Capítulo 3
Acordei no dia seguinte com o celular tocando e com um rastro de baba escorrendo pela minha bochecha. Muitos diziam que eu era linda e com certeza deveria acordar como um anjo, mas era óbvio que nunca me viram acordar. Para ser um demônio só faltava o chifre. Meus cabelos estavam na mais completa desordem e minhas roupas fora do lugar. De linda aquela imagem não tinha nada.
Peguei o celular e esfreguei meus olhos que pareciam estar grudados em meu rosto. Quando vi quem estava me ligando acordei de imediato e me pus em alerta. Lisandra não costumava ligar muito, pois tinha medo de alguém escutar nossa conversa e contar tudo para meu pai. Por um tempo pensei que ela tinha medo por conta da minha tia, mas quando a irmã da minha mãe pegou o telefone e disse que estava morrendo de saudades respirei aliviada ao saber que minha localização estaria segura.
Elaine odiava meu pai e o que ele fazia com minha mãe, mas como cabia a minha progenitora decidir o que era melhor para ela, não se metia, por mais que lhe doesse. Fiquei feliz quando ela disse que não julgava a minha decisão de tomar um rumo na minha vida e que ficava sabendo por Lisandra o que eu andava fazendo em São Paulo. Minha prima amava ficar por dentro dos assuntos, escutando minhas desventuras pelos municípios paulistas e saídas noturnas, era algo que nunca imaginou para si e meses atrás eu me via em Lisandra. Ela vivia por mim tudo que não tinha coragem para fazer.
Meus olhos ainda estavam focados no celular que brilhava e vibrava em minha mão. O apertei e minha mente gritava para que eu atendesse logo e não fosse tão covarde. Era por aquele motivo que eu só conseguia manter Emanuel e Mariana perto de mim, somente eles poderiam ver meu lado vulnerável que só era mostrado em momentos íntimos. Eu me recusava a mostrar minha fraqueza para quem quer que fosse. Tomei coragem e deslizei o ícone verde antes que a ligação caísse na caixa postal, mas conhecendo Lisandra como eu conhecia eu duvidava muito que ela fosse desistir por eu não estar atendendo. Não seria a primeira vez.
— Oi. — Sussurrei mal reconhecendo a minha voz. Detestava aquele tipo de ligações de Lisandra que vinham sem uma mensagem de aviso.
— Pensei que estava dormindo, demorou muito para atender. — Sua voz estava urgente e senti a palma das minhas mãos começarem a suar.
— E estava, mas já despertei. O que houve Lisandra? Tá me deixando nervosa.
— Não é nada, só liguei pra te contar que seu pai está te procurando com mais afinco. Parece que com a proximidade de seu aniversário de dezoito anos ele sente urgência em te encontrar o quanto antes.
— Porque sabe que vai perder o controle sobre mim. Se me encontrar antes pode me prender em casa. — mesmo não vendo Lisandra eu sabia que ela assentiu.
— Ele estendeu as buscas. Está usando a verba destinada a trabalhos sociais para isso e usa a desculpa que sente sua falta. — Tive vontade de vomitar ao escutar aquilo e só queria desligar a ligação e voltar para minha nova vida. Fugir do problema que meu pai representava.
— Ele é um filho da puta. — Escutei um suspiro audível de Lisandra, mas ignorei. Ela realmente não tinha se acostumado ainda com minha linguagem chula.
— Desculpa ligar logo de manhã te dando más notícias, mas você tinha que saber.
— Tudo bem Lisa. Eu precisava saber mesmo. Te amo.
— Também te amo. Quando precisar é só voltar.
— Eu nunca vou voltar Lisa, isso você pode ter certeza.
— As portas da minha casa estão abertas de qualquer forma, bom é isso que minha mãe fala.
— Lisa... — Titubeei por alguns instantes, mas respirei fundo e tomei a coragem de perguntar.
— Sim.
— Como está minha mãe? — Ela ficou em silêncio por alguns segundos, tantos que tive que olhar para o visor do celular, pois pensei que a ligação havia caído.
— Bem, está passando por uma fase ruim, mas nada com que deva se preocupar.
— Como assim fase ruim? — Perguntei em pânico ao pensar em minha mãe passando por algo péssimo e ter como companhia aquele homem imundo.
— Eu tenho que desligar, depois nos falamos melhor. — Quis lhe bombardear de perguntas, mas sabia que não iria conseguir nada de Lisa naquele momento.
— Manda um beijo bem grande para minha tia.
— Eu e você sempre. — Ela proferiu.
— Por toda vida e além. — Completei a frase, que falávamos desde que éramos crianças, e desligamos.
Coloquei dois dedos na ponte do nariz e senti uma dor de cabeça começando a se formar nela. Tentei me acalmar antes de sair daquele quarto. Por sorte, Mari estava dormindo e não escutou nada, aquele era um problema meu e já estava cansada de a preocupar como eu fazia desde que eu cheguei ali.
Já bastava os meus pesadelos que a acordavam pela madrugada e meus ataques de ansiedade, aquilo já era demais.
Passei a mão pelo meu rosto e respirei fundo. O médico me ensinou quando fui parar no hospital, expira, inspira, expira, inspira. Senti meu coração se acalmando, pois coloquei um pensamento de que meu pai estava longe e não podia me encontrar e se caso o fizesse ele não tinha poder sobre mim. Era aquilo que eu queria acreditar, mas lá no fundo eu sabia que meu pensamento não tinha fundamento e era aquilo que me dava medo.
🏅🎀
Passei o dia todo mal no trabalho a ponto de cada hora de merda se tornar pior. Como se não bastasse as péssimas notícias pela manhã, à tarde eu queimei dois ovos e a cliente reclamou do péssimo serviço. Foi somente pela minha mente gritando que eu estaria desempregada se caso eu a mandasse tomar no cu, então fiquei na minha e engoli em seco cada insulto dela. Mas não parou por aí, estava tão dispersa que deixei cair pingos de café super quente na calça de um cliente. Ele pediu para chamar o dono para falar que o serviço naquela espelunca era ridículo. Foi naquele momento que eu vi que o era ruim poderia piorar. Eu perdi minha paciência e disse que a peruca que ele usava que era ridícula. O senhor Estevão quase deu um ataque quando eu respondi ao cliente.
Seu rosto ficou tão vermelho como um tomate e uma veia pulsava sem parar indicando o quão raivoso ele estava. Por alguns segundos eu desejei que ele fosse uma bomba e se explodisse de vez, mas para a minha surpresa ele me mandou para casa o que era dez vezes mais estranho. Minha teoria era de que no dia seguinte, quando eu fosse para o estabelecimento, eu estaria desempregada, mas era aguardar pra ver.
E como se não bastasse a minha falta de sorte eu não levei um guarda chuva e muito menos um casaco. Na minha pressa de sair de casa eu só me dei conta de que o tempo estava fechado quando cheguei no café e Marilda disse que o jornal informou que iria chover muito. Dito e feito, normalmente a boca maldita de Marilda sempre funcionava para mencionar o pior, a bruxa velha nunca errava quando o assunto era previsão do tempo. Óbvio, ela não tinha mais o que fazer além de tomar conta da vida dos outros, ver novelas e assistir o jornal das oito, ou seja, ela estava sempre bem informada em todas as áreas possíveis, seja através de fofocas alheias como também notícias pelo mundo.
Como dito pela bruxa velha, parecia que o céu estava desabando, mais especificamente, na minha cabeça, pois eu era a única imbecil que não estava de guarda chuva ou dentro de algum veículo que pudesse me levar para os lugares e me manter seca. Naquele momento eu estava xingando a todos, a Estevão que não dava passagem regularmente para que eu fosse trabalhar, a Marilda com aquele sotaque paulista acentuado que me dava nos nervos só pelo fato de ser ela falando e a mim mesma por ser tão idiota e não manter um guarda chuva dentro da mochila.
Quando eu cheguei em casa para a minha sorte estava vazia. Não aguentaria dar explicações para Mari ou Emanuel sobre meus infortúnios.
Tirei meus tênis e senti um arrepio percorrer meu corpo por conta da meia úmida e meus pés gelados. Fui tirando cada peça de roupa, que parecia grudar em mim como uma segunda pele, e fiz uma pilha jogando tudo dentro da máquina de lavar.
Por sorte mantive meu celular dentro da mochila quando vi o temporal, senão corria o risco de o perder também. Só torcia para que ele não tivesse molhado, pois minha mochila estava ensopada. Quando me sentei sobre minhas pernas no canto da cozinha onde a máquina ficava e fui colocando tudo pra fora da mochila, me dando conta de que estava tudo molhado, eu me lembrava de cada palavra de Daniel e Mari sobre eu arrumar algo melhor. Eles estavam certos e o fato de eu estar errada me dava vontade de quebrar alguma coisa.
Peguei meu celular e vi com alegria que ele estava intacto. Levantei o punho no ar para comemorar.
— Chupa essa, merda de carma. — Falei em alto e bom tom, não me importando se alguém chegasse ali e visse a cômica cena.
Era super normal uma mulher de quase dezoito anos estar sentada em um canto da cozinha somente de peças íntimas com um celular na mão. Sim, super normal. Minha vontade era de ficar mais um tempo ali sentada pensando na minha merda de vida, mas o chão estava muito frio e a janela da cozinha estava aberta. De duas uma eu pegaria um resfriado ou alguém do bloco vizinho poderia me ver daquela forma e notificar o síndico. Não seria a primeira vez que aquilo acontecia, mas o pior seria se fosse algum morador novo em um dos apartamentos vizinhos vendo aquela cena e tirasse fotos minhas para vender na internet. Imagina só que desgraça fazer isso sem que eu ganhe nada em cima?
Levantei usando as palmas das mãos e me pus de pé. Meus cabelos estavam horríveis, chuva não fazia bem para eles pareciam alface molhado, um horror. Caminhei até o banheiro e ajustei a temperatura do chuveiro no máximo de quente possível, se eu tivesse que sair torrada dali não ligava contanto que me esquentasse estava tudo bem. Demorei mais tempo no banho que imaginei e provavelmente estava contribuindo de alguma forma para a destruição do planeta, mas saí de lá limpinha com os cabelos lavados e sem nenhum pingo de água suja da rua.
Com meus fios enrolados na toalha fui até o quarto e coloquei um pijama de mangas compridas, calça e minhas pantufas de urso panda. Decidi que estava no humor para cozinhar e após uma refeição terrível no dia anterior, Emanuel e eu merecíamos um belo jantar depois de ter nossos estômagos destruídos. Poderia parecer estranho, e muitas pessoas gostavam de cozinhar apenas se estivessem no bom humor, mas comigo tudo funcionava diferente. Cada refeição feita nos meus piores dias saía com um gosto maravilhoso.
Procurei não pensar em nada enquanto cozinhava, não queria correr risco das palavras de Lisandra sobre meu pai infiltraem em meu cérebro. Não podia negar que eles ficaram gravadas na minha cabeça e por mais que eu tentasse esquecer não conseguia.
Bati o alho com mais força que o necessário quando tudo o que eu queria era que a cara do meu pai estivesse ali. Uma lágrima escapou do meu olho e a limpei com força, a raiva tomando conta de mim. Já estava cansada de chorar pelas mesmas coisas, por não poder ter uma vida normal e tudo por causa de um homem que deveria me prover amor. A única coisa que ele me deu foi o ensinamento de que aquele sentimento era doloroso demais.
— Cozinhando hein. Por que não me esperou? — Pulei de susto ao ver Mari parada na soleira com as mãos na cintura.
— Me assustou Mari, parece assombração.
— Te chamei assim que entrei, mas parecia estar no mundo da lua.
— Estava mesmo com a cabeça em outro lugar. — Admito tensa. Ela se aproximou de mim e levantou meu rosto me analisando melhor.
— Estava chorando? — Perguntou afetuosamente.
— Não, por que estaria? — Me virei rapidamente e peguei uma cebola começando a descascar com agilidade.
— Isso que preciso saber Ana.
— Não estou. Só estava cortando a cebola, foi por isso. — Ela se aproximou de mim e olhou o balcão já me pegando na mentira, pois a primeira que estava cortando era aquela.
— Sei. — Ela colocou o braço em meus ombros e me retrai sem pensar para segundos depois relaxar. — Você sabe que pode contar comigo né, não precisa segurar esse fardo sozinha. — Assenti em silêncio e a vi se afastando murmurando algo sobre tomar banho.
Continuei a picar a cebola mais rápido. Eu queria muito poder contar tudo o que me afligia para Mari, Emanuel, qualquer pessoa, mas era fraca demais para desabafar. Além do mais, aquilo era só meu. Mesmo rodeada de pessoas, já estava acostumada a resolver tudo sozinha.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro