver em casa, mas no desespero ela deixou seu nervosismo levar a melhor resultando no mesmo papo furado de médicos que já haviam me visto naquele estado.
Alguns exames foram feitos, tranquilizantes para acalmar meu corpo, que era óbvio que eu não ia tomar, e um conselho de que eu procurasse ajuda psiquiátrica. O mesmo papo furado de sempre.Aquilo não ia resolver em nada e eu não iria me sentar de frente para uma pessoa e falar sobre meus problemas, fazer terapia então estava fora de cogitação.
Mas o que mais me incomodava era a preocupação que eu dava para meus amigos. Eu era uma péssima pessoa e uma péssima filha que nem ao menos para saber como minha mãe estava eu prestava.
Chegamos no apartamento e fiquei o tempo todo sentada no sofá, olhando para o céu que começava dar sinais de que o sol estava pronto para começar o dia, enquanto o meu estava pronto para terminar. Desde que cheguei ali, o que fazia um par de minutos, fiquei perguntando para Mari o que aconteceu com minha mãe, mas ela fez questão de aguardar o café ficar pronto e Emanuel esquentar o leite para mim.
Estava me sentindo uma criança onde os pais escondiam algo dela e aquilo me dava raiva, pois não queria ser tratada como se não fosse mentalmente capaz de segurar algo. Emanuel com certeza já sabia do que se tratava o assunto, visto que ele e Mari ficaram conversando durante um bom tempo no canto, apenas eu que estava no escuro, a parte mais interessada. Quando ambos sentaram de frente para mim já havia terminado meu leite e os observava com atenção. Cada sinal do corpo de meus amigos era como um alerta vermelho para mim, o assunto realmente era bem sério.
— Falem logo o que houve com minha mãe. — Falei irritada pelo silêncio desconfortável que estava se alongando por tempo demais.
— Pelo o que sua prima contou para Mari ela está com câncer. — Gostava da forma de Emanuel de ser direto quando queria, mas naquele momento aquele jeito de falar bateu forte em mim.
— Câncer. — A palavra saiu como um suspiro e respirei fundo tentando focar em um ponto específico da parede onde tinha uma rachadura enorme. Não podia recomeçar tudo de novo.
— Está em tratamento. O lado bom é que ela descobriu bem no início, ainda há chances. — Mari segurou minha mão, mas durou por segundos, pois me levantei irritada com todos, com aquele mundo injusto.
— Onde tem lado bom em se ter câncer Mari?
— Que as chances dela são maiores Nat. — Ela tentou conversar comigo, mas o pensamento de que ela iria morrer não saiu de minha mente.
Por que logo com ela? Porque não com meu pai que era uma pessoa horrível que com certeza ele era o culpado de tudo? Me senti mal por segundos, primeiramente por desejar mal a pessoa que ajudou a me criar e pondo a culpa nele mesmo que somente aquilo não estivesse em seu poder, mas eu tinha meus motivos, eu o odiava. Minha mãe poderia morrer sem saber o que era ser feliz e tudo porque aquele homem cruel fazia da vida dela um inferno.
— Eu tinha que estar ao lado dela, eu tenho que voltar. — Me ajoelhei no chão, naquele momento já não ligava mais se eles iriam ver minhas lágrimas.
— Ainda não Natasha. Você não é dona de si enquanto não completar a maioridade, se voltar agora seu pai ainda terá o domínio de sua vida. — Senti os braços de Mariana me abraçando e encostei meu corpo no seu em uma tentativa de apoio.
— Não vou conseguir ficar mais um mês longe dela Mari.
— Você pode ir ligando nesse meio tempo para sua prima em busca de notícias e ajeitando tudo por aqui para sua despedida.
— Não tenho cabeça para nada, enquanto eu não ver minha mãe não vou sossegar. — Limpei minhas lágrimas como dorso da mão. Eu só queria me encolher e sumir.
— Lisandra me disse que ela está bem, Nat, por favor, só tome a decisão certa antes de fazer besteira. — Assenti.
Sabia que no fundo ela tinha razão. Eu iria embora de qualquer jeito e não adiantava correr, seria como dar um tiro no pé, tudo o que eu conquistei iria por água abaixo. Mais um mês, só mais um mês. Repeti para mim mesma, aí sim eu poderia ver minha mãe.
🎀🏅
Os aniversários para mim sempre foram ligados a um dia inteiro fechada no quarto e orando para Deus, agradecendo por mais um ano de vida que ele me permitiu ter. Sem festas, sem comemorações, sem presentes. Eu não podia sair a não ser que fosse para a igreja, não podia ir ao cinema, pois segundo meu pai os filmes estavam cobertos por violências e o que as pessoas faziam dentro de salas escuras era indizível. Quando fui a primeira vez com meus amigos, vi que tive toda a minha infância e parte de minha adolescência perdida, não aproveitei cada filme que deixei de assistir, não por vontade minha, mas porque eu era impedida.
Houve uma vez que minha mãe resolveu me levar ao zoológico quando eu tinha dez anos, foi algo maravilhoso, mas o que aconteceu depois me deixou com a ideia se valeu mesmo a pena aquelas horas de diversão. Ao chegar em casa meu pai nos esperava. Naquele dia eu tive pena da minha mãe e pedi para ele me castigar ao invés dela, que não tinha feito por mal. Não via nada, ele não permitia, mas eu conseguia escutar os gemidos de dor no quarto, o choro incessante e sons que me dava enjoo apenas de lembrar. Aquele foi o último ano que saí, foi naquele ano que tive o primeiro contato com o cinto, as primeiras cicatrizes chegaram ali.
Eu não sabia o porquê ele tinha tanto ódio ao me castigar, sim ódio, eu via em seu olhar. Era como se eu fosse algo impuro, indigno de estar sobre o mesmo teto que ele. Não via amor, nunca vi. Nem mesmo ao tirar as melhores notas para tentar o agradar, nem mesmo ao me formar no ensino médio com apenas dezessete anos recém completados.
Quando fugi eu pensei que meus dezoito anos seriam marcados por uma grande comemoração qual não foi meu engano. Naquele momento eu me encontrava ali, sentada perto da janela do meu apartamento fumando o último cigarro do maço e bebendo direto do gargalo uma tequila barata. Não fiz questão de ir ao trabalho naquele dia, afinal seria o último em São Paulo, nem avisei a ninguém que ficaria em casa sentindo pena de mim mesma.
Balancei a cabeça para afastar aquelas lembranças terríveis e procurei focar na música de rock que tocava em um volume considerado alto por vizinhos irritantes. Bebi mais gole sentindo a ardência passando por minha língua e chegando ao meu organismo, paralisando minha mente para pensamentos ruins e me fazendo sentir muito melhor do que estava quando aquela garrafa se encontrava cheia.
A porta se abriu e olhei de soslaio para constatar que era Mari entrando, ela desligou o rádio e trancou a porta logo em seguida. O silêncio se fez presente antes abafado pelo som ensurdecedor de Red Hot Chili Peppers.
— Você tá péssima. Hoje é seu aniversário, amanhã vai embora, pretende mesmo passar o último dia conosco nessa vibe ruim? — Seu tom de voz era contrariado e com razão, eu estava insuportável.
— Só estou cansada de tudo. Não sei se me preparei o suficiente esses dias para voltar.
Pensei naquele mês fatídico onde os dias demoraram a passar e a noite meus pensamentos eram atormentados por pesadelos frequentes sobre meu pai e tudo o que sofri em suas mãos. Por mais que tentasse manter minhas crises bem longe com atividades em que minha mente ficasse ocupada ou praticando corrida, ainda sim não deixava de me sentir uma merda com o dia da minha volta para o Rio chegando.
— Desculpe, queria estar melhor, mas não sei se consigo.
— Consegue sim, vamos tomar um banho, sair e comer alguma coisa. Só nós. — Ela pegou em minha mãos e beijou. — Distrair a sua mente vai te fazer se sentir melhor.
Por mais que eu não quisesse ir para lugar nenhum e meu corpo não se encontrasse em condições, iria tentar somente pelo olhar esperançoso que Mari tinha em seu rosto.
— Tudo bem. — Levantei e senti a sala rodando. Realmente a bebida fez seu efeito.
— Vou fazer um café bem forte e amargo para você. — Se levantou também e me ajudou a chegar no banheiro. — Lava esse cabelo, o efeito da bebida vai se dissipar um pouco quando o fizer.
— Acho que preciso retocar o verde do cabelo. — Peguei uma mecha e analisei detidamente a ponta.
— Pensei que ia voltar ao tom normal.
— Não é só porque voltarei a ser Ana que vou voltar a minha vida de antes. —Resmunguei.
— Não pode continuar usando sua identidade falsa no Rio Ana. — Mari falava como se eu fosse uma criança.
— Eu sei disso, mas Natasha faz parte de mim e isso não vai mudar.
Ana só era um nome pra mim, aquela vida que eu tinha antes não existia mais. Por mais que eu me apresentasse com meu nome verdadeiro, a personalidade de Natasha era algo que não ia mudar. Estava marcada em mim assim como os desenhos que pintavam meu corpo.
— Assim é que se fala. — Ela me abraçou e logo em seguida me empurrou para o banheiro. Sim, precisava de um banho, pois fedia a cigarros e bebidas baratas.
🎀🏅
Emanuel dirigia enquanto Mari e eu estávamos no banco de trás do seu carro vermelho modelo antigo. Uma música suave doce tocava baixinho e cantávamos junto com ela.
A noite estava fria, mas dentro do veículo estava quente, pois as janelas estavam fechadas. O casaco preto que eu usava juntamente com minhas calças com rasgos nos joelhos também ajudava muito no processo de me esquentar. Quando Mari me chamou para sair com ela e Emanuel de início eu achei uma grande perda de tempo, afinal, eu estava na foça e só queria ficar sozinha, mas conforme os minutos naquele espaço fechado iam se passando minha mente conseguiu dispersar os pensamentos ruins por alguns instantes e até dei risadas por coisas bobas.
Paramos o carro em um drive thru e pedimos vários tipos de lanche com muita gordura e doces de sobremesa. Paramos em um local sossegado e tranquilo, e de portas abertas começamos a comer. Era algo simples, mas para mim significava muito, pois eu teria algo para lembrar quando fosse embora no dia seguinte.
— Sabe, a primeira coisa que deveria fazer é tentar encontrar um trabalho, estudar e tentar morar sozinha. — A voz de Emanuel saiu abafada por sua boca estar cheia de batatas fritas.
— Eu quero primeiro ver como minha mãe está, depois eu vejo o que faço. — Olhei para o céu seguindo as estrelas pontilhadas em meio aquela imensidão.
— Eu fico tão feliz. Sei que você odeia aquele lugar, mas voltar pode significar um novo começo. — Olhei de relance para Mari e torci os lábios. Ela acreditava muito mais no lado positivo na mesma medida que eu tinha em ver o lado negativo.
— Só prometa não nos esquecer em meio a sua antiga vida. — Emanuel tocou o seu ombro com o meu em uma atitude descontraída.
— Não vou. Se pudesse nem colocaria mais meus pés no Rio de Janeiro, só que não tenho escolha. Minha mãe precisa de mim. — Mari passou o braço por meu ombro e apontou para um lugar bem a frente de onde estávamos.
Era pequeno e sua fachada impressionante com tons de preto e verde neon, com certeza o dono do lugar queria chamar atenção em meio aqueles outros estabelecimentos tão sem graça. Um estúdio de tatuagem logo ali, destoava do que era certo.
— Vamos fazer mais uma.
— Logo agora Mari? Não terminei meu hambúrguer. — Emanuel bebeu mais um gole de refrigerante fazendo aquele barulho irritante com o canudo de quando o líquido da lata já estava no fim.
— Tatuagem da amizade. Merecemos uma. — Ela colocou o cabelo curto por trás das orelhas pequenas e olhou para mim em busca de apoio. Sabia que seria duas contra um e Emanuel teria que ceder. Não precisava que ela me pedisse duas vezes, pois quando ela mencionou a ideia já havia me cativado. Levantei em um impulso e Emanuel nos observava como se fossemos duas loucas.
— Merda. — Ele revirou os olhos e se levantou também. Fechamos as portas do carro e atravessamos a rua não demorando muito para entrar no pequeno estúdio.
Escolher uma tatuagem de amizade foi difícil, pois eram três opiniões divergentes, mas conseguimos, a perfeita, igual, uma mão segurando uma taça de vinho. O local ideal para Emanuel foi no seu braço, para Mari no pulso e o meu na parte de trás do pescoço. Fazer uma nova tatuagem sempre era um misto de frio na barriga com animação. A dor, o barulho da agulha contra a minha pele e a pequena queimação eram uma distração bem vinda depois do mês de merda que eu tive. Aquele sim era o final de um aniversário que tinha começado ruim. Uma marca para lembrar dos meus únicos e verdadeiros amigos, os que eu iria carregar para onde eu fosse e jamais esquecer.
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