XII - Confronto
Mike Shinoda vinha arrasado. O dia fora péssimo e ele só queria esconder a cara num travesseiro e deixar-se ficar imóvel durante muito tempo. Morrer e só ressuscitar quando se sentisse melhor, se porventura iria conseguir ficar saudável depois daquela humilhação. Num mundo perfeito ele desligava-se, formatava o disco rígido para eliminar aquele dia, tudo esquecido e podia começar de novo, numa base zero. Limpo. Mais feliz. Na ignorância de uma mentira.
A entrevista nem chegara a acontecer. Ele e Brad Delson esperaram o dia inteiro encerrados numa sala de espera minúscula, sem janelas, a ver as horas passar, a receber desculpas atrás de desculpas por, pelo menos, cinco secretárias diferentes. Velhas, jovens, gordas, magras, desagradáveis todas elas.
O executivo júnior não os tinha recebido. Uma agenda demasiado cheia. Tinha aparecido um assunto muito urgente de última hora. Desculpas atrás de desculpas. Eles não abandonaram o edifício. Iriam falar naquele dia com o senhor-super-ocupado-e-demasiado-importante-para-receber-miúdos-mal-encarados Patterson. Foi, portanto, um dia repleto de exageros e de equívocos. No final, quando ameaçaram chamar a segurança para os pôr dali para fora ao pontapé, Mike pediu a remarcação da entrevista, alegando que tinham vindo de demasiado longe e que aquilo tudo fora lamentável. A secretária ruiva, a última de um rol de mulheres horrorosas que ali trabalhavam, sem desfitar a agenda eletrónica aberta no seu monitor, apontou-lhes para dali a um mês.
Brad gritou que não podia ser. Mike empalideceu e enrubesceu. Após muito insistir, já com o homem da segurança nas costas a postos para escoltá-los para a rua, foi-lhes dito que voltassem dali a dois dias, pelas seis da tarde. O senhor Patterson iria atendê-los nessa hora, no fecho do expediente. Mike agradeceu, deixou um cartão com números de telefone, deixou a cassete áudio com as canções em modo demo e saiu empurrando Brad.
Ao receber a brisa fria do início da noite, o peso daquele monumental falhanço venceu-o e Mike silenciou-se, amuado com tudo o que acontecera. Brad não falou com ele e ficou a fazer desenhos invisíveis com o dedo no vidro do suburbano, a ver os arranha-céus a passar e a desaparecerem para darem lugar a uma paisagem citadina mais monótona e subterrânea, quando o comboio passava mais rente ao chão.
Mike estava mais do que arrasado. Sentia-se trucidado por um monster truck, espezinhado até à alma pelos pneumáticos gigantes. Mal sentiu a maçaneta da porta do quarto do hotel. Desde a manhã que não comia nada. Estava esfomeado e dormente.
Brad passou por ele que ficou a segurar a porta sem saber muito bem o que fazer a seguir. O cérebro estava como que desligado. Se o deixassem, derretia-se logo ali, no corredor. Com a mão livre esfregou a cara. Tinha de parar de ser melodramático. Não estava tudo perdido. Na véspera da sua partida para Los Angeles iriam conseguir a tão ansiada entrevista com o Patterson. Engoliu em seco. E se fosse outro engano? Não, não. Também tinha de deixar de ser pessimista. Só tinha sido mais uma recusa. A banda estava a colecionar rejeições como se fossem cartões de jogadores de baseball. Algum dia haveria um "sim". Ele continuava a acreditar no projeto. Nesse último dia jogariam o nome do Jeff Blue, o seu agente em Los Angeles, fariam um escândalo ou uma reclamação veemente. Aquela ida a Nova Iorque iria valer a pena.
Fechou a porta do quarto. Descobriu Chester sentado na beira da cama, a fumar. Na outra mão segurava um pequeno cinzeiro que ia recolhendo a cinza e tinha o seu telemóvel pousado na perna. Cumprimentaram-se com um "hi" conciso. Ele encostou-se à parede, junto à porta que fechara devagar. Não suportaria barulho naquela fase. Brad quedou-se no meio do quarto, mãos na cintura e cotovelos espetados, a dividir o olhar entre o sofá, a televisão apagada, a cama desmanchada, o companheiro entretido com o cigarro e a porta da casa de banho.
Havia um cheiro a champô no ar, para além do fedor a tabaco, o que indicava que Chester, finalmente, teria tomado banho. E tinha acontecido havia pouco tempo. Vestia uma camisola interior e estava só de boxers. Tinha descansado, dormindo as horas noturnas perdidas enquanto eles estiveram a penar pela entrevista com o Patterson. Os óculos estavam descaídos, equilibrados na ponta do nariz. No pescoço tinha os auscultadores, os fios ligavam-se ao discman sobre o colchão. Estaria desligado para poder se concentrar num qualquer pensamento que o deixava meditabundo. Os braços tatuados, pousados nas coxas, espetavam-lhe as omoplatas e pareceu-lhe mais magro do que realmente estava.
Mike mordeu os lábios, prendendo o ar nos pulmões. Pareceu-lhe também abandonado e solitário. Sentiu-se ainda pior. Podia perfeitamente ter-lhe dado os cinco minutos que ele tinha pedido, para tomar banho e curar a bebedeira. Os efeitos do que quer que tivesse tomado iriam esvair-se naquele tempo infinito que passaram na sala de espera higiénica. E estaria tudo melhor entre eles. Agora existia um muro que era preciso derrubar para estabelecer novamente a ponte da comunicação.
Mais valia não pensar demasiado. Mais valia avançar logo com o que tinha de ser feito. E dito.
- Ei, meu... Agi mal contigo.
Chester fez um gesto vago com a mão, puxando a última passa. A cara afunilou-se quando ele chupou as bochechas, sugando o fumo para o seu sistema respiratório.
- Tudo bem, meu... Não estou zangado. Foi mal?
- Hum?
Apagou a beata no cinzeiro, esticou o braço e deixou-o na mesa-de-cabeceira.
- Pelo vosso silêncio, presumo que a entrevista foi uma merda.
- Não houve entrevista – esclareceu Brad com um suspiro.
- Meu! Não houve entrevista?! – A exclamação de Chester foi de indignação e de espanto.
Mike negou com a cabeça.
- E não houve porquê? Não estava marcada?
- Estava – respondeu Mike desencostando-se da parede, dando dois passos até parar ao lado de Brad. Cruzou os braços. – Mas o Patterson, pelos vistos, é demasiado importante para cumprir com a sua própria agenda. Deve fazer uma filtragem no início do dia, o que vale ou não vale a pena. Nós não lhe interessámos, para hoje... Uns novatos sem nada para apresentar, julgou ele.
- Isso é foleiro. Para hoje, disseste... Vai haver outra entrevista, certo?
- Voltamos à Warner depois de amanhã. E tu vais connosco.
- Claro.
Tu é que não o quiseste levar, esta manhã, lembrou-se Mike com uma pontada de desânimo. Inspirou e expirou algumas vezes, para oxigenar o sangue gelado. Sentia frio, fadiga, tristeza, tudo junto numa pasta que lhe arrefecia o sistema. Tinha de reagir, não devia entregar-se ao marasmo. A ideia tinha sido dele, estavam em Nova Iorque por causa dele. Tinha sido bom saber que o Chester não lhe guardava nenhum ressentimento – não era uma coisa habitual nele, que gostava de colecionar as farpas que lhe atiravam, para devolvê-las ainda com mais veneno. Se havia alguém rancoroso, esse era Chester Bennington. Ofendia-se com coisas pequenas, ignorava as coisas grandes. Uma mistura confusa de prioridades.
Chester agarrou no telemóvel, suspirando. Bateu com o aparelho no queixo. Havia, então, outras pendências, por isso não se sentia ofendido com o que ele lhe tinha feito no início do dia. Pois era apenas uma questão de prioridades baralhadas.
Mike perguntou-lhe, arriscando o palpite:
- O que se passa? Problemas em casa. – E essa "casa" significava mais longe do que a Califórnia. No estado do Arizona estava uma grande parte da existência do seu atribulado companheiro musical.
- Yep. A Elka ligou-me aflita. Está a pedir-me dinheiro para o miúdo.
Trocou um olhar de fugida com o Brad. Por vezes esquecia-se de que Chester, com os seus vinte e três anos, já tinha uma família para sustentar. Na verdade, vivia sozinho e desamparado desde os dezassete e aprendera à custa de muitas cabeçadas e outros tantos tombos como a vida podia ser dura, ingrata, cinzenta, vazia. Havia a música, contara-lhe um dia, bêbado e choramingão, a despejar a alma em golfadas e Mike a receber tudo com piedade e admiração. A Samantha, a sua mulher, acreditava nele e dissera-lhe que fosse para Los Angeles cumprir o seu sonho. E ele tinha ido. Claro que os seus rendimentos diminuíram drasticamente, mas Chester sabia que aquela seria a sua oportunidade. Era como uma derradeira e desesperada aposta num cavalo que nunca tinha ganhado uma corrida. Se vencesse era a glória. Se perdesse, dali não podia ir mais fundo.
Mike ficou preocupado e fez segunda pergunta:
- Tens mandado dinheiro?
- Ultimamente, não... Devem fazer uns três meses. A Elka tem razão. Já sei, já sei! O miúdo tem as suas necessidades que nós, adultos, não podemos adiar. Porra... Tenho de conseguir resolver isto quando voltar. – Mordiscava o piercing, sinal de que estava apreensivo.
A garganta doeu-lhe quando engoliu. Chester teria dinheiro se não estivesse ali, naquela cruzada insana que ele promovera por causa desse sonho. Os seus arrependimentos ganharam novas tonalidades.
- Quando estivermos em Los Angeles, eu posso...
- Não podes nada! – cortou Chester com um berro. Agitou o braço, irritado. Reforçou: – Não podes nada. Isto é assunto meu.
- Calma, meu. Sei que é assunto teu. Também sei que estamos a fazer um gasto suplementar em Nova Iorque, a ideia foi minha de te trazer para cá. Estourei com as tuas poupanças. Se não estivesses aqui, terias dinheiro para mandar para o miúdo.
- E eu quis vir a Nova Iorque. Já tenho idade para tomar as minhas decisões, Mike. Daqui saímos com um contrato, certo?
- Certo... – hesitou.
- E com um contrato vamos receber um dinheiro de adiantamento.
- Estás a contar com isso?
- Estou a pensar mal? Ou é a sério ou não é, Shinoda.
- Os Linkin Park são a sério.
Encararam-se durante o tempo suficiente para que Mike percebesse que a aposta no cavalo continuava firme, mesmo que o animal ainda se debatesse nos últimos lugares daquela maldita pista poeirenta. Chester não tinha nada a perder e ele tinha tudo a ganhar. Vacilar não era uma opção. Desistir, muito menos. A corrida tinha de ser cumprida e terminada.
Brad apontou o polegar para a casa de banho.
- Por que é que a porta está fechada?
E antes que Chester pudesse explicar, porque ia fazê-lo, abriu a boca e fez um som como o início de uma palavra, a porta abriu-se e ela saiu.
- Uou! – exclamou Brad, dando um salto assustado.
Ela vinha enrolada numa pequena toalha que lhe cobria o torso, pouco acima do peito, até ao início das coxas. Os cabelos molhados e lisos escorriam pequenas gotas de água que lhe pingavam nos ombros. Os seus olhos grandes fixaram-se nos três rapazes e o rosto manteve-se inescrutável.
Uma raiva surda incendiou Mike Shinoda por dentro. Virou a cabeça para Chester que se levantava da cama, descartando o telemóvel. Reparou como ele estava praticamente despido na frente dela, reparou nos lençóis revoltados, o cheiro a champô intensificou-se, disfarçando aquele a tabaco. Tinham tomado banho, os dois... Ele estava a consumir-se cheio de culpa e de arrependimento por tê-lo deixado para trás, no entanto o amigo ficara a divertir-se – sem qualquer réstia de culpa ou de arrependimento.
- Chester, quem é ela? – resmungou.
- É a tipa de quem te falei...
- A fada?
Chester assentiu, com os olhos a brilhar como se efetivamente tivesse conseguido capturar uma mulher mágica. As narinas de Mike dilataram-se e tornou a resmungar:
- O que faz ela aqui?
- Trouxe-a comigo.
Brad observava tudo com um interesse alheado, de braços cruzados.
- Isso vejo eu, que a trouxeste contigo... Ei, não te queres vestir? Estás na presença dela. E tu, querida? Não te queres vestir?
Ela disse:
- A minha roupa interior está a secar ali dentro. Estive a lavá-la. Não há problema, pois não?
- Tens as tuas cuecas penduradas na casa de banho? – indagou Brad pasmado.
- Sim.
Chester vestia uma calças jeans largas. Disse-lhe que vestisse o que tinha separado para ela. Uma camisola interior de alças, uma t-shirt. Mike irritou-se mais por vê-lo a partilhar roupa com aquela desconhecida. Ela regressou à casa de banho, desta vez só encostou a porta. A cabeça de Brad girava de um para outro lado, a repartir a sua atenção entre o trio que obviamente estava a formar uma espécie de triângulo amoroso não declarado.
- O que faz ela aqui? – insistiu.
- Não tem onde ficar, então pensei...
- Ela não vai ficar aqui! – avisou Mike transtornado. – Não há espaço. Só temos uma cama e um sofá que mal dá para nós os três, quanto mais para quatro! E ninguém vai dormir no chão!
- Eu posso...
- Não podes, não!
- Ei, Mike, se eu não me importar...
- Mas importo-me eu! E o homem da receção? Não te disse nada quando te viu subir com ela?
- Não, porque é que haveria de dizer? É italiano, os italianos têm sangue quente.
Ela regressou vestida com umas calças justas, que seriam dela, com a t-shirt comprida do Chester que lhe dava pelos joelhos e que nela parecia quase um vestido. Na curva do pescoço notava-se as alças brancas da camisola interior. Continuava descalça. Era pequena e engraçada. Brad semicerrou os olhos para admirá-la.
Mike desistiu. Deu meia volta, a fungar contrariado.
- Onde é que vais? – perguntou Chester.
- Falar com o Joe. Indicou-me o endereço de um cybercafe aqui perto e vou ligar-me à Net. Preciso de lhe contar as novidades... Quero fazê-lo através de um chatroom, uma ligação por telemóvel vai sair-me demasiado caro... O Blue andou a fazer perguntas. Pois, já venho.
Bateu com a porta do quarto.
Brad aproximou-se e estalou os dedos.
- Ei, Chester?... Queres um conselho? Vai atrás do Mike. Já!
Chester não fez qualquer comentário – ao tom da voz do outro, à ordem, à necessidade daquilo, de qualquer coisa. Descartou o discman, enrolou o casaco debaixo do braço, telemóvel na mão e deixou o quarto numa corrida. Escutou-se o berro que ele deu a chamar o amigo pelo corredor.
Ela observou:
- Tu és muito persuasivo. Ninguém diria, com esse físico e essa voz...
- Tenho os meus momentos. – Brad estendeu-lhe a mão e cumprimentaram-se, os braços a moverem-se de cima para baixo num balanço trocista. – Chamo-me Brad Delson. E tu, minha fada?
- Líria. Podes chamar-me de Lilly.
- Um diminutivo...
- O outro deve ser o Mike Shinoda.
- Muito bem. Como sabes?
- O Chester fala muito no Mike. – Acrescentou, confusa: – Não sou nenhuma fada.
- O Chester parece pensar que sim.
- O Chester gosta de brincar.
- Bastante. Bem, se não te importas, preciso de usar a casa de banho. Estou para aqui a aguentar-me desde que cheguei ao quarto... Eh, não estranhes nada, ouviste?
- E porque haveria de estranhar? Estão no vosso quarto de hotel.
- Ainda bem que percebes, pelo menos, essa parte.
- Eu não sou estúpida, sabes?
Quando ele saiu do pequeno anexo, o ruído ensurdecedor do autoclismo a reverberar pelas paredes, viu-a estendida no sofá, a olhar para a televisão que ligara. Estava a passar um programa de culinária. A apertar o cinto, Brad exclamou:
- Ei, isso é a minha cama!
Ela sentou-se. Deu duas palmadas no assento e convidou:
- Podes deitar a cabeça no meu colo, se quiseres. Vem, querido.
- Querido?
- Somos namorados.
- Somos? Tu és demasiado atrevida. – Piscou-lhe o olho. Ela devolveu-lhe o sorriso malicioso.
O telemóvel tocou. Ele atendeu. Uma chamada rápida. Uma frase à qual ele nem conseguiu responder.
- O Chester pediu-me para cuidar de ti – contou ele. – Diz que tu te evaporas se não formos cuidadosos. Ainda somos namorados?
- Sim. De outra maneira, como podes cuidar de mim?
- Tu e o Chester... também foram namorados, há pouco, neste quarto?
Ela riu-se e não respondeu. Brad encolheu os ombros. Sinceramente, não queria saber se os dois tinham feito sexo ali. Cada um cuidava de si e todos olhavam pelas costas uns dos outros. Os amigos existiam para essas ocasiões complicadas. Ele aceitou o convite e deitou a cabeça no colo dela. Como tinha pernas compridas, cruzou-as pelos tornozelos, deixando-as pousadas e esticadas no braço do sofá. Ligou ao Mike a perguntar pelo jantar, foi Chester que atendeu. "Pizza" foi a resposta e ele sorriu. Depois já lhe diziam qual o restaurante e o endereço, estavam a ver recomendações usando um motor de busca no tal cybercafe. Estavam os dois juntos, Mike e Chester, e partilhavam o telemóvel. A reconciliação tinha acontecido e ele suspirou de alívio. Não suportava ter de aturá-los de mau humor. Os amigos existiam mesmo para as situações espinhosas.
Olhou para cima quando ela lhe começou a fazer festas no cabelo, distraída com a confeção do bolo na televisão.
- Isso é bom... Tens jeito para ser namorada.
- Obrigada. Faço o meu melhor.
A voz dela era sumida e arrastada. Ele observou-a atentamente, guardando o pequeno Motorola na concha da sua mão que pousava sobre o estômago. O outro braço estava pendurado.
- O que foi? Ficaste murcha de repente.
Ela abanou a cabeça, cobrindo a boca com os dedos.
- Estás com fome? Eu também estou...
- Sim. Fome.
- O que se passa, miúda?
Sentou-se ao lado dela. Abanou-a pelo ombro. Ela desmanchou-se em soluços e depois deixou cair a testa no peito dele. Brad sobressaltou-se. De seguida, abraçou-a, pensando que assim a pudesse consolar.
- Merda... Queres falar com o Chester?
- O que vai ele fazer-me? Ele não pode fazer nada. Ele não está aqui.
- Sei lá... O que é que vocês têm os dois?
- Nada.
- Ah...
Ela acalmou-se e ficou muito quieta. Imóvel. Uma boneca hirta sem articulações. Brad não sabia muito bem como lidar com ela. Receava que estivesse a ser intrusivo, que estava a pisar no terreno que pertencia a Bennington, embora ela tivesse acabado de confirmar que não havia nada. As aparências indicavam o contrário, naquele dia talvez se tivessem conhecido de uma forma íntima – ou não... Brad estava demasiado confuso para conseguir reagir como devia de ser. Deixou-se estar na mesma posição, a sentir os músculos a enrijecer. Os dois a enferrujar abraçados e depois achou que tudo aquilo era ridículo.
- Sou eu – murmurou ela e Brad apurou os ouvidos, para não perder qualquer palavra. – Por vezes a ligação termina e fico sem consistência. Posso não me evaporar, como o Chester disse, mas se calhar dou essa impressão quando deixo de estar aqui. Sou um mero recipiente... Fico vazia e depois encho-me. Há vida que flutua no vazio. Depois regresso e fica tudo normal. Aquela voz grita comigo e eu tenho medo. Não posso estar aqui... Tu também me compreendes? O Chester diz que me compreende.
- Não percebi nada...
- Por vezes o tempo passa depressa, outras rápido demais. Quando adormeci, naquela cama, foi num piscar de olhos.
- Ah, sim? O Chester costuma ressonar... Não o escutaste?
- Não!
Ela soltou uma gargalhada e recuperou o alento. O riso era um combustível que a tornou a encher de luz. Espevitou-se, sentou-se no seu canto do sofá, puxando os joelhos até ao queixo. Brad soltou-a, inseguro sobre o que devia fazer ou pensar.
- Tu és estranha.
- Talvez. Sim, tenho muita fome. Vamos comer pizza?
- Vamos, o Chester disse que sim.
- E quando é que vamos?
- Estou à espera que me liguem, com o nome e a morada do restaurante. Então, podemos sair do hotel e seguir para o lugar que eles escolheram. Acho que estão a ver o que há por perto no Yahoo.
- O Chester e o Mike...
- Deve ser mais o Mike. Ele é que é o cérebro desta viagem. O Chester segue atrás, como eu.
- Dois grandes amigos.
Brad assentiu. Desviou o olhar.
- É... grandes amigos.
- Isso incomoda-te?
- Incomoda-me – admitiu ele, a contragosto.
- Porquê?
Uma respiração funda. Entrelaçou os dedos, fixou a carpete e contou:
- Eu e o Mike somos amigos há muito tempo. Andámos na mesma escola e tal... Sempre conversámos sobre música, sempre dissemos que iríamos fundar uma banda. Pronto, já temos a nossa banda. Tínhamos um vocalista que era outro nosso amigo. O Mark. Mais amigo do Mike, mas desse nunca senti que me roubava o lugar. O Mark e o Mike tinham um outro tipo de amizade, menos... exuberante. Entretanto, o Mark foi-se embora e encontrámos o Chester. Foi como um terramoto. Não deixou nada inteiro ou de pé. Arrasou com tudo o que construímos e definiu novas estruturas. Gostei disso! Não julgues que estou a criticar o que aconteceu. A banda estava a perder-se e a definhar, sem soluções, o Chester veio dar-nos um novo fôlego. Adoro mudanças! Adoro invenções! Adoro estilhaçar com os moldes e recomeçar. Somos outros com aquele tipo que se farta de cantar. Que voz! Que poder! Mas, isso veio com um preço...
Fez uma pausa para ir mais fundo na confissão.
- São almas gémeas, sabes? O Mike e o Chester... Isso dói um bocadinho porque eu é que era o primeiro amigo do japonês e tive de abrir mão do meu espaço privilegiado, digamos assim. Tive de ceder, ver outro ocupar o meu lugar, ver como ele oferecia bastante mais do que eu alguma vez ofereci. Aceitei isso, pois percebi como eles estão sintonizados. Nem eles próprios se apercebem como são tão iguais, tão diferentes, como se complementam, como se adoram ou se odeiam. Como são perfeitos, juntos.
Caiu em si e riu-se, de testa crispada e olhos baços. Voltou-se para ela.
- Merda. Porque é que te estou a dizer estas coisas?
- Porque queres.
- Somos namorados, é isso?
Ela abriu um sorriso feliz e fez-lhe uma carícia no braço.
- Gosto de ser a tua namorada.
- É bizarro estarmos a agir assim, não concordas?
- Tudo isto é um conjunto de asneiras sem fim à vista. O caos... Eu agora navego no caos.
- Gosto disso. Precisamos de desordem para criar a ordem e depois voltar a desmanchar tudo. Dou-me como culpado e cúmplice.
- Qual é a tua posição na banda?
- Sou o guitarrista principal.
- Hum, faz sentido.
- Achas que sim?
- Uma guitarra pode convocar a harmonia num ambiente de ruído intenso. Imagina uma orquestra desafinada. Então, no meio desse som que fere os ouvidos, surge uma única nota, insistente, tocada sem parar num acorde fixo. A dada altura a orquestra cala-se e sobressai esse instrumento de corda. Uma guitarra. Elétrica. Depois de convocar a harmonia musical perdida, essa mesma guitarra pode vomitar outro ruído que distorce e engana o que tinha sido ordenado. Desordem, ordem e desordem. Basta o talento dos teus dedos e o estado da tua alma.
- Muito bom. Acabaste de me impressionar.
- Obrigada, querido.
Um conjunto de apitos vibrou-lhe na mão e Brad levantou-se do sofá, colando o telemóvel ao ouvido. Falou por monossílabos, sim, não, e assim que desligou anunciou que já sabia onde era a pizzaria. Era para se porem a caminho de imediato, pois ele estava capaz de devorar um restaurante inteiro, àquela hora. Até já conseguia cheirar o queijo mozarela derretido e os pepperoni tostados e o azeite perfumado com alho fresco e manjericão. Ela apagou a televisão e foi calçar-se. Também estava cheia de fome, disse-lhe. Escancarou a porta do quarto e correu pelo corredor, na perseguição desses odores deliciosos que ele invocara. Brad alcançou-a e saíram juntos do hotel.
- Não te posso perder! O Chester mata-me se não te levo comigo.
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