Capítulo IX - Pintura Rubro Humana
Glendalough é um lugar esplêndido.
Depois de muitas, muitas horas de viagem pelas paisagens verdejantes da Irlanda, com o vento contra meu rosto e o coração dissipando toda a preocupação nas batidas cheias de adrenalina enquanto eu voava em cima da moto, eu sentia que finalmente conseguia respirar.
Uma ironia perto dos lugares de tirar o fôlego pelos quais passei. No fim parei em Glendalough, as ruínas de um antigo e famoso monastério no Condado Wiclow onde também ficam as Montanhas Wiclow e eu digo com toda a certeza do mundo que nunca vi algo tão belo quanto esta paisagem.
É tão verde que parece irreal. O ar que preenche os pulmões entra limpando as toxidades do dia a dia e deixando a alma em paz. A visão se alterna entre serras campeadas e montanhas de floresta, ambos brilhando sob o sol poente e fazendo valer o nome da Irlanda de Ilha Esmeralda.
Desci da moto me jogando no chão e rolando no meio do verde admirando o céu azul.
Bom, nem tão azul assim. Ao que parece as nuvens em Dublin estavam se deslocando e eu conseguia avistá-las emergindo no horizonte. Não demoraria pra começar a chover.
Um vento úmido confirmou meus pensamentos e me pus a continuar meu passeio enquanto era permitido pela mãe Natureza. Em meu telefone mensagens piscavam urgente, e devidamente ignoradas foram jogadas no bolso da jaqueta.
Não existia nada além de mim e as montanhas ao redor. Nenhum problema invadiria minha cabeça nem pertubaria minha paz. Eu precisava e eu iria ficar sozinha pelo resto daquele dia. Iria dormir em uma pousada no condado e voltar assim que a chuva passasse na madrugada.
Então eu percebi que eu realmente estava sozinha. As ruínas eram um ponto turístico movimentado e no entanto não se ouvia ruído se não dos pássaros ao longe, o que dava um ar abandonado e esquecido ao local. Mas também, quem sairia em um final de domingo anunciando tempestade pra fazer passeio turístico?
Sorte a minha que a estrada vazia e a velocidade alta me deram duas horas de adiantamento e consegui chegar antes de anoitecer. Dez horas de viagem pra ir e dez pra voltar, fiz a primeira em oito e espero fazer o mesmo na volta.
Observando a torre alta de pedra me lembrei dos livros que costumava ler quando criança. Minha mãe era fascinada nos contos de dragões e princesas sequestradas trancadas em locais iguais a aquele. Era como estar dentro do livro e eu podia imaginar as escamas vermelhas do réptil a circundar sua propriedade.
Rindo me afastei com as lembranças das noites de histórias onde minha mãe dava voz a filha do rei e meu pai ao príncipe e ao dragão. De vez em quando me colocavam como a princesa e meu pai corria atrás de mim pela casa pra " me sequestrar" e colocar em cima da mesa da cozinha onde mamãe o enfrentava com uma colher de pau.
Acabávamos em ataques de cócegas nas almofadas do sofá. Foram os melhores anos da minha vida, sem preocupações, sem mudanças de puberdade, sem responsabilidade e principalmente, sem pesadelo.
Afastei a última palavra da mente concentrada em minha paz momentânea. Continuei caminhando por entre as ruínas, absorta em boas memórias e sentimentos, e naquele momento eu me sentia aquela garotinha de seis anos outra vez, rodando de braços abertos contra o vento aproveitando a mais completa solidão e solitude extremamente necessárias.
Então passei em frente ao moinho em sua estrutura de madeira escura tão destacada em meio ao verde e ao cinza das pedras. Corri para aproveitar os resquícios de luz solar antes de seguir pra uma pensão nos Condados e descansar um pouco. Pela primeira vez meu nariz captou um cheiro diferente da brisa chuvosa ou das folhas das árvores. Como uma lembrança distante de tão imersa em mim mesma que eu estava.
A porta do moinho estava encostada e a abri com rangido longo e estalado. As madeiras do piso também rangeram sob meus pés e quase dei meia volta com medo de quebrar o lugar de tão frágil que parecia.
- Só espero que não tenha câmeras por que se alguma coisa quebrar eu posso sair correndo e fingir que não fui eu.
O odor ficou mais forte e minha cabeça entrou no estado de alerta do qual eu lutei tanto pra fugir. Então subi as escadas lentamente. Um, dois, três passos relutantes. A respiração entrecortada e o coração acelerado, algo apitava tão forte em um instinto de fuga que eu estava cada vez mais aflita.
O vento ficou mais forte gritando que quem estivesse fora de casa se encerrasse na segurança do lar, e bateu as janelas violentamente causando um estrondo assustador. Antes que eu entrasse em pane acabei de subir as escadas em um ímpeto de burrice - por que foi tudo menos coragem - e um grito só não me escapou da garganta porque morreu na batida falha do coração.
Um relâmpago iluminou o cenário tão friamente como o reflexo do gume de uma faca. Havia um motivo pras ruínas estarem vazias.
Era porque todos estavam ali.
O cheiro forte e metálico que eu tanto ignorei eram das dezenas de corpos estirados ou caídos por cima dos ossos no chão de madeira. Rostos esquálidos e olhos sem vida encaravam o vazio no meio de poças de sangue e moscas que zuniam entre os cadáveres rasgados e mutilados cada um de uma forma diferente. Formas sem braço ou perna, crânios sem os globos oculares, um estava a plena carne e músculos completamente esfolado.
Cada um teve uma morte horrenda e particular e depois foram largados por cima de suas câmeras fotográficas e do próprio líquido vital espalhado pelo chão, pelas paredes, por todo canto. Haviam corpos até no próprio moinho. Todos estáticos macabramente como uma pintura humana.
Meu corpo congelou e não conseguia sair do lugar. Paralisada até mesmo pra gritar de horror. Eu me sentia dentro do próprio poço daquele sonho maldito e estava desesperada, mas impossibilitada de reação. Uma gota vermelha caiu sobre minha testa e reunindo forças olhei pra cima, encontrando mais um dos mortos pendurado por estacas e com a mandíbula quebrada.
Então outro raio iluminou o cenário tenebroso e a ventania aumentou junto com a chuva que caiu em peso. Finalmente consegui voltar a mim e sair correndo em disparada. No entanto quando passei a porta o vento não era só vento.
No meio da tempestade, com o cabelo e roupas já encharcados escorrendo corpo abaixo e as gotas grossas de chuva pinicando os olhos, o desespero chutou a porta da minha sanidade e invadiu por completo.
Eu conhecia aquela sensação. E eu conhecia aquela presença que eu estava sentindo.
E eu não estava dormindo.
Elas estavam ali. Fora do mundo dos sonhos, ao meu redor ocultas no escuro. Eu sentia seus olhos sobre mim eu sentia sua energia se avultando sobre meu corpo.
Eu sentia medo.
Então as vozes sussurrantes também apareceram e começaram a cruzar por meus ouvidos na tentativa de me enlouquecer. Eu corri em disparada sem saber pra onde completamente em pânico, eu não podia deixar eles me pegarem eu não podia. Com as mãos nos ouvidos em uma vã tentativa de me proteger delas meus pés escorregaram nas gramíneas do chão derrapante.
Mas as vozes me seguiam em sussurros desnorteantes e quando dei por mim o céu escuro fora tomado por folhas de árvores que balançavam com violência umas contras as outras, meus sapatos respingando lama por onde passavam e minha cabeça em frenesi.
Então os talhos em minha pele começaram e com eles meus gritos de dor. O sangue era diluído em aquarelas rodopiantes a medida que mais cortes profundos iam sendo feitos e minha garganta se feria com esforço de gritar. Então pela primeira vez vi meus agressores até o momento invisíveis. As carrancas esbranquiçadas de bocas abertas e cheias de dentes na frente de uma névoa fantasmagórica. Sem tronco ou pernas voavam de um lado a outro esticando os braços com mãos de garras enormes que cruzavam por mim e arrancavam pele e carne. Eram elas que sussurravam.
A escuridão só era interrompida pelos flashes brilhantes dos raios que caíam vorazes, na correria trombei em mais árvores do que poderia contar. Eu continuava a fugir em desespero tateando ao redor pra amaciar o baque certo com os troncos imóveis. Ainda haviam outros. Haviam eles. Aqueles que eu conhecia bem o rosto. Que conheci da primeira vez que cedi e me deixei ser arrastada.
E eu não ia passar por aquilo outra vez.
Em determinado momento meus pés tropeçaram em uma raiz alta na lama e eu caí rolando pelo chão. Escorregando me levantei sentindo mais talhos sendo feitos em minhas costas. Já sem fôlego sentia meu corpo querendo se entregar, meu coração estava cansado e meus pulmões exaltos, minhas narinas queimavam pelo exercício e respiração desregulada e um lugar em minha barriga doía.
Era como em meu pesadelo. Só que não havia poço de fluídos. E eu estava acordada.
Já sem forças pra continuar, sem voz pra gritar e sanidade pra resistir apenas me larguei de joelhos no meio das folhas e da lama. Era isso. Eu estava derrotada e a mercê daquelas criaturas. Quem sabe elas não finalmente terminavam o serviço que tanto queriam. Encolhida continuava a ser retalhada e as vozes a lotar meus pensamentos, mas a fraqueza impedia de fazer qualquer coisa que não fosse chorar em silêncio.
Então em mais um clarão de relâmpago aquele gralhar tão conhecido ecoou em meio as árvores. Imponente, poderoso, soando como milhões de aves de uma só vez, assim como em meu sonho. Os sussurros gritaram em agonia e de repente desapareceram se dissipando no ar como fumaça, as presenças malignas que ficavam esperando os sussurros terminarem pra começar a brincar comigo eu senti aos poucos se afastando. A atmosfera de horror se desfez no vento deixando apenas a chuva forte e a ventania cheia de raios.
Foi então que percebi que havia parado em uma clareira, em frente a uma casa isolada, e no topo do telhado lá estava uma gralha negra sacudindo as penas das gotículas d água. Rastejando e gemendo tentei ir na direção do casebre, mas meu corpo já tinha desistido fazia tempo.
Apenas ouvi a porta rangendo, um brilho de lamparina ser aceso e os ruídos de passos na lama antes de me entregar a uma semiconciência dormente.
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