XX - Sempre
Estava tão nervoso como estivera da primeira vez. As palmas das suas mãos suavam e tinha o coração a bater com força. A sua visão afunilava-se, ouvia os sons como se estivesse dentro de água, a debater-se para regressar à superfície. Transido de medo, era a definição mais adequada.
Respirou fundo.
Tinha sempre conseguido ser mais forte do que os seus terrores. Não seria agora que, com mais bagagem e toda uma vida atrás de si, num currículo impressionante de sucessos e de apresentações que eclipsavam os falhanços, pois que também tinham existido, iria baquear.
E assim respirou fundo e subiu àquele palco.
Sozinho.
Maio de 2018. Seria demasiado cedo? Nem um ano passara...
Os aplausos foram tímidos, o sol ofuscou-lhe o olhar e ele agradeceu por ser de dia, por ser um local mais pequeno, quase amador, por haver luz. Não suportaria esconder-se na noite, numa arena enorme e ele pequeno diante da sua própria coragem, a ver desfilar diante de si os vultos dos medos que tentava afugentar.
Uma mesa de mistura, um computador, um teclado, tudo devidamente ligado a um sistema de som suficientemente potente para se fazer ouvir pela assistência, microfones, guitarras. Apresentou-se. Achava que não precisava, mas impunha-se uma introdução. Apresentou-se com o seu nome e recebeu mais palmas, uns quantos assobios de incentivo.
Era um começo. Era o que precisava para continuar, porque ele não iria desistir.
Como era de seu feitio, entregou-se com simpatia e altruísmo à apresentação. Sorria, forçava os sorrisos, falava, tentava alcançar o público apático, rostos expectantes – o que esperavam dele? Nada ou tudo. Tinha a impressão de que não sabiam o que ele estava ali a fazer, quem era... Mas depois havia algumas pessoas que cantavam as suas canções, que puxavam por ele, que o aclamavam. Estava a ser difícil, mas ele prosseguiu e não desistiu.
O espetáculo foi curto, ele achava que não conseguia fazer mais, naquela fase. Apalpava o terreno, pisando-o devagar, receando as armadilhas que lhe podiam trincar os tornozelos. Ele também não queria fazer mais. Não se podia imolar logo no primeiro estágio daquele processo. Haveria de saber o que fazer depois daquilo... lentamente, pé ante pé, passando pelo trilho dissimulado, evitando os buracos e os perigos.
Em privado, preparara o espetáculo com a minúcia de um joalheiro. Fez escolhas, tomou decisões, organizou listas, temas, um conjunto que fosse do seu agrado e, principalmente, que fosse também do agrado do público. Fora sempre cuidadoso com as suas apresentações, usando de uma cortesia delicada que lhe era endémica. Iria estar sozinho e, portanto, a responsabilidade cabia-lhe por inteiro.
Ele não precisava de se acanhar ou de julgar que estava a fazer mais do que lhe competia. Conferenciara com os outros membros da banda Linkin Park, com Brad, Rob, Dave e Joe, sobre o que pretendia fazer, apresentar-se a solo. Todos lhe tinham demonstrado o mais incondicional dos apoios. Ele agradecera, emocionado. Outras vozes, de amigos, de companheiros de ofício, de familiares, lhe tinham assegurado que ele estava a fazer muito bem.
Espantar fantasmas, reerguer-se mais ou menos intacto.
No fundo, ele, Mike Shinoda, tinha uma carreira musical bastante prolífica e não se devia envergonhar disso. Para além dos Linkin Park tinha um projeto paralelo chamado Fort Minor e apresentava no seu extenso currículo de artista diversas colaborações na área da composição musical. Era um designer gráfico que mantivera os seus projetos pessoais, relacionados ou não com a música, era também um artista plástico que fizera algumas exposições do seu trabalho no desenho e na pintura. Não existiam, realmente, motivos para se esconder do mundo.
E o mundo clamava por ele. Principalmente os fãs órfãos que choravam nas redes sociais, em diversos tributos, a perda de Chester Bennington.
Ele queria poder agradecer a toda e qualquer pessoa as palavras de apoio e as demonstrações de carinho que ele e os outros haviam recebido durante aquele ano de intensa turbulência emocional e a melhor forma de o fazer, sabia-o, era regressar aos palcos. Como Mike Shinoda dos Linkin Park. Cantando. E então, nos intervalos das canções, poderia falar. Abrir o seu coração, mostrar a sua gratidão, deixar as emoções fluir. E seriam humanos todos juntos, ele e os fãs, numa comunhão extraordinária dessa grande família que usava a banda como sobrenome.
E para isso teria de subir a um palco. Um palco diferente dos que ele se habituara nos últimos quinze anos. Não se importava. O que ele queria era consolo, para consolar pela mesma via. Sentimentos que ele distribuiria porque lhos davam a ele. Uma partilha absoluta de tudo.
Estava preparado. Julgava que estava. Malgrado o medo.
Era maio de 2018... Demasiado cedo? Não, não era.
Havia uma canção dos Fort Minor que ele reviu com uma nostalgia doce. Tinha sido escrita com um propósito diferente, mas agora sucedia que todas as suas canções se revestiam de um significado mais profundo e podiam ser aplicadas à ocasião que se apresentasse, funcionando como hinos que ecoavam o momento.
Where'd you go
I miss you so
Seems like it's been forever
That you've been gone
Para onde foste
Tenho tantas saudades tuas
Parece que foi há tanto tempo
Que te foste embora
Pareceu-lhe perfeita para ser misturada com uma outra, essa dos Linkin Park, que fazia parte do alinhamento do álbum "A Thousand Suns" que ele ouvia por aqueles dias, navegando por entre destroços frios e rochas incandescentes, em busca da mensagem que existia lá dentro, que antes tinha sido tão evidente, agora não passava de um borrão informe no meio de denso nevoeiro. Qualquer coisa como o triunfo do amor... e ele que sentia tudo como fútil. Falso. Superficial. Vazio. Não havia mensagem nenhuma, pois não?, nesse célebre álbum conceptual que enfureceu tantos fãs... Não havia nada.
A canção era "Waiting for the End". Nesta escutava-se a simbiose das duas vozes do grupo, a dele e de Chester. Começava ele a cantar e era como um aviso.
This is not the end, this is not the beginning
Just a voice like a riot rocking every revision
But you listen to the tone and the violent rhythm
And though the words sound steady something empty's within them
Este não é fim, nem o princípio
Apenas uma voz como um tumulto a balançar qualquer conceito
Mas ouves o tom e o ritmo violento
E embora as palavras te pareçam firmes algo soa vazio nelas
Era um excelente mote. Não existia uma conclusão, nem um início. Havia a noção de ciclo perpétuo, de que podíamos começar quando terminávamos e que estávamos sempre em movimento, empurrados pela arte. Naquele caso, pela música. Som. A toda a volta havia som. O nada converteu-se em notas musicais.
We say yeah with fists flying up to the air
Like we're holding onto something that's invisible there
'Cause we're living at the mercy of the pain and the fear
Until we get it, forget it, let it all disappear
Nós dizemos yeah com punhos apontados ao ar
Como se estivéssemos a agarrar alguma coisa que é invisível
Pois estamos a viver à mercê da dor e do medo
Até percebermos, esquecermos, deixamos tudo desaparecer
Por vezes, o verbo escapava-lhe e ele via-se impotente diante da sua mudez, da sua pequenez. Conseguia sorrir agora ao escutar a canção, Chester a sussurrar-lhe o que ele estava a sentir – a escuridão, o desespero, a raiva. A sua voz calada e a sua individualidade reduzida.
Chester dizia-lhe aquelas palavras através do tempo e ele sorria.
Mas já tinha chorado.
Waiting for the end to come
Wishing I had strength to stand
This is not what I had planned
It's out of my control
Flying at the speed of light
Thoughts ere spinning in my head
So many things were left unsaid
It's hard to let you go
À espera que o fim chegue
Esperando ter forças para aguentar
Isto não foi o que planeei
Está fora do meu controlo
A voar à velocidade da luz
Os pensamentos rodopiam na minha cabeça
Tantas coisas que ficaram por dizer
É difícil deixar-te ir
Ele não era dado a grandes explosões emotivas. Conseguia ser controlado, ser lógico, focar-se no que era essencial e não se desmanchar perante uma situação de aflição ou de pânico. No dia da notícia da morte de Chester ele tinha-se aguentado razoavelmente bem. O único sintoma do seu estado de choque foi ter perdido a fala. Não conseguia falar, mesmo que abrisse a boca para fazê-lo. Era como se a voz estivesse presa algures entre a garganta e os pulmões e se recusasse a sair. Ao fim de algumas tentativas desistiu de tentar dizer alguma coisa.
Dias depois, talvez um mês ou dois depois, ele tinha, por fim, desabado. A sua resistência cedeu e todo ele se desmoronou como uma ruína caduca de um mundo antigo. Estava no chuveiro e sentiu uma pontada tão forte no peito que julgou que estava a ter um enfarte. Ia para gritar por ajuda quando percebeu que era mais do que um ataque cardíaco. Era o corpo a reagir, a sacudir-se, a tentar manter-se funcional mesmo que a alma que o habitava se recusasse a ceder. Percebeu que tinha de se libertar.
Assentou as mãos na parede de azulejos, dobrou-se numa corcunda escondendo a cabeça entre os ombros e um enorme urro rasgou-lhe as cordas vocais.
Estava gente em casa. Visitas. Pancadas fortes na porta, a voz da Anna.
- Michael? Michael, estás bem? O que se passa?
Com a água morna, quase fria, a fustigar-lhe as costas como um látego chorou convulsivamente.
- Vou entrar, Michael! Responde-me... o que se passa?
Foram lágrimas, ranho, baba e dor, expulsou tudo de si. Quando terminou, tinha os olhos inchados e doridos, a pele engelhada e molhada. Nem sabia dizer por quanto tempo estivera debaixo do chuveiro. A Anna estava dentro da casa de banho, a chorar também, as mãos crispadas sobre a boca. Vira-o e deixara-o. Sabia que era necessário. As visitas tinham ido embora, a casa estava silenciosa. Nem crianças, ninguém. Só ele, o seu sofrimento e a sua mulher.
Desligou o chuveiro e sentou-se no soalho ladrilhado e encharcado, apertando-se numa bola, juntando as pernas cruzadas a si. Uma toalha foi colocada sobre os seus ombros. A Anna sentava-se ao seu lado, apertava-o contra o corpo soluçante.
- Porra, isto soube bem...
- Michael, estou aqui contigo. Amor, estou aqui contigo...
Estava pronto, assim julgava, para a próxima etapa.
Pranteado o amigo, iria tentar viver o mundo sem ele. Logo veria como resultava a tentativa.
Sim, logo veria...
I know what it takes to move on
I know how it feels to lie
All I want to do
Is trade this life for something new
Holding on to what I haven't got
Eu sei o que é preciso para avançar
Eu sei o que é mentir
Tudo o que quero
É trocar esta vida por algo novo
Agarrado ao que eu não tenho
A canção dizia a verdade. Naqueles dias ele contava mentiras quando respondia que estava tudo bem com ele. Na realidade, não estava e ele procurava, desorientado, por um sinal que o recolocasse na estrada correta.
Mais tarde descobriria que lhe cabia definir essa estrada.
Sitting in an empty room
Trying to forget the past
This was never meant to last
I wish it wasn't so
Sentado num quarto vazio
A tentar esquecer o passado
Isto nunca foi para durar
Quem me dera que fosse diferente
Tinha de recomeçar.
Tinha de perceber que o que tivera, deixara de existir – os Linkin Park eram os seus seis membros. Mike Shinoda, Chester Bennington, Brad Delson, Dave "Phoenix" Farrell, Rob Bourdon e Joe Hahn. Sem um dos membros a estrutura colapsava, era falha, era incaracterística. Passado um ano a conclusão era inevitável e clara, mas naqueles dias em 2017 ele enojava-se ao pensar que a estrada era outra. Na encruzilhada tivera de tomar uma decisão. Abatido por essa responsabilidade, deixara-se estar no centro da interseção dos caminhos, inerte, sem querer decidir porque não queria perder o que já estava, para sempre, perdido.
Ele estava a desistir...
What was left when the fire was gone?
I thought it felt right but that right was wrong
All caught up in the eye of the storm
And trying to figure out what it's like moving on
And I don't even know what kind of things I said
My mouth kept moving and my mind went dead
So I'm picking up the pieces, now where to begin
The hardest part of ending is starting again
O que sobrou quando o fogo se apagou?
Pensava que ficava tudo certo, mas esse certo era errado
Apanhado no centro da tempestade
E a tentar perceber o que significa avançar
E eu nem sei que coisas eu disse
A minha boca continuou a falar, mas a minha mente morreu
Então eu recolho os pedaços, agora por onde começo
A pior parte do fim é começar de novo
Quando essa era, no fundo, a solução.
Não desistir.
Mike tinha nas suas costas a estrada que os seus pés conheciam tão bem. Um percurso notável, calcorreado ao lado de amigos, com o apoio deles. Se ele olhasse por cima do ombro via que era um bom lugar onde podia estar. Acolhedor e reconhecível. Mas era tão só habitado por fantasmas e recordações. Se ficasse preso nesse lugar, estagnava. O seu espírito recusou-se.
Nos seus flancos tinha percursos que já se encontravam esgotados antes mesmo de os começar a explorar. Significavam o recolhimento, o anonimato, a consolação de lugares onde nada lhe era exigido. Outro marasmo. Não podia ficar eternamente parado num limbo, à espera da sorte ou do azar. O seu espírito também se recusou a enveredar por aí.
À sua frente tinha o desconhecido. O futuro. Era assustador, tanto podia ser um abismo perigoso, como um paraíso sonhado. Convenceu-se de que não conseguia ter respostas se se mantivesse estacionado na encruzilhada, a balançar entre o passado e o presente. E avançou.
Essa tinha sido a sua resolução. Não desistir.
E Mike Shinoda não desistiu.
Em 2018, ele preparava-se para regressar aos palcos. Estava amedrontado, mas também estava confiante e excitado. Ia experimentar... Ia entregar-se, de alma despida, a esse mundo novo. Dave dera-lhe toda a confiança e Brad, de olhos húmidos, afiançara-lhe que o iria apoiar sempre, em qualquer ocasião. Rob dissera-lhe que tinha muito orgulho no que ele estava a fazer e Joe contara-lhe que estava à espera que ele continuasse a ser o guardião do que eles tinham criado, que não se podia perder, pois era-lhes bastante precioso.
Escolhendo as canções, revendo-as com um carinho extraordinário, percebendo-lhes novos significados estranhamente proféticos, compreendendo como tudo fora imensamente especial, ele reservava parte do seu dia para conversar com o amigo perdido. Já não carpia, como o fizera, a sua ausência. Antes comprazia-se com as maravilhosas recordações que tinham partilhado juntos.
Os momentos engraçados e de tensão. Os palcos que tinham pisado, os bastidores, os encontros com os admiradores, os exageros, os detalhes, as horas intermináveis e o tempo que passara demasiado depressa, os sorrisos, os gritos e as lágrimas, a potência criadora que brotava inesperadamente, o companheirismo e a competição, as vezes que se tinham abraçado e todas aquelas ocasiões em que se tinham separado, as penas e as alegrias, o êxtase e o desengano, a falta de paciência e aquele pequenino instante em que se entendiam tão maravilhosamente bem, ao ponto de o mundo deixar de existir e serem só eles os dois.
Estava tudo guardado e exposto nas suas canções.
Tinha sido bastante bonito.
Contudo, ele já não iria lamentar-se pelas estradas não percorridas, por aquilo que deixara de contemplar, porque o amor permanecia e esse era deveras eterno, incomensurável, magnífico. A mensagem perene que se escondia por detrás de qualquer letra, canção, poema, gesto, conceito. Afinal, sempre existia a mensagem. Ele é que estivera cego e magoado e esquecera-se de como se fazia para encontrá-la.
E Mike murmurou, em paz consigo próprio:
- Já descobri... Descobri, Chester. Não preciso de te dizer adeus. Nunca. Vais estar sempre comigo. Porque não é o fim, nem o princípio. Somos nós, para sempre. Pode ser assim, para ti? Porque para mim está ótimo. Nunca te direi adeus.
Fechou os olhos e soube que iria ser feliz.
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