SETEMBRO

     É estranho estar aqui, na casa de Daiana Barros. É a maior que Marcela já entrou na vida e ela não está muito confortável.

Há mais ou menos um mês, Marcela e Lucas voltaram a se falar. Lucas ainda é sensível ao assunto Daiana, mas é óbvio que não desistiu dela.

Nessa semana, Daiana pediu para ser recolocada no grupo de amigos e Marcela ficou muito feliz que ela os desculpou. Não foram todos, isso é verdade. Lucas provavelmente já estaria morto se todos os pensamentos de Daiana em relação a ele se realizassem.

Marcel levanta o copo e bebê mais um gole do suco de goiaba que a mãe de Daiana serviu e observa Sérgio acariciar a cabeça de Patrícia, uma menina de cabelos pretos e crespos presos para trás com uma tiara cor de rosa choque. Muita coisa mudou em um mês.

Marcela começou a ir para a escola duas semanas depois que as aulas tinham voltado. Sérgio apresentou a namorada, que ninguém sabe ao certo como ele conheceu, não é da escola e que Giulia ainda não simpatiza muito.

Mais ou menos uma semana depois, Marcela foi surpreendida pelo convite de Daiana para o seu aniversário no dia 24 de setembro. Marcela aceitou, claro, mas considerando que Daiana ainda não desculpou Lucas, sente-se afundando em areia movediça perto dos dois. Sim, Lucas também está na casa de Daiana.

— Eu não sou fã de librianos — diz Giulia, o cabelo vermelho brilhando contra o sol de final de tarde enquanto Giulia se coloca ao lado de Daiana. Ela é a única de vestido, mesmo que a blusa de frio branca seja grossa.

Daiana ri e ergue as sobrancelhas. Um gato branco está em suas mãos e ele tem tantos pelos que Lucas não conseguiu parar de espirrar desde que chegou na casa. Esse é apenas um de três, talvez o garoto não sobreviva até o final desse dia.

— Acho que eu não gosto também — Daiana, olhando o rapaz de nariz vermelho e olhos lacrimejando pela alergia.

A tarde inteira foi assim. Alfinetadas para todos os lados, reviradas e olhos e espirros. Ninguém consegue entender por que Daiana convidou Lucas. Deve ser porque ela comentou do aniversário no grupo onde ele estava e Lucas viu lá uma oportunidade.

Marcela, Giulia, Lucas, Sérgio e Patrícia se encontraram na rodoviária por volta das onze da manhã, já que Daiana mora em Mairiporã, e chegaram antes do meio-dia. Desde que colocaram o pé na casa de chão com porcelanato branco e um lustre enorme na sala, a mãe de Daiana os entope de comida gostosa. Assistiram os filmes do Harry Potter porque são os favoritos da aniversariante e há alguns minutos cantaram parabéns.

Ah, sim. Em 6 dias é aniversário de Lucas também, Marcela acha irônico serem tão próximos. Pensa que talvez por isso Daiana não o tenha proibido de vir a essa reunião privada com direito a bolinhas de queijo e um bolo gostoso de aniversário. Daiana deve mais compassiva do que gosta que os outros saibam, nenhuma outra coisa explicaria Lucas nessa cozinha.

Marcela imaginou que a relação de Daiana não fosse tão boa com a mãe, por toda aquela história de hiper proteção já dita. Estava errada, principalmente porque agora mesmo a mãe está mostrando uma série de fotos do passado de Daiana para todos e a filha apenas ri e se diverte como se realmente não se incomodasse. Marcela pensa que se fosse com ela estaria surtando com a Bianca no primeiro álbum de bebê.

— E aqui foi quando ela perdeu o ursinho favorito, tinha quatro anos. Eu tinha jogado fora porque tava muito velho e fedendo. — Indica a foto onde a garota de cabelos crespos aparece chorando com os lábios grossos abertos demais no colo do homem de bigode esquisito com a pele mais clara

— E você tirando foto — comenta Daiana, rindo. Retira o copo da frente de Marcela quando essa termina o suco.

Marcela a olha, não consegue tirar os olhos dela. O jeito que Daiana coloca o cabelo para trás da orelha faz o coração da morena palpitar e Marcela nem nota quando seus lábios descolam.

Há algumas horas, eles descobriram que, além de pintar, aquela garota — não mais tão novata assim — tem uma voz impressionante. Agora Marcela tem certeza de que poderia viver dentro da canção Sozinho, do Caetano Veloso, após escutá-la cantar e tocar no violão.

— Você sempre fez muito drama — argumenta a mãe e começa a se levantar.

A mãe de Daiana, Luísa, é uma mulher de no máximo um e sessenta de altura, cabelo cacheado preso em um rabo de cavalo e um par de olhos castanhos muito claros.

Sérgio mostra seu celular para Marcela. Passa das cinco da tarde, eles precisam ir embora.

Luísa até oferece carona, mas eles recusaram porque não querem incomodar e só aceitam serem levados até a rodoviária da cidade.

Lucas está falando no telefone com sua mãe e Sérgio joga RPG no celular enquanto as garotas estão sentadas no banco marrons e duros. Marcela encara o relógio preso no teto do lugar, com números vermelhos, como se o horário fosse passar mais rápido. O próximo ônibus só sairá às seis e vinte da noite.

Marcela olha rápido Patrícia, entretida no Facebook, e depois encara sua melhor amiga, jogando no celular. Giulia a olha de volta e elas ficam assim por alguns segundos.

— O que foi? — pergunta Giulia, depois olha Patrícia, rindo sozinha com seu celular.

— Nada — sussurra Marcela e encara o seu celular, mas não há nada de interessante nele. Apesar de negar, as mãos dela estão suando quando olha para Giulia, discretamente, mais uma vez.

Marcela desbloqueia o seu telefone e abre o número de Giulia. Respira fundo, criando coragem para enviar essa mensagem. .

Marcela: Acho que estou apaixonada pela Daiana.

Não sabe como se sente. Fecha os olhos, não quer abri-los. Não sabe qual vai ser a reação da melhor amiga. Não quer saber. Sua respiração está densa, mesmo assim ela sente um peso deixando seu coração por finalmente falar isso para alguém

— Eu sei — sussurra Giulia, surpreendendo-a. Marcela abre os olhos. Giulia, sorridente ergue o olhar. — Tô feliz que tenha me contado, mas você sabe a confusão que isso vai causar, né?

— Eu seu — diz Marcela. Patrícia agora olha as duas garotas, que se inibem rapidamente, mas a namorada de Sérgio sorri.

— Olha — diz Patrícia, baixo. Bloqueia o celular e depois se ajeita na cadeira da rodoviária. — Eu não sou amiga de vocês, mas posso manter o segredo.

— Ela está apaixonada por uma garota... — começa Giulia e Marcela abre a boca em choque. Xinga baixo antes de verificar que os garotos não ouviram. — A Daiana.

— Giulia! — Marcela, que está com os olhos arregalados.

— Ah, até eu me apaixonaria por ela — diz Patrícia, depois olha Marcela. — O que? Ela é linda, inteligente, talentosa, simpá...

— Eu sei, eu sei — sussurra Marcela, interrompendo-a. — Ah, que droga. — Oha para as luzes brancas da rodoviária e depois para Lucas, sentindo-se extremamente culpada por seus sentimentos. Pensa ser a pior melhor amiga do mundo, sabe que Lucas gosta de Daiana há mais tempo que ela, não é justo sentir isso.

— É um ou o outro, você sabe. — Giulia, séria. — Existem outras garotas naquela escola que não são a dele — Olha Lucas.

— A Daiana não é dele — rebate Marcela.

— Marcela! Você entendeu muito bem o que quero dizer — Giulia engole em seco e suspira.

— Eu sei, okay? Não vai acontecer nada.

— Suas sobrancelhas mexeram! — adverte Giulia, semicerrando os olhos.

— O que eu faço? Não é como se eu tivesse escolhido isso. Você disse que a vida era uma fanfic, e agora?

Giulia sorri e balança a cabeça negativamente. Um silêncio fica no ar.

— Me dá o seu celular — Patrícia pede, estendendo a mão para Marcela. — Vai.

Giulia observa Patrícia entrar no Facebook de Marcela. Essa última não entende de imediato, mas Patrícia começa a abrir todos os likes das fotos de perfil de Marcela. Por fim, mostra para Giulia e Marcela uma garota que conhecem.

— Quem é ela? — pergunta Patrícia.

— Paulinha — responde Marcela e analisa o rosto de Patrícia, mas essa não demonstra nada por suas expressões. — O que?

— O que? Ela tem um crush em você. Comenta e curte tudo — diz Patrícia, surpreendendo a outra. — Ela é desligada assim mesmo? — pergunta em direção a Giulia, que assente. Marcela bufa.

— Você é real a pessoa mais desligada do mundo — argumenta Giulia.

— Podem começar por ela — diz Patrícia. — Tipo, pra você esquecer a Daiana.

— A gente nem sabe se ela gosta de garotas! — argumenta Marcela, controlando o tom de voz e não gostando da ideia.

— Todo mundo gosta de garotas — Lucas diz, Marcela dá um pulo na cadeira antes de olhar para ele. Lucas coloca a mão no ombro de Marcela e ela sente todo o seu corpo gelar de uma só vez. — Tudo bem? — pergunta, Marcela está branca como um fantasma.

— Estamos ótimas — responde Giulia.

Giulia faz um bico e depois olha de um para o outro, respira fundo e continua:

— Tá legal, ele sabe que você gosta de beijar garotas. Não precisa conviver com você por mais de seis meses pra saber, Marcela, esse é o ponto.

Marcela coloca as mãos no rosto, abaixa a cabeça e se pergunta como ela mesma não soube por tanto tempo se estava tão obvio assim.

Mais: por que descobrir isso precisava ser tão complicado?