Capítulo 26 - Manual completo de comportamento.
Não dê um tiro no escuro esperando acertar o alvo porque não vai acontecer. Exceto, é claro, se o alvo atirar em si próprio.
Marcela deu um tiro no pé.
Não dá para ficar 5 minutos no banheiro com duas garotas que se odeiam sem um clima tão pesado e silencioso que se escuta o som dos corações acelerados.
— Mais 4 minutos — fala Marcela, encarando a luz alta do seu celular enquanto aos outras duas garotas no espaço pequeno do banheiro se encaram como se fossem capazes de arrancar os olhos uma da outra. Elas mal se enxergam.
Giulia está sentada no vaso sanitário fechado, seus braços estão cruzados e as sobrancelhas tensas. Os músculos de sua face estão tão tensionados que chegam a fadigar.
— Era a primeira pessoa que descesse as escadas, não sabia que seriam vocês duas — justifica Daiana, mas é ignorada, e cruza os braços. — A gente pode aproveitar pra se resolver, não acham? Rivalidade feminina não é legal.
Marcela solta o ar em um riso contido. Admira a coragem de Daiana, mas, quando a encara, perde o sorriso. O formigamento no rosto, as entranhas se revirando e uma dor física. Ela tem certeza, agora, que isso nada tem a ver com paixão. Por isso não para de rir, nervosa, enquanto Giulia ergue as sobrancelhas curiosas para ela. Pensa um pouco se deveria falar, e se fosse em outro dia guardaria para si, mas por algum motivo Daiana não é a única corajosa dentro desse banheiro hoje.
— Só acho engraçado — começa, então, e esfrega as mãos na lateral das pernas. — Muito engraçado — sussurra.
Está tonta e tenta ignorar enquanto respira fundo. Sabe que deveria ter dito não, em relação a entrar nesse banheiro, mas a curiosidade a cegou. Marcela queria saber por que Daiana está jogando. Se preocupa com Lucas mesmo que nos últimos tempos ele tenha se esforçado para ser um completo imbecil.
— Você e o Lucas não estão namorando? — pergunta Marcela, Daiana coça a garganta. — O intuito desse jogo não é conversar, sabemos disso. — A encarada assente e Marcela continua: — o que você fez pra convencer o Lucas a fazer isso?
O suspiro de Daiana se estende nos segundos seguintes e ela bate duas palmas inesperadas. Sorri, Marcela está séria.
— É por isso que você e o Lucas brigaram. Você não para de tratar ele feito um coitadinho que precisa muito da melhor amiga para defender. — Está olhando Marcela, mesmo que o breu deixe apenas a sombra dela amostra e a memória da última vez que estiveram assim a incomode. — Marcela, você é uma...
— Olha o que você vai falar, garota — adverte Giulia.
— Foi ideia dele. — Daiana encara Giulia, depois Marcela. — Não sei o que conversaram naquele ônibus, mas ele veio com esse papo de jogar 5 minutos. Ele, não eu.
— Ele tá te dando um fora — traduz Giulia, ambas as garotas a encaram no mesmo segundo.
Giulia dá os ombros. Marcela sabe que ela tem razão, por isso faz uma careta.
— O jeitinho Lucas pra dar um pé na bunda. Já vimos antes — explica Marcela e assiste o peito de Daiana subir e descer de fora rápida.
— Já tava na hora, ele não tem tanto mal gosto — finaliza Giulia. Todas ali sabem que essas palavras foram milimétricamente escolhidas para afetar Daiana.
— Já deu o tempo — Daiana fala alto, soltando o ar preso e esbarrando em Marcela para abrir a porta do banheiro.
Toca na maçaneta, mas para. A respiração dela é inconstante e Giulia se coloca de pé, a observando. Daiana acende a luz e as encara. Passa os olhos cheios de lágrimas de uma para outra, os dentes cerrados. Estão a lágrima desce, escorre até o queixo, e pinga
— Por que vocês fazem isso? — Marcela não entende a pergunta. — Me tratam como se eu fosse um alienígena. — As outras duas prendem a respiração. — Como se não me importasse.
— Você brinca com as pessoas, Daiana — responde Giulia e passa por Marcela para ficar a um passo da garota negra.
Aponta o dedo indicador na cara da Daiana, Marcela assiste a cena com os olhos arregalados. Tem medo de tudo isso desembocar em uma briga física entre a garota alta e magra de sutiã vinho e calça jeans e a branca e gorda de cabelo rosa e blusa dos Ramones.
— Não pode ficar chateada quando te tratam da mesma forma — esclarece Giulia, Marcela engole em seco. — É o mínimo que você merece.
As duas estão cara a cara, bem na frente de Marcela, e ela pensa em como intervir.
— Então porque você não deixa de ser hipócrita e faz logo alguma coisa, Julieta? — sussurra Daiana e empurra Giulia para trás.
Esse é o momento. Marcela tem mil pensamentos ruins invadindo sua cabeça por minuto. O empurrão de Daiana não fez muito efeito em Giulia e ela também não parece querer revidar. Daiana vai abrindo a porta e a bate atrás de si, com força.
Giulia ainda está de costas para Marcela, como se tivesse alguma coisa daquele lado do banheiro. Cinco segundo depois, olha para Marcela com as sobrancelhas tensas e as bochechas coradas. Marcela não sabe distinguir se de raiva, vergonha ou medo. Marcela está apoiada na pia e não tem ideia de como lidar com o que acaba de ouvir.
Como se um cadeado finalmente se abrisse em sua cabeça.
Julieta.
Deveriam existir algumas regras sobre como agir quando se está na completa fossa aos quinze anos. Marcela assim saberia o que fazer diante de tudo que anda passando nesses meses do primeiro ano do ensino médio.
Agora, deitada em sua cama, no quarto que está dividindo com Sérgio na pousada Abelha, abaixo das cobertas grossas para afastar o frio do lugar tão longe de casa, ela só consegue pensar no quanto odeia que a vida não tenha um manual completo de comportamento.
Se tudo fosse ensinado de fato, ela saberia como resolver as coisas com Lucas de maneira sincera, mas sem magoá-lo. Marcela acredita que conseguiria ter entendido como Daiana age antes de se interessar com ela. E a menina, trêmula, com certeza teria aprendido uma maneira melhor de reagir ao que Daiana falou antes de sair do banheiro, uma que não incluísse fugir de Giulia feito um animal assustado e se trancar no quarto, onde Sergio já dormia mesmo com o barulho, e ignorar as batidas na porta da garota do cabelo rosa. Julieta.
Engraçado como um simples termo transforma água em vinho. Em um momento estavam do mesmo lado, contra Daiana, e no outro foi como se um muro grande e de concreto firme surgisse e separasse as duas melhores amigas. É isso o que surpresas fazem com ela. Marcela odeia ser a última a entender as coisas do jeito que são e odeia ainda mais a dor que está tentando ignorar enquanto se concentra em respirar fundo e dormir, será um grande dia amanhã. Ela pensa que já tem quinze anos convivendo com essa doença, não quer perder mais nada por causa dela.
Sérgio respeitou o espaço de Marcela quando ela se recusou a falar e, depois que o barulho acabou e as pessoas da outra cabana aparentemente foram embora, inclusive Giulia, ela ainda saiu para beber água. Estava tonta, enjoada e o desconforto conhecido a assustava. Repetiu para si que era estresse e voltou para o quarto. Passava das 23h quando Marcela se deitou abaixo de suas cobertas.
Ela nunca foi boa no papel de garota má como Giulia é e, com certeza, também não se encaixa no local de garota boba onde Daiana a colocou. Marcela Maria Farias era uma ótima garota mediana e chata, no seu ponto de vista, e gostava disso. Queria voltar a ser ela mesma, algo que lhe foi roubado sem que notasse, e a ideia a deixava mais confortável.
Sente o líquido escorrer de sua testa. Está soando. Muito. Mas está com frio. Muito.
Marcela agora acredita que seu mal-estar não tem relação com a noite conturbada e está com medo. Ela fecha os olhos e os pressiona com força porque a dor aumenta e não sabe o que fazer. Não está em casa, onde consegue bater na porta dos pais e escutar deles uma solução. Não está perto de Lucas, que poderia acalmá-la e repetir que vai ficar tudo bem, nem sabe se ele faria isso. Seu celular não tem área para ligar e Marcela começa a chorar. Arfa com intensidade, mas baixo, não quer acordar Sérgio e preocupá-lo. Repete como um mantra de manhã tudo vai estar bem. De manhã, tudo vai se resolver. Ela vai conversar com a Giulia. Deixar as coisas claras com Lucas. Marcela promete que nada passa de amanhã.
— Você tá bem? — pergunta Sérgio, com voz de sono, Marcela prende a respiração. Ele se ajeita na cama, ela permanece em silêncio. — Quer conversar?
— Eu tô bem — sussurra a garota, com a voz impassível de choro. — Eu tô bem.
— Tem certeza? — insiste, preocupado, a voz dela não é de alguém bem.
Marcela solta o choro e pensa no que responder. Engole em seco, engole o orgulho e o ressentimento. Marcela engole tudo porque o que sobra nela é medo. E só existe uma pessoa que pode realmente ajudá-la.
— Chama o Lucas, por favor? — pede e sabe que é um desejo grande demais. Lucas está em uma pousada a belos quinze minutos andando dali. Está frio e escuro lá fora, além de ser uma mata que não conhecem e não querem que os alunos andem sozinhos.
— O que aconteceu? — Outra voz é escutada no quarto. Uma que ela conhece, mas estranha. Marcela retira as cobertas à medida que um corpo se move na sombra para acender a luz. — Desculpa, eu vim pra cá depois que todo mundo foi embora, você sabe que odeio ficar sozinho em um lugar novo. — Acende a luz e a encara. — Meu Deus, Marcela, você não tá bem — Lucas diz isso com os olhos antes sonolentos arregalados, ela nem consegue expressar o que sente. Está tão cansada.
Marcela não sabe muito bem o que sente. Lucas odeia lugares novos, sabe disso, mas não esperava que ele fosse dormir escondido no quarto dela, como uma criança assustada. Decide ignorar isso, afinal, nesse instante ela é a criança mais assustada no quarto.
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