Capítulo Único
Mesmo sendo quatro anos mais velho que eu, Alberto era forte como um touro. Eu nunca imaginei que ele morreria antes de mim.
Nós já havíamos combinado que eu partiria primeiro e arrumaria uma bela moradia para nós no paraíso, mas então ele se foi. Na minha idade eu já deveria saber que a vida não espera por nós, nem se importa com os planos, que nós, simples mortais, fazemos.
Com a destruição dos meus planos só restou incerteza.
Alberto nunca soube escolher papéis de parede, nem o melhor lugar para colocar as janelas. Se ele estiver agora, decorando a nossa morada no céu, as paredes vão ser brancas em todo os cômodos, com janelas onde não bate o sol, ou pior, janelas no lado certo.
A claridade começa a incomodar depois que passamos dos setenta.
Depois de certa idade tudo vira incômodo, na verdade. Os raios de sol pela manhã, o barulho dos netos no fim de semana, os filhos querendo tirar o pouco que resta da sua liberdade...
— É querido. Eles se esqueceram do meu aniversário.
O vento chicoteou meu rosto com sua força gélida. Fechei o casaco de lã grossa, os botões apertaram as gorduras a mais da minha barriga.
Ah, a velhice, tão encantadora... Sintam a ironia!
A grama alta, do cemitério descuidado, balançou no mesmo ritmo dos lírios brancos que foram postos no vaso acoplado a sepultura cinzenta.
Tão cinza no branco, tão triste, tão diferente de você.
— Eu não quero mais ficar aqui. Você podia agilizar as coisas por aí e vir me buscar logo, me levar pra junto de você.
O vento continuou levando as minhas palavras, que na juventude escorriam serenas da minha boca, doces e suaves. Agora são notas roucas e cansadas.
Passei meus dedos, ossudos e enrugados, pelas letras entalhadas na pedra: Alberto Souza Marino. Grande esposo, pai e avô.
É impressionante como um ano pode apagar coisas que levaram uma vida inteira para serem construídas. Esqueceram que ele era ótimo, esqueceram-se dos bons momentos em família, perderam a velha rabugenta aqui de vista também, embora eu esteja viva.
Bom, eu sou um corpo operante, embora não tenha certeza que ainda exista vida em meu coração. Tudo acabou por perder o sentido para mim no último ano. Não o sinto mais por perto, e sem a presença do meu Alberto, minha alma se tornou fria e opaca.
Não é essa a lei da vida? Você cria seus filhos para o mundo e os ensina a dar os primeiros passos. Depois eles caminham sozinhos, se casam, arrumam empregos e te dão netos. Precisam cuidar da nova família e os mais velhos vão virando meras lembranças. Somos deixados de lado.
Os velhos bonzinhos se resolvem com a família e aceitam ir para casas de repouso.
Uma ova que eu vou deixar a minha casa, cheia de belas memórias por um lugar estranho e cheio de velhas. Eu posso ser velha, mas basta a mim viver ruminando reclamações pelos cantos, não as jogando por aí, para qualquer um escutar.
Como disse uma das minhas netas certa vez: "Quem cala, não enche o saco". Na ocasião a chamei de mal-educada e culpei meu filho por ser um pai frouxo. Hoje, vejo que ela tinha razão.
— Você está falando sozinha? Eu também falo sozinhas as vezes. — Uma voz infantil fez meu velho coração disparar.
Embora o sol não tendo aparecido no céu hoje, tapei a claridade com a mão. A luz é a inimiga da minha catarata.
— Quase me matou do coração. O que uma criança faz num cemitério? — Olhei em volta e não avistei ninguém. — Sozinha? Onde estão os seus pais?
— Papai está na padaria e a mamãe lavando roupa. — O vestido amarelo da menina balançou a sua volta.
Senti que conhecia aquela peça de roupa, mas logo descartei a ideia.
Seus movimentos eram graciosos e ininterruptos. Ela parecia elétrica, não parava de se mexer nem por um segundo.
— Vá para casa, é perigoso na rua.
Ela revirou os olhos castanhos e cheios de vida.
Malcriada...
— Que bobagem! Eu não tenho medo. Papai diz que eu sou uma garota forte — Levantou e fechou os pequenos punhos —, forte como um tijolo. Ontem mesmo eu cai da laranjeira do vizinho e só arranhei aqui ó. — Levantou o bracinho, mostrando o hematoma no cotovelo.
Forte feito tijolo, papai também me dizia isso.
— Seus pais devem ser uns descuidados mesmo. Com esse frio e você de vestido. — Encarei as letras na lápide. — Veja isso, Alberto! É assim que as crianças são tratadas hoje em dia.
— Que nada! Eu não sinto frio. E mamãe fez esse vestido para mim ontem. Ele é lindo, né? Ah, eu ganhei do papai um presente também, olha só.
Ela me mostrou o objeto, estreitei os olhos para o cordão simples, com uma medalhinha de nossa senhora pendurada.
Não podia ser! Aquela era a minha medalhinha.
— Como você me roubou isso? — Esses pivetes têm mãos de mágico, são capazes de roubar as suas roupas de baixo sem que você perceba.
— Eu não sou ladrona! — gritou enraivecida e bateu com as mãos nas laterais do corpo miúdo.
Levei a mão por baixo do meu casaco para encontrar o meu cordão.
— Eu ganhei de aniversário. Era da vovó Gertrudes, ela deu pro papai e ele me deu.
Apertei nossa senhora entre os dedos.
Valha-me nossa senhora.
Senti os batimentos acelerados. Mais rápido e eu morro de infarto.
— Por acaso o seu nome é Margarida? — perguntei.
Ela confirmou com a cabeça e completou: — E o seu também.
— Como é que você...como eu... — Era só o que me faltava ficar senil!
— Foi assim: puft! E eu apareci aqui. É coisa do papai do céu. — Ela ficou de pé sobre a sepultura. — Noossa, eu vou ter rugas.
Senti as pequenas mãozinhas quentes no meu rosto, tocando cada marca da minha pele.
Analisei os cabelos cortados pouco acima do ombro, castanhos como eu nem lembrava mais. Os olhos brilhantes e inocentes, bem diferentes dos sofridos e sem vida de hoje.
— Me conta o que você tem — pediu de mansinho.
Suspirei e alisei a calça de tecido pesado, que não estava me aquecendo como deveria.
— Estou cansada da vida, sou velha demais e o nosso marido morreu.
Seus olhos quase saltaram das órbitas.
— O Pedro vai morrer? — As mãos foram parar na sua boca, pelo espanto.
Pedro? Ah, sim. Meu namorado na terceira série. Lembro vagamente de quando ele me olhava e ria de nervoso. Era assim o nosso namoro, de longe, nunca trocamos mais do que dez palavras. Eram outros tempos.
Hoje em dia eles trocam saliva, carícias e sabe-se Deus o que mais.
— Ah, meu bem. Eu não me casei com o Pedro, me casei com o Alberto. — Fechei os olhos e pude enxergar a nossa mocidade. Juntos tanto quanto o meu pai permitia, que era a uma janela de distância.
— Alberto?! Aquele Alberto? O chato que cuspiu no meu cabelo? — Balançou os braços, exasperada.
— Ele cuspiu em mim? Não me lembrava mais disso. — Soltei uma breve risada. — Alberto virou um grande homem e um ótimo marido.
— Vocês tiveram bebês?
— Sim, dois. Rosa e Fábio.
— Eles brincam juntos?
— Quando eram crianças, sim. Brigavam o tempo todo, mas quando alguém tirava um deles do sério, o outro saia em defesa. Porém eles cresceram, tiveram filhos...
— Uau! Eu vou ser avó. Eu vou brincar com meus netos?
Soltei o ar, vendo a energia que um dia foi minha, e invejando a mim mesma.
— Não, você vai brigar com eles.
— Eu virei uma velha chata! — Caiu sentada a meu lado. — Chata, chata e chata.
— Quando você tiver catarata, problemas de coluna e usar uma dentadura vai sentir na pele como é.
Meu eu criança pulou para perto do meu rosto, ficando em pé em cima da lápide novamente. Abriu um sorriso enorme e se aproximou devagar.
— Eu sempre quis ter uma dessa. Até pedi de aniversário...
Movi o tronco para trás, na medida do possível.
— Você queria o que?
— Uma dentadura. Me deixa ver.
A afastei com a mão.
— Eu não vou mostrar a minha dentadura, menina. Sai daqui.
— Eu sou você e essa dentadura é nossa. — Insistiu e teve sucesso. Suas mãos alcançaram e arregaçaram minha boca.
Seu sorriso desapareceu e ela piscou duas vezes.
Estranhei o gesto.
— O nosso tempo vai acabar. Vem comigo.
Segurei firme a bengala de carvalho e obriguei meus joelhos a se desdobrarem, fiquei cerca de um minuto parada em pé, até criar coragem para seguir os passos da pequena eu.
Sua mão babada segurou a minha. Pelo menos a saliva é minha.
Partículas da infância invadiram minha cabeça, doces memórias de um tempo que não volta mais.
" — Obedece a professora e aprende tudinho. Mamãe te ama." Consegui ouvir claramente a voz doce de mamãe e sentir seu cheiro de sabonete.
" Volta pra casa antes de escurecer ou vai levar palmada" Os avisos assustadores de papai me fizeram sorrir de leve.
Ela continuou me conduzindo por entre as lápides, os pés afundando na grama.
— Eu queria ficar mais tempo, mas não posso. — Foquei nela, que sorriu para mim. Os dentinhos de leite brilhando. — Me pediram pra te trazer até aqui.
Ela apontou e eu segui seus dedinhos com os olhos.
A bengala caiu da minha mão. Minha boca abriu em confusão.
Lá estava ele, com luz emanando de seu corpo e um sorriso esplendoroso.
O meu Alberto.
Devagar ele veio até mim e estendeu a mão. Sem hesitar a peguei e apertei forte, para sentir que ele estava mesmo ali.
Era real.
— Eu ouvi tudo que você disse, meu bem. Mas não posso te ajudar. — disse, entoando cada palavra calmamente. Aquilo soou como música para meus ouvidos.
— Ah, Alberto. Você está aqui, você pode.
Negou com a cabeça.
— A sua missão ainda não está completa.
— O que eu preciso fazer? Me diga.
Seu sorriso iluminou tudo a nossa volta, seu perfume natural aguçou meu olfato.
Levei a mão direita até seus cabelos alvos e lhe afaguei de leve. Uma paz se instalou no meu corpo e alma.
— Você sabe o que fazer. Precisamos ir agora. — Sua mão escorregou por entre meus dedos e ele me deu as costas.
Estiquei o braço para segurá-lo, porém minha mão atravessou seu corpo. Desespero começou a me atingir.
Eu senti a maciez da pele dele segundos atrás, isso não pode estar acontecendo.
— Feliz aniversário, querida. — As notas doces se perderam no ar.
Dei um passo vacilante, mas já era tarde. Alberto já estava muito longe e junto dele, correndo em sua volta, a criança que fui um dia.
Ela pulou, pulou e pulou, tentando apanhar alguma coisa. E então os dois sumiram.
As lagrimas que eu não imaginava ser capaz de derramar escorregaram por meu rosto. Ainda com o braço esticado senti quando um inseto pousou em mim.
Puxei a mão até o rosto para ver melhor.
Uma borboleta amarela com linhas negras nas asas continuou parada em meu indicador, movendo as anteninhas de leve. Fiquei hipnotizada com a coloração do animal.
De repente eu tinha dezoito anos e estava com Alberto na varanda, fazendo planos para o futuro.
" — Nós vamos colocar limites nos nossos filhos, para não ficarem mimados. Vamos ler para eles antes de dormir e dar um beijo de boa noite. Você vai brincar de avião com eles... — Meus pensamentos voavam alto quando seus braços estavam a meu redor.
Aquilo não seria permitido se não estivéssemos casados, contudo nós éramos marido e mulher a um ano e a casa nos pertencia a três meses. Estávamos gozando da liberdade que o nosso lar proporcionava. Abraços na varanda, uma pia nova, pregos na parede e quadros pendurados neles.
— Você sabe que eu não sei ler...
Alberto não estudou, pois precisou trabalhar desde muito cedo com o pai, para ajudar nas despesas da casa. Depois teve de me sustentar e os estudos ficaram esquecidos em algum ponto do caminho.
— Alberto, isso não importa! Eu leio e você escuta junto com eles.
Suspirou, me apertando de leve. Me senti carne da sua carne, como se fizesse parte de seu corpo. Era assim que ficávamos sempre, juntos. Embora meu pai não permitisse uma distância menor do que a da janela da nossa sala, sob a vigilância de seus olhos atentos, quando erámos noivos.
Depois do casamento eu consegui abraça-lo de verdade.
— Eu quero dez — disse e beijou minha nuca.
Eu ri alto e me encostei mais ainda em seu peito.
— Quem sabe.
— Eu quero dar pra eles tudo que eu não tive. Amor, um lar sem brigas e quero isso sempre. Até quando um de nós estiver morto. Nós vamos cuidar dos nossos frutos sempre.
— Eu prometo, querido.
Olhei no fundo de sua alma, porque era assim toda vez que nossos olhos faziam contato. Uma conversa de almas.
Uma borboleta sentou em minha coxa. Fiquei encantada com a delicadeza do bichinho. Coloquei meu dedo perto dela e então ela subiu.
— Me dê a sua mão — pedi e ele obedeceu, sem entender nada.
Passei o bichinho para a mão dele e sorri.
Juntos nós levantamos as mãos e ela voou para longe.
Aquele foi o selamento do nosso compromisso. Uma promessa que tomou forma e rumo nas asas de uma borboleta. "
Voltei para a realidade e a borboleta já voava longe.
Limpei o rosto com a mão e me abaixei até conseguir pegar a bengala. Funguei três vezes e suspirei.
— Eu prometi e vou cumprir, querido. — Cacei do bolso o aparelho celular.
Isso sim foi uma bela criação. Poder conversar com as pessoas a distância! Esplêndido!
Apertei uma série de botões até achar o número de Rosa. Chamou, chamou e só no quarto toque ela atendeu.
— Mãe, pelo amor de Deus, onde a senhora se meteu? Eu te procurei na sua casa, na igreja, fomos até na polícia. — Ouvi a voz de Fábio ao fundo.
— Eu estou viva e bem, só preciso de uma carona. Será que pode me buscar aqui no cemitério? — Avistei ao longe uma família que acabava de chagar para visitar algum parente.
— No cemitério? A senhora não existe, mãe. Nós preparando uma festa surpresa e a senhora no cemitério.
Senti uma alegria quase infantil com a menção de uma festa.
— Eu estou surda, nem escutei isso. — O sorriso transpareceu em minha voz.
Ela riu do outro lado.
— Já estamos indo. Fique onde está!
Escondi o aparelho no bolso interno do casaco.
Voltei para a lápide de Alberto e sentei na pedra gelada. Uma risada escapou da minha boca.
— Eu tenho muito trabalho pela frente. Preciso reestruturar a nossa família. Amar os nossos netos e ajudar os nossos filhos. — Dei duas batidinhas no concreto, como que para chamar a atenção dele. — Vou precisar de alguns anos a mais aqui na Terra.
O vento assoviou, um som alegre e aconchegante. Tomei isso como um sinal de que eu estava no caminho certo, um incentivo para seguir em frente.
Mesmo que meu tempo seja escasso, tentarei aproveitá-lo da melhor maneira possível. Vou amar cada um dos meus familiares e cavar minha existência em suas memórias. Farei de tudo para cumprir o nosso combinado, Alberto.
Se a raiz está bem firme, a árvore vive. Eu sou essa raiz e estou mais forte do que nunca!
Escutei a porta de um carro bater e segui o som, virando a cabeça na mesma direção.
Avistei Rosa, esfregando uma mão na outra. A cabeça de Fábio apareceu pela janela do lado do motorista, sussurrando alguma coisa para a irmã. Os meus nossos filhos, Alberto...
Meus pensamentos divagaram, enquanto Rosa caminhava em minha direção.
Lembrei-me de quando eles nasceram, frágeis e inocentes, tão pequenos que cabiam na palma da mão. E atualmente, adultos e crescidos.
Meu peito inflou de orgulho.
Eles estão grandes mais para as minhas mãos, não posso mais mantê-los em meu abraço e protegê-los do mundo. Rosa e Fábio se tornaram infinitos aos olhos do mundo, contudo, na minha visão, sempre vão ser do tamanho certo, aquele que se encaixa perfeitamente em meu coração.
Como eu pude esquecer do que tinha prometido?
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