XI - Cafeína
O encontro deu-se casualmente, Chester assim fez com que parecesse, sob os auspícios do signo circular da famosa marca. Uma sereia de cauda dupla de peixe, longos cabelos, coroada por um diadema ornamentado com uma estrela, desenho a preto e branco rodeado por um círculo verde onde se inscrevia o nome, Starbucks Coffee. As sereias, na mitologia grega, eram seres que enfeitiçavam os marinheiros incautos que se atreviam a navegar nos seus mares, levando-os para a morte. Ele estava enfeitiçado. Aquele local era muito apropriado para tornar a vê-la e ele sentiu um arrepio de prazer.
- Ei, o que fazes aqui?
Lilly sorria-lhe como uma estátua. Não reagiu à sua pergunta, nem alterou um milímetro da sua postura paralisada de monumento à felicidade. Ele girou o pescoço para ver se ela estava encantada com alguma coisa que estivesse nas suas costas, mas não descobriu nada que pudesse capturar o interesse dela. O sorriso era-lhe mesmo dirigido.
- Bom dia. – Disparou uma série de perguntas de rajada: – Dormiste alguma coisa? Estavas comigo e depois deixaste de estar. Para onde foste? Também andas a vaguear por estes bairros? Não tens medo de o fazer? Afinal, és uma mulher e estás sozinha... Estás sozinha, não estás?
Ele agitou a mão diante dela e foi então que o sorriso se diluiu. Uniu as sobrancelhas e mostrou-se quase desagradada, como se tivesse um sabor azedo a magoar-lhe o palato.
- Estás a ouvir-me?
- Sim, estou a ouvir-te. – Ela acrescentou: – Bom dia.
- Certo... Uma resposta.
- Fizeste-me demasiadas perguntas.
- Vais responder-me? Seria simpático se me dissesses algumas coisas sobre ti.
- Não sei. Não sei o que faço aqui... Continuo sem perceber o que aconteceu. A minha situação não mudou, desde ontem à noite.
Ele observou-a durante dois segundos e fez-lhe nova pergunta:
- Lembras-te de mim?
- Sim. Conheci-te ontem no clube... Dançámos ou qualquer coisa parecida.
- Fomos para a rua juntos. Lembras-te disso também? Contei-te umas piadas. Não podes ter nenhum problema de cabeça. Consegues lembrar-te de coisas. Isso é um bom sinal.
- O teu piercing... Não me esqueci dele. Acho que sonhei com a tua boca esta noite. Se é que houve uma noite. Dessa parte, não me lembro.
Ele recuou, surpreendido.
- Ah... Gostaste do meu piercing? – Mexeu-lhe com a língua. – Faz cócegas quando beijo alguém. Queres experimentar?
Foi a vez de ela recuar, horrorizada.
- Claro que não! Não te ponhas com essas confianças ou levas uma joelhada nos tomates.
- Ei, ei! Calminha! Não te faço mal. Só te ofereci um beijo.
- Não, obrigada. Por que é que estás a agir assim? És um estranho...
- Assim? Este sou eu, normalmente... Não estou a ser abusivo, que raio. Estou apenas no namoro contigo. Isso é inofensivo na minha terra, sabes? E não somos estranhos. Conhecemo-nos ontem, no clube "Five Cents". Admitiste ter essa lembrança. Porra, não me assustes. Esta manhã está a ser demasiado esquisita para o meu gosto. Toda a gente a cobrar-me um preço.
- Estás nervoso por me reencontrares? Fazes demasiadas perguntas e estás a dizer muitas coisas. As pessoas que não querem revelar o que estão verdadeiramente a pensar ou sentir fazem isso.
A pergunta tocou-lhe como um murro nos dentes. Chester negou com a cabeça várias vezes. Escondeu as mãos que tremiam nos bolsos do casaco. Respirou fundo.
- Ouve, estou um pouco abalado por causa da noite anterior e vim aqui beber um café. Muitas horas sem comer, só bebi cerveja... Tu viste-me. Queres que eu te ofereça um café? Conversamos um pouco... É de dia e podemos...
- Isto é um encontro?
- Sim, pode ser um encontro... Já comeste?
- Continuas a esticar-te.
- Ei, podes ir embora. Vai lá à tua vida!
- Chester...
O nome na boca dela transmitiu-lhe um arrepio. Uma sensação muito boa, mas também de perigo. Como quando se passa uma navalha afiada pela pele despida. Prazer doentio. Sorriu-lhe. Não queria perdê-la, deixar que ela voltasse a desaparecer misteriosamente, podia não voltar a encontrá-la. E ele precisava de alguém naquela manhã esquisita em que toda a gente lhe estava a cobrar um preço, como ajuizara.
- Lilly, vem cá...
Passou-lhe o braço pelos ombros e aconchegou-a a si. Era pequena, frágil, podia mesmo dissolver-se se ele piscasse os olhos. Então, não desviou a atenção dela, acarinhando-a naquele abraço, observando-a apreensivo. E também extremamente cansado.
- Passamos a manhã juntos, isso não nos vai fazer mal, nem nos liga a qualquer obrigação. Não tenho muito dinheiro comigo, apenas algumas moedas que o Brad me deu.
- O Brad...
- É um amigo. Estou em Nova Iorque com dois amigos. O Brad e o merdas do Mike.
- O merdas do Mike? Estás aborrecido com ele.
- O Mike é um bom tipo, não é um merdas. Esquece que eu disse isso sobre o Mike. Bem, estou com o Brad Delson e o Mike Shinoda. O tipo mais talentoso e espetacular que eu já conheci.
- Está esquecido. Até porque fizeste-lhe um grande elogio agora. Tu gostas bastante dele.
- Do Mike?
- Sim. Só nos zangamos dessa maneira com quem gostamos bastante.
- Se calhar...
- Posso conhecer os teus amigos?
- Podes, claro que podes. Assim posso mostrar-lhes que não estava a inventar nada... Sim, porque eles pensam que estava com alucinações!
- O que foi que inventaste?
- Uma coisa parva. Olha, bebemos um café, comemos umas cookies ou assim e depois podes ir-te embora. Ainda não dormi nada de jeito desde ontem e foi ontem que voei de Los Angeles para cá. E devo cheirar muita mal. Preciso de tomar um banho e de me estender numa cama.
- Está bem... Passo a manhã contigo e até pode ser o dia todo... Acho que não tenho para onde ir – admitiu ela, envergonhada.
- Continuas naufragada?
- Continuo... Já viste o meu azar?
- Onde passaste a noite?
Ela respondeu, assombrada:
- Não sei. A sério que não sei... Acho que acordei aqui, de pé, vestida, sem ter sequer passado pelas horas noturnas até à madrugada. Vi-te a andar na minha direção e despertei. Era o teu piercing. Vou mesmo fazer algum estrago considerável. Tenho de fugir, preciso de fugir.
- Porra! Ainda és mais marada dos cornos do que eu. Ficas comigo, sem problema. Primeiro, uma injeção de cafeína. Depois... Logo se vê. Aceitas? Eu não te vou fazer mal. Como te disse, estamos os dois lixados com o dia e com o que nos aconteceu.
- Alguém te fez mal, Chester? Foi o Mike, não foi?
Voltou a sentir o arrepio. O nome na boca dela era a corda de uma guitarra a vibrar junto ao seu coração. Sentia-se completo. Era o feitiço a atuar e ele a deixar-se ir na perdição doce.
- Ninguém me fez mal – respondeu-lhe, num sussurro. – Sou eu que sempre faço mal a mim próprio.
- Marado dos cornos?
- É uma boa descrição.
- Concordo. Também me sinto... marada dos cornos. Avariada. Quero dizer.
- Mas sonhaste com o meu piercing, mesmo sem teres dormido. Tiveste uma referência boa.
- Boa...
- Sim, boa.
Entraram na loja. Ela sentou-se numa mesa pequena, para dois, junto à montra. Assentou o queixo na mão e ficou a admirar o movimento matutino daquela rua de Brooklyn. No balcão, ele pediu um cappuccino para ela, um café duplo para ele com natas, duas cookies de aveia e pepitas de chocolate. Teve direito a uma garrafa de água e gastou as moedas todas do Brad. O dónute iria ficar para depois, explicaria isso ao amigo solidário que teve pena dele e não o deixara na rua desvalido. Já o Mike... Por vontade do japonês enterrava-o logo ali, entre o cimento e só se lembraria dele quando lhe passasse a raiva e fosse preciso que ele cantasse para o engravatadinho da Warner.
Bem, devia esquecer-se desses detalhes. Continuava cansado e suscetível. E ele gostava do Mike Shinoda, facto irrefutável, era o seu melhor amigo dos novos amigos que fizera junto da banda. Também gostava bastante do Dave, mas com o Mike havia uma relação... diferente. No que tocava à música eram capazes de conversar apenas com sons e olhares e insinuações. Compunham bastante bem juntos. Aquela discussão haveria de ser sanada. Como, ele ainda não sabia dizer, porque não se estava a ver a pedir desculpas. Nem estava a ver o Mike a avançar primeiro nesse pedido. Um impasse. Ainda bem que estava lá o Brad para servir de intermediário e salvá-lo com moedas.
Sentou-se à pequena mesa de dois lugares e atravessou o pequeno tabuleiro para que o copo de papel com o cappuccino ficasse no lado dela. Ela começou a sorvê-lo aos poucos, pois o líquido estava bastante quente. Ele reparou nos pacotes de açúcar intocados.
- Não vais adoçar isso?
- Hum-hum... – negou sem levantar os olhos do copo que prendia entre as mãos. – Não gosto de café com açúcar.
- Amo-te, definitivamente. Também não bebo café com açúcar.
Ela sorriu, sem o encarar, bebericando a sua bebida escaldante.
- Costumas ser tão insistente?
Ele deu uma dentada na sua bolacha gigante, disparou algumas migalhas quando respondeu:
- Não fiques tão convencida, não te estou a seduzir. Para tua informação sou um homem casado. E tenho um filho de três anos. Portanto, estou comprometido até ao esqueleto, querida.
- Como o John Lennon.
- Hum?
- O John Lennon, dos Beatles, quando veio a Nova Iorque pela primeira vez. Também era casado e tinha um filho. É a tua primeira vez em Nova Iorque?
Ele demorou algum tempo a responder. Tinha ficado impressionado com aquela associação. O nível de coincidência era bastante interessante.
- Sim, é a minha primeira vez em Nova Iorque... E sou um músico com uma banda. Linkin Park. Já ouviste falar? Temos um EP com músicas nossas que foi divulgado na Internet.
- Oh, lamento... não conheço. E deixaste a tua mulher e o teu filho sozinhos para vires atrás de um sonho?
- Mais ou menos. Duas mulheres. Não estou casado com a mãe do meu filho.
- O que aconteceu?
- Apaixonei-me por outra, foi o que aconteceu.
- E agora estás apaixonado por mim.
Ele gargalhou alto.
- Demasiado convencida!
- Olha para ti, todo derretido...
Ele bebeu um gole de café e franziu o rosto porque também estava a ferver. Abanava uma mão enquanto engolia.
- Queres uma declaração de amor? – perguntou-lhe de olhos fechados.
- Não preciso – retorquiu ela, encostando-se à cadeira. – Já me disseste duas vezes que me amavas. No clube e aqui, no Starbucks.
- E estou a ser rejeitado. Partes-me o coração, girl!
- Talvez esteja aqui para te partir o coração.
- Não sejas tão má... Vejo-te como um anjo e os anjos não são maus.
Ela mudou de assunto, repescando uma ponta que tinha ficado por atar.
- Que sonho vens cumprir em Nova Iorque?
Ou talvez não queria que ele dissesse aquilo porque ficava demasiado perto da verdade. Ou demasiado longe. Se ela fosse um demónio seria um problema mais intrigante... Uma armadilha que lhe tinham colocado no caminho para que ele a superasse e saísse vitorioso da batalha complicada.
Ele respondeu, mastigando o último pedaço da primeira bolacha.
- Um contrato. Precisamos de um contrato com uma empresa discográfica para que os Linkin Park possam gravar o seu primeiro disco.
- Disseste que tinham um EP. Isso não é um disco?
- Sim, é. Mas foi uma coisa amadora feita pelo Mike na casa dele. Quatro faixas, um disco virtual. Está a ser tocado na Internet. Queremos ser levados a sério como músicos, temos de passar a profissionais. Ter um disco físico, um CD, que se vende nas lojas, percebes? Na Internet estão os nerds e os geeks, é pouco para formar um público consistente. Eu acho que é pouco. Sou um músico do rock, não um tipo dos computadores... Se isto falhar regresso ao Arizona e enterro-me num qualquer trabalho de merda. Não tenho plano B. Mas se der certo, baby... Se der certo, o meu nome vai aparecer num néon brilhante a anunciar a porra da melhor banda do mundo num espetáculo imperdível.
- Os Linkin Park...
- Podes apostar!
- E ganho a aposta?
- Sem dúvida, vamos ser a porra da melhor banda do mundo. Não te disse?
- Disseste-me... O teu entusiasmo sozinho vai carregar-vos até ao topo do mundo.
- O meu entusiasmo não chega... E o Mike não vai ter o meu entusiasmo hoje quando for falar com o tipo da empresa. Por isso, essa minha característica imprescindível não vai servir para nada.
- Foi por isso que se zangaram.
- Não, não foi. – A pergunta ficara implícita na frase dela, mas ele quisera responder-lhe. Deixar o esclarecimento. Ele não gostava de partilhar as suas divergências com ninguém. As questões entre ele o Mike pertenciam a ele e ao Mike, ponto final.
- Pelo menos tu ficaste zangado porque ele não te levou consigo para essa entrevista.
Ele apontou para o prato, no centro do tabuleiro.
- Vais comer isso? A tua bolacha?
Ela olhou para a segunda cookie decorada com apetitosas pepitas de chocolate, levemente torrada, deliciosa, tentadora. Olhou para ele e com um gesto deu-lhe permissão que ele comesse a bolacha. Ele deu-lhe uma dentada generosa que fez desaparecer um terço da guloseima na sua boca. Notou que ela se fixava no piercing e piscou-lhe o olho. Ela remexeu-se na cadeira.
- Tens um grande apetite para quem é tão magro... Se estás assim tão esfomeado, por que razão não compraste um lanche mais substancial?
- Sem dinheiro, querida. Só deu para estas duas bolachas.
- Vieste para Nova Iorque sem dinheiro?
- Tenho mais no hotel, mas ontem tive um gasto suplementar. Não posso abusar. Esta viagem é um luxo para a minha carteira.
- Oh! E ofereceste-me um café...
- Não fui eu. Foi o Brad.
- Quem é o Brad?
- É o nosso guitarrista. É um tipo porreiro, vais gostar dele.
- E não vou gostar do Mike?
- Claro que também vais gostar do Mike. Ele é ainda mais porreiro do que o Brad.
Sorriu-lhe e ela analisou-lhe o sorriso com minúcia, sem abrir a expressão.
- O Mike é mais do que um amigo. Ele é o vosso líder. Dos Linkin Park.
Chester encolheu os ombros.
- Yeah, ele fundou a banda e tudo isso. Eu só entrei este ano, sou o caloiro. Devo-lhe o meu respeito. Sim, ele é o chefe da coisada toda. É ele quem geralmente toma todas as decisões importantes. Como esta de vir a Nova Iorque. Houve umas tretas e tal porque o Mike escolheu o Brad e escolheu-me a mim, para vir com ele. Sabes como é... Somos uma banda, é suposto haver tretas. No total, somos seis na banda.
- Têm personalidades fortes, vocês os dois. Os Linkin Park pertencem aos dois.
Ele gargalhou.
- A banda é do Mike, querida. Não cries mais confusões.
- Não estou a criá-las. Estou só a ver o cenário.
Ela terminou o cappuccino que já tinha arrefecido o suficiente para permitir que o bebesse sem pausas. Recostou-se e começou a contemplar a rua, com aquele ar melancólico que deixava Chester agitado e melindrado. De alguma forma não gostava de ver aquelas sombras de tristeza, que ele conhecia tão bem, que faziam parte da sua alma escondida, noutras pessoas. Nela, principalmente.
Capturou-lhe a mão, levou-a para a rua que ela parecia ansiar.
A fada não sobrevivia sem ar puro.
Abraçou-a pelos ombros e conduziu-a para o hotel. Deviam descansar. Disse-lho ao ouvido e surpreendeu-se outra vez com aquele aroma a flores do campo. Perguntou-se mentalmente se ela se incomodava com o fedor que ele exalava, mas se ela não comentou nada era porque, de algum modo, admitia a sua sujidade. Os seus defeitos, a sua humanidade. O que era estranho e divertido.
A cafeína tinha-o curado. Exausto e zangado, só queria uma cama para mergulhar e adormecer sem pensar em toda a porcaria que lhe tinha acontecido naquela última hora. Olhou para os cabelos dela. Nem tudo tinha sido mau. Conseguira recuperar a fada e levava-a, como um talismã, para o reduto onde poderia, por fim, relaxar, longe dos perigos externos e de outros anjos negros dissimulados de uma cidade estrangeira.
O céu continuava azul e ele piscou os olhos.
O céu haveria sempre de ser azul, mesmo de noite.
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