ENCOBRINDO OS RASTROS
Capítulo de número 2
O Freddy sempre ficou encarregado de "corrigir" as minhas falhas, não que eu já tenha cometido tantas assim. Na verdade, ele precisava, como irmão mais velho, me livrar do pior. E o que era pior do que encontrar a irmã com uma arma em mãos e com sangue no corpo de um outro corpo que estava jogado entre a porta e o corredor daquele condomínio?
— Preciso tirar você daqui, — Freddy repetiu.
Se ele estivesse falando de mim, com certeza, eu teria que morder a língua, porque o tanto que já o critiquei. Mas, até nessas horas, a prioridade é ele. E, se para livrar sua pele, será necessário conversar com um corpo, então, provavelmente, ainda parecia melhor do que trocar ideia comigo.
— Está falando com o corpo? Eu pensei que...
— Que eu iria ficar aborrecido por você ter feito o que eu já sabia que faria em outra oportunidade?
Ele era tão grosso, egoísta...
— Eu não vou encobrir um crime que não cometi! — Cruzei os braços.
E quando pensei que as coisas não poderiam piorar, Freddy me puxou com brutalidade pelo braço, me levou para fora do apartamento, me colocou parada de frente para a porta de entrada daquele apê, e me fez visualizar o cenário do qual, nesse momento, eu fazia parte.
— Olha bem para essa cena, Aline. Olha com bastante atenção. Está olhando? — Questionava Freddy enquanto segurava a jovem.
Eu estava sentindo uma raiva. Não era apenas o fato do Marcos estar morto bem ali na minha frente, mas o fato de Freddy agir como se eu fosse sempre culpada.
— Eu não me importo com o que os meus olhos veem, porque isso não quer dizer nada! — Respondi com agressividade.
Freddy me jogou contra a parede do corredor, prendeu minha boca entre os seus dedos, me olhou com um olhar de quem gostaria de se livrar de vez de um grande problema, que poderia ser eu, puxou a arma que ainda estava em minhas mãos e, por um momento, achei que ele faria o que eu não tive coragem: dar um fim ao caos de uma vez por todas.
— Eu quero que você fique o mais distante possível de qualquer problema até que eu consiga um advogado, me entendeu?
Ele parecia bem claro. E eu só assenti com a cabeça, esperando que ele me largasse, ou que, na qualidade de irmãos, ficasse do meu lado, pelo menos dessa vez.
— Agora você vai para sua aula, agir normalmente, como alguém que bebeu bastante durante a madrugada...
O Freddy fez uma pequena pausa, foi até a cozinha, pegou uma garrafa de vodca na geladeira, me fez beber um pouco. Parecia saber exatamente o que fazer naquele tipo de situação, e isso era ainda mais assustador. Como se sabe o que fazer diante do que nunca se enfrentou antes?
— Mas eu não...
— Não fez nada, não bebeu. Que se dane! Não importa. A sua palavra não vai valer de nada. Por isso, não gaste seu tempo tentando dizer o que não fez. Finja que fez, e tente se livrar dessa culpa.
"Tentar me livrar da culpa", isso parecia tão fácil. Tanto quanto pegar um ônibus e ir até à Universidade assistir mais um dia de aula, mesmo após ter presenciado a morte do seu namorado. Bom, na verdade, não sei se o que tínhamos, Marcos e eu, era tanto. Mas, era especial, ou eu achei que fosse.
Pensar que ele estava pagando por algo que não cometeu. Por alguns instantes relembrei tudo. E era como se cada parte daquela história fosse um quebra-cabeças cujas peças pareciam não se encaixar. O que eu estava fazendo de errado? Ou melhor, o que todos nós, responsáveis por terminar o jogo, estávamos fazendo de errado? Qual a peça que estava de fora?
Não tinha muitas respostas, apenas uma dura certeza e um aperto no peito. Sentia que aquilo estava longe de acabar, e que os meus pesadelos agora pareciam não ter horário certo para me perturbar. Eu não precisava mais estar dormindo para presenciar o caos, pois ele havia tomado conta da minha realidade, da que, meses atrás, eu gostaria de eternizar.
— Como acha que eu vou ter forças para voltar lá depois do que aconteceu? — Perguntei.
Freddy sorriu, e foi um riso que me arrancou mais lágrimas.
— Vai conseguir, você sempre fingiu muito bem. Faz de conta que isso tudo não passou de um daqueles seus pesadelos estúpidos. E segue o baile. Vai se sair bem, é a sua cara esse papel. Não gosta de ser protagonista, maninha? Agora você é!
Aquelas palavras pareciam afiadas, e me transpassavam. Mais do que fingir, agora eu tinha a obrigação de tentar sair da zona de fogo, e ainda tinha o Freddy, que não conseguiria me olhar diferente.
Eu sempre fiz planos para sair de casa antes dos 18. Quando o Freddy foi morar com a noiva, pensei: está chegando a minha vez. E eu estava certa. Mas não tão certa a ponto de considerar que, se algo desse errado no casamento dos meus pais, eu teria que adiantar os planos. E foi o que aconteceu.
Os meus pais se divorciaram. Minha mãe foi morar com a irmã na Itália. O meu pai sempre trabalhou viajando. No fim das contas, só restava o Freddy e eu. Passei a morar com ele quando venderam a casa na qual crescemos. Desde então, ele sente a necessidade de me tratar como uma intrusa.
Mas não foi sempre assim. No começo, isso assim que passamos a morar juntos, o Freddy e eu nos dávamos muito bem. Ele era mais atencioso, menos dedicado ao álcool, e a me tratar como uma culpada. Talvez, e por alguma razão, ele ache que tenho minha parcela de culpa no divórcio dos nossos pais. Não faço ideia do que alimentou essa visão, mas parece ter feito crescer, dentro do meu irmão, um desamor desenfreado por mim, pela minha presença aqui.
— O que vai fazer com o corpo? — Questionei.
Ele olhou para o corpo, mais uma vez.
— Entregar a polícia, não posso ficar com ele aqui.
Entregar a polícia? Assim? Como se nada tivesse acontecido?
— Você está ficando louco? Se entregar o corpo do Marcos...
— Se eu não entregar teremos que desovar, e quando a polícia achar... Você sabe que isso será muito pior.
Eu sabia!
— E o que vai dizer?
Ele tinha tudo pensado. O meu irmão, além de egoísta, era muito calculista e sombrio.
— Que cheguei e o encontrei aqui. Você estava bêbada caída no sofá, e não viu absolutamente nada. Se procurarem por você não dirá nada, porque não lembra. Se foçarem, negue-se, diga que podem falar com o seu advogado. Por hora, isso será suficiente! Além disso, só preciso que fique longe do foco por algum tempo. Consegue fazer isso?
Claro, e é tão fácil ficar longe das encrencas das pessoas que acabam se tornando nossas encrencas.
— Isso não vai dar certo! — Disse em completo desespero.
Freddy soltou um sorriso debochado, como sempre.
— Se não der, seus próximos meses serão um verdadeiro inferno, maninha. Acredite no que digo!
Eu sabia o que era viver um verdadeiro "inferno", porque duas semanas atrás o trabalho se tornou o espaço de tortura, coisa que no começo eu ainda conseguia driblar.
— Não vai dar certo! O investigador está na minha cola.
— Então precisa se livrar dele. Pensa! Eu sei que é inteligente, vai se sair disso.
Não sabia se ele estava tentando ser gentil, ou se "esse voto de confiança" era, na verdade, por puro deboche.
Mas dei as costas e segui rumo ao lugar para o qual eu não gostaria de voltar tão cedo. Na universidade o clima era o mesmo. As aulas não faziam mais tanto sentido porque, por mais que eu gostasse do meu curso, a minha mente estava longe, sempre em um lugar em que não deveria, e que eu não gostaria de estar, que era...
— Prisão! — Exclama uma voz desconhecida que sentou ao meu lado.
Ela era novata, meio baixa, cabelos ruivos. Tinha olhos verdes, era muito bonita, por sinal. Sentou ao meu lado, e por alguma razão disse isso. Para uma mente já perturbada tudo é gatilho para surto.
— O que disse? — Perguntei tentando não deixar nítido meu nervosismo.
Ela sorriu, me olhou de um jeito estranho.
— Esse lugar é uma prisão. O que eu tô fazendo aqui? — Questionou.
Aquilo me trouxe certo "alívio". Ela só estava criticando o ambiente, e eu nem entendi bem, porque ela tinha escolhas. Se estava ali não era por "obrigação", pensei.
— Você não viu nada ainda. Parece que as horas não passam! — Respondi olhando para a porta.
Ela concordou balançando a cabeça e sorrindo. Por um momento tentei entender o que faria, de todas as cadeiras vagas naquela sala, ela sentar, justamente, ao meu lado. Meses atrás eu só diria "que ela tem bom gosto para companhias". Mas hoje em dia... Hoje tudo parece fora do lugar, inclusive, essa garota, que eu penso estar deslocada. Mas quem aqui não está?
— E você quer que passe mesmo? — Ela perguntou.
Que mania de pessoas estranhas acharem que sabem algo sobre nós.
— Claro que quero!
Não, eu não tinha certeza, e hesitei com o olhar.
— Sei. Nesse caso, tenta achar algo divertido por aqui, que eu tenho certeza que o tempo vai passar mais rápido. — Disse a moça piscando o olho.
Havia um frio me tomando naquele momento, e eu não sabia distinguir se era por tudo o que aconteceu antes do presente momento, ou se era pela presença daquela menina ruiva, que parecia ter sentado ali por algum motivo em específico. Isso começou a me perturbar. Como se já não bastasse os meus problemas.
A professora falava sobre orações subordinadas adjetivas. A maioria da turma abriu a boca pelo menos umas 2x, cada pessoa, claro. Não era a professora, mas o assunto não era lá um dos mais atrativos.
Mas logo a aula se tornou atrativa, porque alguém resolveu dar o ar da graça.
— Desculpe interromper sua aula, professora, mas preciso falar com Aline Veras, — disse uma voz grave que invadiu o ambiente de sala de aula. — Assunto confidencial e completamente jurídico, — completou o investigador.
Ele estava lá, já foi direto me caçar, como se eu fosse a presa mais fácil. E talvez eu fosse, afinal; fui para a Universidade após presenciar um crime, quem seria mais óbvio?
— Aline, por favor, acompanhe o investigador. — Disse a professora.
Meu corpo estava completamente gelado. Levantei lentamente. Todos os olhares se voltaram para mim. Caminhei pela sala, e foi como se tudo estivesse em completo silêncio. O som mais alto vinha da minha respiração, totalmente ofegante. Queria parecer menos nervosa perto do investigador, mas eu não conseguia controlar as minhas emoções naquele momento.
O homem me olhava com uma condenação pronta. Ela sabia que eu sabia, e não desistiria até arrancar a esperada confissão. Parece que estava trabalhando para isso, ultimamente: me condenar, bem como um dia jurou que faria. Ou o pai jurou que faria a alguém da minha família, não me recordo bem.
— Eu não estou me sentindo bem... — disse sussurrando perto do investigador.
— Vai passar, relaxe, é só você abrir sua boca, — dizia o homem de forma fria tocando o braço da jovem para guiá-la para fora daquela sala.
Eu precisava me livrar do investigador, o Freddy disse...
— Eu não vou para lugar nenhum com você! — Gritei.
O investigador segurou meu braço, me olhou seriamente.
— É só uma conversa... — respondeu o investigador observando os olhares juvenis que o atacavam na sala.
— Mas eu não quero conversar com você, e não vou, a menos que chame o meu advogado. — Disse puxando o braço e me afastando do homem.
Tentei ser inteligente. Uma conversa agora acabaria cravando em mim uma culpa que não me pertencia.
— Vai querer do jeito difícil mesmo? — Questionou o investigador nada contente com a situação.
— Vou querer do jeito "legal".
Percebi quando as pessoas ao meu redor começaram a me aplaudir com os olhos. Não gostavam de polícia, principalmente dos policiais que achavam que não precisavam seguir arrisca com os trâmites legais.
— Nos vemos em breve, senhorita Veras. — Respondeu o homem já se retirando da sala.
Respirei aliviada quando o vi cruzar a porta. Se eu sabia que a conversa com ele, mais uma vez, era inevitável, e que eu estava apenas comprando mais uma briga por conta de uma situação que nem causei? Sim, a resposta é "sim". Mas, eu precisava ganhar tempo, e foi o que fiz.
— Aí está a atração dessa aula! — Disse a menina novata com certa ironia em seu tom de voz.
— Isso não é um espetáculo! — Respondi um pouco grossa.
— Mas você deu um verdadeiro show com o chato do meu tio. — Disse sorrindo.
Minha nossa! A menina é...
— Você é irmã do Marcos? — Perguntei pasma.
A professora chamou minha atenção, mais uma vez. Acho que estou destinada a ser o centro dos olhares, no fim das contas. E agora eu tinha a certeza de que havia me metido em mais encrencas.
***
Mais tarde as encrencas seguiriam. Juramos que daríamos um tempo da salinha dos encontros, mas foi preciso descumprir o acordo.
— O que mulesta vocês acham que estão fazendo? — Alex dizia revoltado. — Ficaram loucas de vez? Esse lugar não pode mais existir para nós. Não entenderam isso?
Ele tinha toda razão. O combinado foi: sair do centro da coisa, e fizemos exatamente o oposto com esse encontro mais do que suspeito com todos os envolvidos no incêndio.
— O Marcos está morto! — Disse sem esperar muito.
Todos ficaram pasmos. O silêncio prevaleceu por pouco mais de 1 minuto, que foi quando alguém resolveu dar o ar da graça.
— Como sabe disso? — Pergunta Cássia nervosa.
Como eu não saberia, se presenciei tudo?
— Eu sei que está!
Rebeca se revoltou, para variar.
— "Você sabe?" VOCÊ SABE? ACHA QUE ISSO É SUFICIENTE? — Grita Rebeca.
— NÃO GRITA COMIGO, GAROTA! — Respondi furiosa.
A coisa já não estava feia o suficiente. Rebeca tinha que piorar com seu ódio por mim.
— VOCÊ É MUITO ESTÚPIDA! ESTÚPIDA NUM NÍVEL...
— CALA A BOCA! — Retruquei.
— SUA IDIOTA...
Ela partiu para cima de mim e eu a ataquei com fúria. Trocamos socos, puxão de cabelo, alguns chutes e pontapés. "Chamamos atenção", o suficiente para precisar de intervenção policial. Logo um alvoroço se formou na sala isolada, que agora era alvo dos olhares de muita gente, inclusive, da pessoa que "apartou a confusão", que foi nada mais nada menos do que a única pessoa com a qual eu não queria ter contato agora.
— Vocês duas devem me acompanhar até a delegacia. — Disse o investigador, que pareceu satisfeito em ter uma razão para me fazer ir até o seu "ambiente de acusação".
— Ela começou... — dizia Rebeca.
Alex, Natália e Cássia trocavam olhares suspeitos. E agora? Iríamos abrir o bico ou não? Quem soltaria primeiro? Quem seria o dedo duro? Rebeca e eu estávamos na vez. Como sairíamos dessa agora?
Durante o caminho nenhuma ideia foi trocada. Rebeca e eu fomos no banco de trás. O investigador estava no meio, nos separava. Dois policias nos escoltavam, como se isso fosse preciso.
— Primeiro as damas, — dizia o investigador aguardando que saíssemos do carro.
Rebeca desceu primeiro, e eu fiquei olhando, tentando uma comunicação através de olhares, mas ela não deu chances. O investigador esperou que ela saísse do carro, e também os policiais que nos acompanharam. Queria conversar comigo antes da conversa "oficial".
— Aline, eu não deveria, mas vou te dar mais uma chance de me ter ao seu lado nessa história. O que aconteceu antes do incêndio?
Eu não tinha reparado, mas o homem tinha belos olhos. Quase me fizeram falar mais do que deveria...
— Não é essa a razão de estarmos aqui. Quer saber o porquê da confusão na universidade, não é? Vou te dizer lá dentro. — Respondi descendo do carro.
Tentei parecer firme, firme o suficiente para perder "a chance de ter o Thomas ao meu lado na história". Por mais que eu quisesse ter alguém, e confiar em alguém, ele não era essa pessoa, e uma das razões para não ser era o Marcos, seu sobrinho, o mesmo que vi morrer sem fazer absolutamente nada. Como ele poderia ficar ao meu lado ao saber disso?
Era impossível!
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