Capítulo 21 - Emplasto Machado
— Você não vai responder. — Giulia já repetiu essa frase cinco vezes nos últimos dez minutos e Marcela continua calada e pensativa.
A melhor amiga está deitada com Marcela na cama de solteiro apertada e o quarto está tão escuro que mesmo as duas de olhos abertos, não conseguem se enxergar. Sabem que precisam dormir porque têm aula de amanhã, mas as estão ansiosas graças à mensagem de Daiana.
Marcela não a respondeu. Ela estava feliz por ter desativado a confirmação de leitura do Whatsapp na semana passada e por isso não a preocupa Daiana pensar que Marcela a está ignorando. Só que elas estudam na mesma sala e será impossível fingir que não viu a mensagem quando se encontrarem pessoalmente.
— E daí que ela vai saber que você ignorou? É bom que saiba mesmo. — Giulia vira-se se lado, encara a Marcela, que está de barriga para cima, essa acende a luz do celular em direção à amiga. — Ela não merece, Ma.
Giulia engole em seco, Marcela apenas a encara. Sente-se mal, principalmente quando lembra do "urgente" no final da mensagem de Daiana. Não sabe como se comportar diante disso. Afinal, Daiana é namorada de Lucas e precisa aceitar que Marcela não quer ser sua amiga. Mas Marcela se questiona como pode tratar com indiferença a namorada do seu melhor amigo?
Está em uma sinuca: a bola branca está bem perto do buraco e a vermelha também está na boca. Existem três possibilidades: ela pode ignorar a bola vermelha, lança a branca para longe do buraco e talvez se arrepender depois; pode tentar acertar a bola vermelha, ganha o jogo, tentando ser amiga de Daiana; ou, a pior das possibilidades, ela acerta a bola vermelha e a branca cai dentro do buraco também, Daiana entende que Marcela ainda está na palma da mão dela, e aí tudo estará perdido.
— Me diz que não está pensando em responder — pede Giulia e Marcela suspira.
— Ela é uma pessoa boa e pode estar precisando de ajuda — sussurra, receosa, já esperando pelo sermão.
— Não. Daiana não é uma pessoa boa. Ela te beijou enquanto ficava com o Lucas, quase destruiu a amizade de uma vida toda, teve um surto de ciúmes da Paulinha porque acha que você é algum tipo de propriedade dela e depois começou a namorar com seu melhor amigo. Só Deus sabe o porquê — Giulia fala de forma compassada e didática, esfregando a verdade na cara de Marcela com força. — Então, não, ela não é uma pessoa boa. Você é. Sérgio e Lucas são pessoas boas, na maioria das vezes, mas Daiana não. Ela não pede desculpa quando erra, Daiana joga a culpa em outra pessoa. Ela é uma pessoa má.
Giulia vira sua barriga para cima e cruza os braços. Está encarando o breu e sua respiração pesada é audível. Marcela apagou a luz do celular porque ficou triste com tudo o que Giulia disse. Ficam caladas por alguns segundos.
— Eu joguei com ela — confessa Marcela. — Mesmo sabendo do lance dela com o Lucas, entrei no jogo dela. Não sou uma pessoa boa também.
— Ninguém é 100% bom. Eu nunca disse isso. Mas, confia em mim, você é uns 80%. Já é mais que a média. Mais do que eu, inclusive —Giulia diz e não move um dedo sequer. — Daiana quer que você se sinta culpada. Vai responder, não vai?
Marcela fecha os olhos, xinga o mundo inteiro. Define:
— Não. Eu não vou responder.
E Giulia solta o ar que outrora esteve preso. Ela olha para o lado, mas só vê a sombra da Marcela.
— Você vai me contar por que terminou com a Camila? — pergunta Marcela. Ela virou o rosto para Giulia também. Estão se encarando, mas não se enxergam.
— Eu não posso te contar — Giulia sussurra. Sua voz sai diferente. Travada e angustiada. — Desculpa.
Não olha para trás.
Não olha para trás.
Não olha para trás.
— Daiana não para de te encarar — Sérgio comenta e o corpo já tenso de Marcela poderia ser considerado agora uma obra de mármore.
Engole em seco, olha para a sua esquerda, onde Sérgio ocupa a cadeira de Lucas frente à mesa do professor. Esse último não está na sala, mas teoricamente eles deveriam estar discutindo o capítulo de um livro de Machado de Assis, que Marcela nem leu.
Não olha para trás.
Não olha para trás.
Não olha para trás.
— Agora o Lucas trocou a gente oficialmente — sussurra Giulia, atrás de Marcela e seu tom não é brincalhão. Ela cutuca Marcela, que a olha de soslaio, e finaliza: — Deixa ela te encarar o quanto quiser. Finge que é uma medusa.
Está se referindo a uma medusa do século XXI e batom vinho.
Marcela não é capaz de conter sua risada depois desse comentário, e seu corpo se relaxa em um instante. Encara Sérgio, ele está arrastando sua cadeira em direção às duas garotas, soltando um chiado horrível. Paulinha está sentada na frente de costas para a lousa e de frente para Marcela.
— E você já descobriu o que ela queria? — Sérgio refere-se à mensagem que Marcela comentou ter recebido dela e a menina balança a cabeça negativamente.
Marcela escuta a voz de Lucas, alta:
— Ei, Sérgio! E se a gente fizer um placebo pra passar em literatura? Por quanto acha que conseguiríamos vender na escola? — E Marcela teria entendido caso tivesse lido a obra para a aula. Ela se controla para não olhar para trás mais uma vez. — A Marcela compraria — brinca, sorrindo, e espera a melhor amiga encará-lo.
Ela fecha os olhos, está rindo de sua zoação, mas olhar para trás significa ter que olhar para Daiana e Marcela está fugindo dessa garota com toda a sua força de vontade. Sente uma mão pousar em seu ombro direito e se assusta. Lucas está em pé ao seu lado, ele se agacha e a encara.
— Você tá bem? — Quer saber. Marcela o olha tristonha, pressiona os lábios com força e se estica para olhar os pés de Lucas.
Coça a garganta e balança a cabeça negativamente antes de falar:
— Seu tornozelo deve estar gritando, se levanta que seu pé ainda não tá bom — pede, Lucas sorri e se levanta. — Eu sabia — sussurra e olha para cima, em direção ao amigo. — Pensei que fosse fazer o trabalho com a gente. — Ele olha em direção a Daiana, ela não. — Não li sabendo que você ia ler e me contar tudo.
Lucas faz um bico e aperta os dedos no ombro coberto pelo uniforme da amiga. Ele depois encara Paulinha, escutando tudo sem falar nada.
— O grupo de vocês tá completo — argumenta.
— O máximo é cinco! — Giulia rebate.
— E eu não ia deixar a Daiana sozinha — responde Lucas. Marcela a encara no instante em que Giulia revira os olhos. — Quer assistir o ensaio da peça hoje? Eu não vou estar no palco por causa do pé.
— Daiana vai? — questiona Marcela, com mais arrogância do que pretendia.
— Daiana não vai — responde a voz feminina exatamente ao lado de Lucas, alto, e está negando com a cabeça.
Marcela precisa desviar os olhos rápido. Giulia está encarando Daiana de forma amedrontadora e Paulinha cruza os braços. Paulinha pergunta:
— O que você queria, Daiana? — E todos a encaram com certa confusão, inclusive Daiana. — A mensagem para Marcela, o que você queria?
Marcela se sente tão surpresa que mal consegue fazer algo a mais do que abrir a boca espantada. Os olhos de Giulia estão arregalados e ela está rindo enquanto assiste ao que parece ser a primeira demonstração de uma posição de Paulinha. Afinal, Marcela conversou com ela sobre a mensagem de Daiana também e todos sabem que elas já haviam se beijado, era só juntar os pontos para entender que existia uma sutil conexão entre as duas garotas. Todos achavam que Paulinha nunca havia notado, mas estavam perfeitamente enganados, e aquela de corpo esportivo e boca rosada olha de forma desafiadora para Daiana que a namorada de Lucas se sente constrangida. Principalmente porque Lucas não sabia dessa mensagem até então.
— Então? — Insiste, de forma séria e segura, quando a resposta demora a vir. Marcela balança a cabeça negativamente, irritada.
Daiana está gaguejando e nenhuma palavra inteira saiu de seus grossos lábios até agora. Ela olha para Marcela, que a encara, e diz:
— Eu precisava de ajuda com uma coisa. — Está sem graça, olha de Paulinha para Marcela, que sente uma leve pontada de pena pela situação. — Um desenho, pra minha apresentação.
As sobrancelhas de Marcela se pressionam com força e Lucas diz alto:
— Eu disse que ia fazer o desenho!
— Eu sei, mas... — tenta falar Daiana.
— Que apresentação? — Quer saber Marcela, Daiana a encara. — De música? — A outra assente. Marcela olha para Lucas, que parece frustrado. — Você não desenha bem, Lucas, já conversamos sobre isso — argumenta, e Sérgio ri enquanto Lucas cruza os braços desgostoso. — É isso, você quer um desenho, isso era urgente?
— Vai ser espalhado na escola inteira, é claro que é urgente não deixar o Lucas desenhar — Giulia se intromete e Marcela concorda mesmo em silêncio.
— Por que você mesma não faz? — Paulinha não desce do pódio e Daiana responde que não sabe se desenhar. — E a Marcela sabe? — Giulia coça a garganta de maneira engraçada, mas a conversa não é divertida. Marcela suspira, suas mãos começaram a suar de repente.
— Ela sabe, na verdade — responde Daiana, sem rodeios, e busca no celular a foto do desenho que Marcela lhe deu, mas antes que Paulinha pudesse ver, Lucas puxa o celular para ter certeza daquela fala, depois encara Marcela confuso.
Quando Lucas e Paulinha perguntam, ao mesmo tempo, por que Marcela desenhou Daiana, ela se sente no limite.
— Porque eu fui burra. — Olha Lucas, depois a loira. — Eu desenhei porque eu fui uma grande idiota. E eu queria que tivessem fiscalizado minha vida antes, porque agora já é tarde demais — diz isso tão alto que a sala inteira, antes tagarela, fica em silêncio e encara o grupo. — Procura outra pessoa — fala mais baixo, para Daiana, e depois olha Paulinha. — E você procura outro grupo pra fazer o trabalho.
— Oi? — Paulinha está surpresa, apontando para si mesma. — Por quê?
Marcela respira fundo, pressiona os lábios e depois diz:
— Porque você é legal e eu não quero fingir que sou.
— Você tá me dando um fora?
— Ela tá te dando um fora — diz Sérgio, monótono.
—Desculpa— sussurra Marcela. Fecha os olhos e pragueja todos mentalmente. — Só... Procura outro grupo — pede. — É mais complicado fazer parte desse grupo do que parece. — Sérgio concorda com a cabeça em alta velocidade.
— O jeito Marcela de dar foras — sussurra Giulia para si mesma e ninguém entende, ela está olhando seu celular quando a amiga a encara curiosa. — Deveria seguir o exemplo. — Olha sutilmente para Lucas, que bufa e respira fundo antes de sair puxando Daiana pela mão.
Enquanto Paulinha se ajeita para sair, irritada, do grupo, Marcela é encarada por Giulia e se mantém calada e triste. Sente seu corpo mole e sonolento, bebe um pouco de sua água da garrafinha e pensa que acabou te partir o coração de Paulinha, uma coisa que não queria. 80%? Eu não diria nem 40%, pensa, lembrando da conversa com Giulia de madrugada.
— Melhor o Emplasto Machado ser para corações partidos, tem mais gente precisando — sussurra Sérgio em direção a Giulia, mas essa não está sorrindo.
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