Capítulo 3 - Do Que São Feitos Os Amigos
Não que Marcela Maria Farias se considere a garota mais atraente do universo, mas ela queria entender como Thais sempre conseguiu ter tantos garotos correndo atrás dela por metro quadrado enquanto o máximo que chegou de um foi no ano passado, quando trocou mensagens com Igor, e Lucas ficou três dias sem falar com ela.
Lucas e Igor, irmãos, não se odeiam de verdade, mas todos sabem que Igor carrega uma grande fama de partir corações de garotas mais novas. Marcela nunca descobriu se era ciúmes ou preocupação, afinal, Carlos também não gostou nem um pouco quando ficou sabendo. Seu irmão mais velho e Igor faziam parte do mesmo grupo de amigos no primeiro ano, antes de Igor falar que só ficou com Thais para ver se os peitos dela eram aquilo tudo que seu decote mostrava e Carlos socou a cara dele na frente da escola inteira. Igor já teria se formado se não tivesse repetido o segundo ano. Marcela fica feliz de Thais odiar mais alguém além de Lucas: Igor.
Mas Marcela fica irada pelo motivo primordial de ninguém se aproximar dela ser por acharem que namora com Lucas, ou um dia vai namorar. Já perdeu as contas de quantas vezes teve que falar que não são um casal e pararem de colocar os dois juntos no banheiro por cinco minutos nas brincadeiras, senão ela nunca vai beijar ninguém de verdade.
— Uno! — grita Sérgio, já é a terceira rodada que ganha e todos estão de saco cheio. Marcela joga uma carta que pede a Lucas que compre mais quatro.
— Azul — diz, com sua carta verde na mão. — E uno — encara Sérgio, que viu sua carta. Sérgio tem uma bandana vermelha na testa e olha para Lucas comprando as cartas com raiva.
Daiana está ao lado de Lucas e o encara antes de trocar a cor do jogo para verde e fazer Sérgio gritar com as mãos para o alto.
— Ganhei. — Aponta para Marcela. — Quem é o Deus do uno?
A garota faz uma careta e se levanta do gramado da quadra de futebol vazia na qual estão sentados. Todos os intervalos eles se sentam naquele lugar e Giulia divide um bis depois do jogo, mas ela não veio à escola. De novo.
— Você sabe da Giu? — pergunta Marcela em direção a Sérgio, que dá os ombros e se levanta. — Ela também não me responde. — Olha para Lucas, ele está entretido elogiando o cachecol vinho de Daiana. Marcela já percebeu que essa é a cor favorita da outra. — Lucas! — O garoto olha. Contra o sol da manhã os olhos dele parecem mais claros, quase completamente amarelos. — Quer ir lá na casa dela hoje? São quase quatro dias, alguma coisa tá muito errada.
— Os pais dela se separaram, é claro que tem alguma coisa errada, Ma — diz Sérgio e depois começa a subir os degraus enormes da escada até o bebedouro. Lucas cruza as pernas cobertas com a calça jeans azul.
— A última vez que falei com ela, a Giu tava bem triste, tá se recuperando — argumenta Lucas, pegando o celular na mão e mostrando as últimas mensagens.
Marcela respira fundo e, tentando entender o que Lucas disse, olha para Daiana. A garota nova olha para cima enquanto tem seu corpo aquecido e sua pele brilha contra o sol. Até o momento Marcela não sabe muito sobre ela. Só que Daiana veio do Piauí, o que não era difícil de saber pelo sotaque acentuado, e mora com a mãe no interior depois que seu pai se casou de novo e foi para fora do país. Daiana não fala muito pessoalmente, mas troca algumas mensagens no grupo e manda posts de desenhos legais para Marcela à noite.
— Tudo bem? — pergunta Daiana e Marcela percebe que a encara por tempo demais. — Seu cabelo é preto mesmo?
— Hum, é. — Passa a mão nos fios brilhantes e sorri. — São iguais aos do meu pai.
— São bonitos e ficam mais destacados sem o moletom preto — fala sorrindo e Marcela, automaticamente, perde o seu riso.
É o segundo dia que vem com o novo agasalho, azul, para a escola e ninguém deixou de falar o quando ele destaca seu cabelo e sua pele bem cuidada. Marcela não responde Daiana.
— Vou na casa dela — decide, ignorando o olhar de Lucas.
— Não iria se fosse você — fala Daiana, ainda a olhando. — Se ela quer espaço, deixe ela ter.
Marcela balança a cabeça negativamente, fala:
— Você nem conhece a Giu, não sabe do que está falando. — Enfiando as mãos no bolso e indo encontrar Sérgio no bebedouro. O garoto ergue as sobrancelhas e depois olha para o lado, onde Lucas tenta flertar com a garota no sol.
— O que foi? — pergunta o amigo, encarando-a e retirando a garrafa da máquina de água. Da um gole e continua: — Marcela, está com ciúmes?
— Ela já se acha parte do grupo. —Olha Sérgio e toma a garrafa de sua mão. — Não acho que escolhemos bem, Daiana parece uma das garotas do grupo da Thais.
Ele olha para trás, vendo as sete garotas sentadas na sombra enquanto bebem suco de latinha, que pensam ser saudável, e comentam sobre a vida dos outros sem se incomodar em apontar para Igor, que tira a blusa de frio e exibe seus braços malhados para as meninas mais novas. É fácil se apaixonar por ele só pela imagem, mas o encanto acaba no instante que ele abre aquela boca bem delimitada e fala sobre pornô com qualquer pessoa. Marcela devolve a garrafa verde.
— Não, ela não é como as garotas da Thais — argumenta ele.
— Olha a roupa! — O padrão de vestimenta de Daiana é bem semelhante aos dela, principalmente com o tênis de salto que Marcela considera um pecado. — E Daiana nem conhece a Giulia, mas já acha que sabe alguma coisa sobre ela.
— Como assim? — Começam a andar a passos de tartaruga até os outros dois.
— Odeio quando querem conhecer meus melhores amigos melhor do que eu — sussurra.
Daiana e Lucas estão rindo alto quando os dois chegam e o sinal da escola indica o fim do intervalo. Lucas retira a mão que tinha colocado sobre a calça jeans preta de Daiana e ambos se levantam. Enquanto caminham de volta às salas de aula, Marcela pega o celular e vê as mensagens que recebeu da outra amiga, mas não viu. Giulia não tinha respondido por quatro dias, mas, de repente, mandou vinte mensagens, ela fica preocupada.
— Ela me respondeu — fala Sérgio enquanto Marcela encara o próprio telefone e Lucas tira o dele do bolso. Os três leem suas mensagens ao mesmo tempo e param quando veem a última.
— Convento? — grita Marcela, esticando o celular para os outros. — Ela tá em um convento?
Todos se encaram confusos por alguns segundos antes de Daiana falar:
— É tão ruim assim?
Marcela morde o lábio inferior. Giulia tem pais muito religiosos, ela ralava para ter permissão até para ir jogar RPG na casa de Marcela às quintas. Giulia odeia religião. Um convento é tão ruim assim.
— São seis meses — diz Sérgio. — Ela me respondeu, olha, os pais dela querem que fique lá até resolverem todos os problemas da divisão da casa, os cachorros e como vão organizar a guarda dela.
— Mas um convento? Ela vai surtar lá dentro. — Marcela diz. Seu coração está acelerado. — Só tem acesso à internet duas vezes por semana, isso é sacanagem.
— É bom que ela faz um detox de rede social — intromete-se Daiana.
— Você se escuta? — pergunta Marcela. — De verdade, pensa antes de falar? A Giulia está em um C O N V E N T O, não existe nada de bom disso. Caramba, garota.
Depois de falar, Marcela deixa os outros três parados no pátio e segue para a sala da aula sozinha enquanto digita uma mensagem. Está pronta para socar alguém. Quando entra, o professor de biologia fecha a porta atrás dela.
Giuzinha [10:31]: Não se preocupa, não é igual nas séries.
Giuzinha [10:31]: Preciso voltar pras minhas aulas, mas eu te mando mensagem no sábado, tá bom? A gente pode até se ligar.
Marcela [10:35]: Fica bem, tá? Qualquer coisa a gente faz um plano maluco pra te tirar daí. Qualquer coisa eu tô aqui.
— Guardem os celulares — pede o professor Maurício, que tem idade para ser um irmão mais velho dela.
Ela encara a porta fechada por uns instantes e retira o livro de biologia da mochila quando o professor começa a escrever na lousa. Lucas não entrou, Marcela tem certeza de que ele está surtando por isso. Agora que respirou fundo, se sente culpada por ter gritado com Daiana daquele jeito, mesmo que ainda pense da mesma forma. Uma outra regra em sua casa é a de nunca, em hipótese alguma, gritar. Seu pai sempre diz que aumentar o tom de voz não ajuda em nada e, a primeira e última vez que se ouviram gritos naquele apartamento, foi depois que o pai trouxe a notícia da morte da filha. Marcela nunca esqueceu o pavor que sentiu enquanto apertava seu travesseiro em um abraço debaixo das cobertas e sentia a dor da mãe no seu grito.
Não consegue acompanhar as aulas, gostava do professor de ciências do nono ano, e agora são três diferentes. Marcela sabe que vai se se ferrar se não prestar atenção e mantém seus olhos presos tão atentamente nos livros enquanto faz um exercício que só nota que alguém a chama na terceira vez que seu nome é dito.
— Marcela. —Thelma, a secretária, parada na porta. — O diretor quer falar com você.
Seu coração acelera e ela aperta os dedos das mãos. Olha para o professor e depois o restante da sala de aula porque lembra bem da última vez que ouviu essas palavras, quando Eduarda morreu. Marcela ainda estava na sétima série e, ironicamente, era na aula de ciências. Já era inverno, Marcela usava uma touca preta que odiava, mas a irmã mais velha insistia e era incentivada pela mãe. Eduarda levava os dois irmãos para a escola antes de ir para a faculdade, que ficava perto. Quando a irmã sofreu o acidente, Matheus, estagiário da escola na época, tio deles, os levou para casa. Um carro nunca ficou tão silencioso quanto naquele dia. Carlos tinha dezesseis anos e segurou a mão dela, de doze, durante todo o caminho. Quando chegaram, seu pai não estava lá, mas a mãe andava preocupada de um lado para o outro sobre o tapete cinza da sala, nem falou com os dois, que se trancaram no quarto quando Matheus foi abraçá-la. Muita coisa mudou desde esse dia.
Marcela se levanta, pega a mochila do chão, mas Thelma diz que ela não precisa levar suas coisas. Isso significa que ela não vai embora da escola, pensa que é menos ruim. Segue a secretária pelo corredor vazio de chão vermelho e paredes azuis, encara os três amigos conversando com a coordenadora quando passa pelo pátio. Lucas a olha nos olhos, confuso, e Marcela abaixa a cabeça. Está com medo, as lembranças invadem sua mente e tem vontade de chorar. Com as mãos dentro do casaco azul, sente o peso da mão dele quando Lucas a coloca dentro do bolso esquerdo dela e aperta seus dedos gelados, ignorando os chamados da coordenadora e seguindo com a amiga até a diretoria. A garota ergue seu olhar preocupado e cruza seus dedos com os dele, Lucas sorri. Ela se pergunta se aconteceu alguma coisa com seus pais ou Carlos, não sabe o que fará se for esse o caso. Sente seu peito apertado e quase não respira, mas pelo menos seu melhor amigo está aqui.
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