Único
A nota de duzentos reais foi passada de uma mão para outra.
― Desculpe, eu estou sem trocado ― a moça disse, dando um sorriso sem graça. ― É que eu acabei de passar no banco e...
― Não se preocupe com isso, filha ― o senhor atrás da caixa registradora deu uma risadinha que soou um pouco engasgada. ― O Dito ali da esquina deve conseguir trocar pra mim. Fique à vontade se quiser continuar dando mais uma olhadinha na loja.
Ela deu outro sorriso e assentiu, ouvindo o clássico barulho do sininho para indicar que a porta fora aberta e fechada. Olhou ao redor, sentindo o cheiro de guardado com antigo entrarem em suas narinas. Era um tanto reconfortante, ela diria, pois fazia-a lembrar-se da infância e de seus avós, em uma casa carregada de relíquias de famílias e de tantas gerações que até se perdia a conta. O dono do estabelecimento também parecia um tanto com seu avô, talvez mais um motivo que a trazia para aquele antiquário com tanta frequência.
Caminhou por entre pequenos corredores, aproveitando para observar com atenção a prateleira com bonecas. Havia Barbies que saíram de linha, pôde concluir ao pegar uma na mão e observá-la. Sorriu e colocou-a de volta, sabendo que não poderia levá-la daquela vez, ainda mais ao ver o preço. Continuou andando, sentindo-se assistida pelos brinquedos antigos daquele corredor. E o fim da linha para a loja, terminando em uma porta que sempre estava fechada em todas as vezes que passara ali, no entanto, daquela vez a situação era outra, pois havia uma fresta.
Ela não conseguiu conter a própria curiosidade, uma característica marcante sua, seu avô costumava dizer e alertar que a curiosidade matou o gato. Nunca dera ouvidos, o que a metera em algumas enrascadas ao longo da vida. Daquela vez, cedeu à sua curiosidade. Mais uma vez para a lista que não tinha fim.
Mas quem se importava, era só uma olhadinha... Colocou parte do rosto na greta e espiou. Diferente do que esperava, o ambiente não era um banheiro, pelo contrário, parecia mais uma continuação da loja. Esticou a cabeça e olhou para a entrada do estabelecimento. Ninguém. Talvez o velhinho fosse demorar para conseguir o troco, afinal, era uma nota de duzentos reais...
Empurrou a porta com o ombro e entrou, era só uma espiadinha...
Viu o ambiente ao seu redor iluminado por uma luz alaranjada, vinda de uma lâmpada presa no teto por um fio que parecia prestes a rebentar. Uma mosca voava em torno da luz e ela viu mais uma prateleira de bonecas, feitas de porcelana. Seus dedos coçaram para tocá-las, mas uma parte sua hesitou, sabendo de seu histórico de pessoa desastrada e se quebrasse aquilo... Vagueou os olhos para baixo, vendo fixada na parede um papel já se desfazendo nas bordas. “Não olhe”, ele dizia, e o caminho natural era de os olhos seguirem para um grande baú.
Se ainda fosse criança, sua mente imaginaria um daqueles baús de tesouros, que piratas enterravam e depois marcavam um “x” em um mapa. Mais uma vez seus dedos coçaram para tocar e sua curiosidade falou mais alto. As bonecas na prateleira acima encaravam-na fixamente com seus olhos falsos nos rostos mortalmente pálidos de porcelana e a tampa do baú foi aberta.
E caiu com um baque na mesma hora, um grito ficando engasgado na garganta. Ela se afastou, sentindo seu coração começar a retumbar contra o peito e um cheiro pútrido empestear o ar. Doía as narinas e fazia seus olhos quase lacrimejarem, a imagem ainda gravada em suas retinas. Sua mente parecia zumbir ― ou talvez fossem seus ouvidos ― e os pensamentos perderam a linha feito um trem sem freio.
O sininho tiniu outra vez fora daquela sala e suas pernas trêmulas partiram para fora. Saiu para o corredor convidativo e familiar do antiquário, ainda olhando para a porta entreaberta, não conseguindo sequer virar o pescoço para outro lado. As Barbies viram suas mãos tremerem e suarem quando passou por elas mais uma vez.
― Perdão pela demora, mas tive que ir na boutique da outra esquina ― a voz do senhorzinho anunciou e foi aumentando conforme ela se aproximava da saída da loja. ― Está tudo bem com você?
A mulher virou o pescoço para frente, deparando-se com o homem baixinho e com seu bigode de sempre encarando-a preocupado.
― Sim. ― Achou que a voz sequer fosse sair, porém foi capaz de ouvir algo rouco e que quase mal parecia com sua verdadeira voz sair da garganta. ― Sim ― repetiu com mais firmeza, conseguindo soar mais consigo mesma. ― Eu... Acho que minha pressão caiu, preciso comer alguma coisa.
― Sim... ― o senhor disse e entregou-lhe uma nota de cem e duas de vinte como troco. ― Daqui a pouco começa a escurecer, não? É hora do jantar. ― Ela assentiu, amassando as notas e enfiando-as de qualquer jeito no bolso de trás da calça e pegou o pacote com o bibelô que comprara. ― Se cuide, filha ― ele desejou com um sorriso por debaixo do bigode grisalho.
Ela murmurou qualquer coisa em resposta, sua mente sequer processou o que dissera, e partiu para fora do antiquário, o sininho tinindo quando passou. A rua estava movimentada e o vento carregava o aroma de pão fresco da padaria próxima, mas o cheiro de podridão ainda parecia impregnado em seu nariz. Ardia. Ainda sentia os olhos com lágrimas, porém era porque estava prestes a chorar. Engoliu a saliva junto da vontade de chorar e seguiu o povo a caminho do metrô.
Estava cercada de gente e barulho por onde quer que passasse, gente que sequer olhava para uma mulher que parecia prestes a colapsar ali mesmo, ao lado deles. Ninguém se importava com ela, ninguém olhava para ela, mas era como se houvesse um olhar sobre ela. Aquele tipo de sensação que te dá vontade de olhar ao redor, pois você sabe que há alguém te observando naquele exato momento. E a moça fazia isso, porém ninguém olhava para ela.
Sua mão ainda tremia e sua boca estava completamente seca quando chegou ao terceiro andar do prédio em que morava com o marido. Foi preciso várias tentativas para colocar a chave na fechadura e girá-la. Ao conseguir, abriu a porta com um estrondo e fechou-a com outro. Respirou fundo, mesmo que respirar fosse o que mais fizera naqueles últimos minutos para tentar conter a falta de ar.
Fechou os olhos, mas a imagem ainda estava gravada em sua mente. Assim como o cheiro, que parecia ter grudado no seu nariz, na sua pele e em todo lugar. Precisava, precisava... Precisava se acalmar. Estava tudo bem, estava em casa e segura. Seu marido chegaria a qualquer momento, jantariam juntos e seguiriam a rotina de sempre. E ele perguntaria se ela estava bem, porque não conseguia se acalmar.
Um banho, talvez um banho ajudasse, e aquilo fazia parte da rotina. Pendurou a chave no chaveiro ao lado da porta e ela caiu, no mesmo instante fazendo-a virar para trás. Estava sozinha. Certo.
Foi para o banheiro e seguiu o ritual de sempre, tentando relaxar quando sentiu a água morna sobre o corpo. Seus músculos continuavam tensos e poderia deixar a temperatura escaldante, porque não iria funcionar. Sua mente sempre a levava de volta para o antiquário e para aquela visão, e o cheiro... Parecia impregnado no seu nariz, na sua pele, nela por inteiro e poderia esfregar e esfregar e não saia.
Ouviu uma porta bater. Aguardou por alguns segundos, ouvindo apenas o barulho da água cair no box do banheiro.
― Bem? ― ela gritou, acreditando que seu marido acabara de chegar. Silêncio. ― Bem?
Chamou mais uma vez enquanto fechava o registro do chuveiro e pegou uma toalha, se enrolando nela. Saiu do banheiro ainda pingando água e abriu a porta, colocando parte do corpo para fora.
― Bem? ― chamou pela terceira vez e havia apenas silêncio e aquele cheiro em seu nariz, que parecia mais forte a cada minuto que passava. Era como se ainda estivesse no antiquário, com aquilo...
Devia ser no vizinho, alguma porta batera no apartamento de alguém e ouvira o barulho no meio do silêncio, nada além daquilo. Precisava se trocar e continuar a rotina, seu marido chegaria em breve.
Os minutos passaram e escureceu, obrigando-a a acender as luzes do apartamento. E o cheiro permaneceu, até o momento que suas narinas pareceram se cansar e trancaram. Não sentia mais o cheiro e não sentia mais nada. Exceto a sensação de que havia mais alguém naquele apartamento e a tensão em seu corpo.
Não, não havia mais ninguém ali e o silêncio provava aquilo. Era paranóia, pura e simplesmente paranóia.
Ouviu a porta bater novamente e a voz de seu marido atravessar o corredor.
― Bem? ― Queria que seu coração tivesse aliviado naquele instante, mas ele ainda batia e batia. Parecia que ia ter um ataque cardíaco. ― Que cheiro é esse? Parece que tem alguma coisa... Morta aqui dentro.
Ela saiu do quarto já vestida e foi até ele, que colocava suas chaves ao lado das dela.
― Você também sente? ― questionou e esperou receber seu beijo de sempre, mas não veio.
― Está tudo bem com você? ― ele perguntou e envolveu-a em um meio abraço.
― Sim ― mentiu outra vez e olhou para os olhos dele. Ainda tremia de pavor e sentiu-o apertá-la mais. A mentira não adiantaria. ― Acho que esqueceram alguma coisa morta por aí.
― Alguém precisa falar com o síndico sobre isso. ― Ele deu um beijo na testa dela e soltou-a com um afago nas costas. ― Mas não se preocupe, tudo vai ficar bem. Se ninguém ligar pra reclamar, eu mesmo faço isso mais tarde, certo?
Ela assentiu com a cabeça e viu-o se afastar, as palavras diminuindo de volume conforme ele partia pelo corredor. Sozinha na cozinha, ainda tinha a sensação de que havia uma segunda presença ali. Não havia mais cheiro também, mas sabia que continuava. Ela sabia, uma parte sua tinha certeza. E seu marido confirmara, não era coisa da sua cabeça.
Esquentou a comida já pronta no micro-ondas e viu algumas moscas começarem a voar em torno da lâmpada. Por onde haviam entrado?
Checou no seu apartamento que as janelas estavam abertas, será que… As deixara aberta quando saíra mais cedo? Seu marido as abrira? Mas quando? Fechou-as, na tentativa de impedir que mais moscas entrassem.
Ao voltar para a cozinha, viu que seu marido já havia retirado o segundo prato do micro-ondas.
— Vou dar um jeito nessas moscas — ele disse e foi pegar a inseticida no armário debaixo da pia. — Você fechou a janela? Senhor, parece que agora esse cheiro está aqui dentro!
Ela engoliu a saliva, não conseguindo sentir mais nada além do coração batendo. Continuava ali, céus, por que continuava ali?! Abriu novamente as janelas e se sentaram juntos para comer, porém nenhum dos dois conseguiu engolir muita coisa.
— Eu vou falar com o síndico sobre isso — seu marido anunciou e deixou o prato parcialmente intocado sobre a mesa. — Esse cheiro está insuportável, tem que haver alguma coisa morta nesse andar.
Ela viu a porta ser aberta e fechada, deixando-a sozinha, completamente sozinha. Jogou os restos de comida fora e lavou pratos, talheres e copos, tendo a certeza que havia mais alguém ali além dela e das moscas que giravam em torno da luz, fazendo um ruído que começava a incomodá-la. Não sentia o cheiro da inseticida que atirou novamente nos insetos ao terminar com a louça e não era capaz de sentir se o cheiro continuava ali.
Seu marido sentira e dissera que piorava. E ela não sentia mais nada além do coração batendo e do corpo ainda tremendo. Parecia que mal conseguia respirar, mas aquilo era coisa de sua cabeça. Assim como tudo aquilo era coisa de sua cabeça, menos o cheiro. O cheiro era real, mesmo que não pudesse ser.
Sentou-se no sofá e encarou a TV desligada, refletindo sua imagem na tela preta. Não podia ser real, não podia ser. Mas o corpo dentro do baú era, tinha certeza que era. Se encolheu e deitou a cabeça contra o travesseiro, fechando os olhos. A imagem continuava lá, gravada em sua mente. Não podia ser real, não. Era apenas um velhinho e um antiquário com bonecas e brinquedos fora de linha. E era um corpo em um baú. E a sensação de que não estava sozinha.
Ouviu uma porta bater novamente e abriu os olhos no mesmo instante, parecendo que realmente teria um ataque do coração. Se levantou e viu a porta do apartamento escancarada.
— Bem? — Parecia que mal conseguiria andar, parecia que iria desmaiar e conseguiu olhar para o corredor, não vendo ninguém. — Bem? — chamou-o, vendo que continuava a não haver ninguém. Mas sentia como se…
— Liliane. — uma voz a chamou, aquela voz que quase fazia carinho nos ouvidos, que trazia a lembrança do seu avô de volta e que falara com ela mais cedo. E aquela voz não era a de seu marido. — Olhe para trás, Liliane.
Seu corpo congelou. Ela não conseguia se mexer, não conseguia sentir e sentia que iria desmaiar. Não podia mais sentir, mas sentia que o cheiro estava ali. E estava ali por causa dele.
— Por que não olha para trás dessa vez, Liliane? Não está curiosa dessa vez?
E ela olhou, dessa vez não sendo capaz de não gritar.
N° de palavras: 2.237
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