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Não conte nada ao Retiro

— Jennie Kim






Jennie correu, mas o irmão estava há bons passos de distância.

— Amber! Espera! Não me deixe sozinha aqui!

A rodovia se estendia como uma manta de concreto no horizonte escuro. Jennie queria saber onde terminava, o que aconteceria se corresse por toda a via até a saída de Huimang Hill, o que a esperaria no fim.

Amber dizia que era como um arco-íris, se chegassem ao final seriam agraciados com potes de ouro e felicidade. Ele amava o arco íris, representava um conceito que Jennie não conseguia entender, mas que não levava a sério. Era cética demais para acreditar em contos de fada.

Amber parou no meio da estrada, a noite era densa e Jennie conseguia ver apenas a silhueta do irmão, de costas. Ele olhou para trás antes de adentrar a mata às margens da rodovia.

Jennie recuou, a respiração sôfrega e entrecortada. A mata era perigosa, seu pai sempre a alertou que monstros rondavam a imensidão verde e gostavam de pegar garotas malcriadas, Jennie estava sendo malcriada. Não era permitido às crianças saírem de casa depois do horário de recolher e ela estava fazendo exatamente aquilo, mas Amber não precisava convencê-la a fazer isso, não com muito afinco. Jennie estava disposta a tudo pelo irmão, até topar com os monstros das redondezas.

— Amber? — chamou ela. — Não me deixe aqui sozinha, por favor!

O frio noturno, que antes não incomodava, agora atravessava o pijama de ursinhos e trazia calafrios. Os pés estavam cobertos por um sapatinho rosa que só pareciam patéticos, Jennie parecia patética. Ela rodou os calcanhares, os olhos cheios de medo e lágrimas, a garganta angustiada e doída. Era uma garotinha que queria ser adulta, ser descolada e corajosa como Amber, corajosa o suficiente para se impor como ele fazia, para mandar Deus e o pai a merda, usar as roupas que tinha vontade, fazer a porra que achava necessário mesmo com a hipocrisia daquela cidade dos infernos.

Jennie tinha fúria dentro do corpo infantil, emanava da sua covardia.

Ela abriu a boca, a respiração em jatos fortes, pronta para berrar, mas mãos macias tocaram seus ombros. Ela gritou.

— Ei, ei, calma! — advertiu Amber, rindo. — Ficou com medo, é?

Os cabelos dele estavam molhados de suor e os cachos colados na testa. Amber vestia uma mistura inusitada, calça de moletom, blusa de pijama e uma jaqueta jeans, além dos pés cobertos por uma meia de cano longo e chinelos. Jennie respirou fundo, tirando uma mecha da frente do rosto.

— Eu sempre tenho medo, você sabe.

— E quer ir embora? — perguntou Amber.

Jennie ponderou, mas acenou positivamente com a cabeça.

— Por que quer ir embora? — insistiu Amber.

— Porque só crianças malcriadas ficam até tarde na rua. — Ela recitou o discurso do pai.

Amber bufou, tudo nele era ameaçador aos costumes daquela cidade. Jennie amava isso.

— Não existe isso de "crianças malcriadas", é só mais uma das palavras que os adultos usam para nos censurar, escute... — Ele se agachou, para ficar na mesma altura da irmã. — Papai me chama de malcriada por não usar vestido, por não ir ao culto, por não deixar o cabelo longo... você me acha malcriada por isso?

Jennie acenou negativamente. Amber era livre, totalmente diferente de ser uma criança malcriada.

— Malcriação é não fazer o que os adultos querem — prosseguiu Amber, apertando uma das bochechas da irmã. — Agora vamos, antes que sejamos pegos por "malcriação".

Jennie entrelaçou a mão na dele e seguiram o caminho contrário ao que estavam, voltariam para a casa. Ela sentia as engrenagens do cérebro trabalhando depois do que ouviu do irmão. Se nada era malcriação, então onde se encaixava a malcriação de Rosé?

Jennie media a sua "taxa" de malcriação se comparando a ruivinha. Seria capaz de matar um gato? Não. Seria capaz de mentir para a professora? Não. Seria capaz de gritar com Jisoo? Também não.

— Matar é malcriação? — perguntou Jennie.

Amber arrastava os chinelos pelo asfalto ao andar, cortando o silêncio da noite.

— É sim — disse ele.

— E mentir pra professora? — perguntou ela.

— Também — respondeu Amber.

— E gritar com os coleguinhas?

Amber parou.

Jennie olhou para cima, para o rosto pensante do irmão, o maxilar fino e os lábios em um bico protuberante. Eles eram tão parecidos que ela supunha que teria as mesmas fisionomias daqui há alguns anos.

— Pensando melhor, matar, mentir e gritar é mais maldade do que a malcriação que os adultos falam — esclareceu Amber. — Mas crianças não são malvadas... digo, as crianças de verdade, sem ser esse termo idiota que Huimang Hill criou. Então não precisa se preocupar com isso, por hora.

Jennie puxou a mão de Amber, impedindo-o de andar.

— Crianças de verdade podem ser más, sim! Tem uma garota na minha sala, Rosé, ela é do meu tamanho e é má, não malcriada, mas má, essa maldade que você falou!

— Crianças de 10 anos podem ser más? — Amber riu, descrente.

Jennie olhou de forma severa para o irmão, ela falava sério.

— Rosé finge ser boa, mas eu sei que não é. Ela machucou o gatinho de Kai, ela mentiu para os professores e fez maldades com Jisoo.

Amber voltou a caminhar, com a mão de Jennie na barra da sua blusa.

— Então ela terá problemas com o pântano — ele se limitou a dizer.

— O que tem no pântano?

— Papai nunca te contou?

Jennie maneou a cabeça em negação. Amber arqueou uma sobrancelha, surpreso.

— Dizem as lendas que há um monstro no lago do pântano que fede a morte e é feito de musgo, ele fica tranquilo, na dele, mas às vezes sai para comer meninas más. Se Rosé continuar assim, o fim dela será lá, junto ao monstro do pântano.

Jennie segurou um riso, ela achava que monstros faziam coisas ruins, mas se ele cumprisse com o que Amber acabou de dizer estaria fazendo um bem maior. Ela tinha pena de Jisoo e de todos que conheciam a garotinha de cabelos ruivos e talvez o monstro do pântano se tornasse um herói, salvando todos da malvada Rosé.

Chegaram à parte residencial da cidade e os olhos de Amber vagueavam os carros parados nas garagens, os que seriam usados por seus colegas quando inaugurasse as corridas na rota 87. Seria a vingança dele contra aquela cidade de merda: desvirtuar as boas crianças que ela fingia ter.

Andaram em silêncio até à casa do pastor, a casa deles, mas antes de subir a amendoeira, Jennie puxou a mão do irmão. Amber se ajoelhou novamente, ficando na mesma altura dela.

— O pântano seria um fim muito triste para Rosé, mas acho que é o único fim possível para ela — disse Jennie.


⟡ ⟡ ⟡


— O único fim possível... — A frase morreu antes que ela pudesse completá-la.

Jennie abriu os olhos e se deparou com o escuro do quarto.

As paredes estavam descascadas e o teto era tão frágil que poderia cair em sua cabeça. Ela se encolheu no colchão, no chão, já que não sabia se o cheiro de urina e vômito vinha dela ou do quarto. Sim, um quarto, nada de solitária. Ela não sabia como foi parar ali, apenas acordou no colchão, a boca suja de feijão e farinha e o corpo porcamente lavado, mas limpo.

Jennie abraçou as pernas magras. Sabia o que aquilo significava, a perturbação em sua mente, o medo do escuro. Nunca havia passado por isso antes, nunca teve medo do escuro, Amber transformava o escuro numa nova brincadeira pois era quando as luzes se apagavam que a liberdade aparecia, que pulavam a janela do segundo andar, se agarravam na amendoeira até chegar ao chão, eram abençoados pela estrada.

Jennie nunca teve medo do escuro, tinha medo de ficar sozinha.

— Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo... Deixe que o monstro do lago acabe comigo... Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo... Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe comigo. Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo... Deixe que o monstro do lago acabe comigo... Deixe que o monstro do lago acabe com ela... Deixe que o monstro do lago acabe comigo...

A porta do quarto foi aberta.

Jennie não se assustou e nem parou de balançar para frente e para trás. Talvez tivesse perdido toda a sanidade, como as várias pessoas que passaram por aquele quarto e escreveram seus nomes na parede, uns com as unhas, outros com algo mais sólido, como se quisessem deixar o último pertence que possuíam gravado em algum lugar: o nome.

Jennie levantou os olhos e soltou um suspiro, Kai e Lisa estavam na sua frente. Eles pareciam reais, não um devaneio dos muitos que teve durante o dia. Era Lisa, os cabelos loiros amarrados no topo da cabeça e um macacão cinza, a mesma vestimenta dos funcionários, e se ajoelhou com as mãos suspensas. Kai estava parado na porta, taciturno e quieto, quase se mesclando à escuridão.

— Ruby? Sabe quem eu sou? — perguntou Lisa.

Jennie estava chorando e percebeu apenas ao sentir o pescoço molhado. Lisa tentou limpar a avalanche salgada, mas não conseguiu sozinha.

— É você me..mesmo? — gaguejou, tocando as bochechas de Lisa, os lábios grossos, a franja... parecia um sonho vivido. — Lisa.

— Sim, sou eu sim, eu e Kai. — Ela se virou para a porta.

Kai intercalava o olhar do corredor para o quarto, parecia querer dizer muitas coisas, mas se contentou com um:

— Como você está, Ruby?

Jennie perdurou olhar por um tempo, ele não precisou de uma resposta.

— Como vocês chegaram aqui? — perguntou.

— É uma longa história — respondeu Lisa.

— E não temos muito tempo — acrescentou Kai. Ele fechou a porta.

Jennie usava uma camisola hospitalar e os cabelos nasciam em tufos irregulares pela cabeça, ainda tímidos. Os dedos tremiam sem as unhas, foram roídas até não existirem mais, mas o olhar vago que ela estampava era a prova de que algo ali fora roubado, algo mais profundo, que não poderia ser visto tão facilmente.

Kai se aproximou, ajoelhando-se no colchão.

— Lisa conseguiu te trazer para cá, hoje a tarde — disse ele.

Jennie engoliu o choro, maneando a cabeça.

— Eu não me lembro de muita coisa, mas quando vamos embora? Precisamos ir embora, eu quero muito ir embora...

Kai e Lisa se entreolharam.

— Ainda não sabemos, há um portão lateral, mas ele é usado somente para transporte de corpos. O portão principal é vigiado vinte e quatro horas por dia... — respondeu Lisa.

— Tem certeza que só há essas opções? — perguntou Jennie.

— Eu rodei esse lugar de cabo a rabo — disse Kai. — Se há outra saída, não sei qual é.

Os olhos de Lisa estavam lotados de lágrimas.

— Temos até o amanhecer para pensarmos em algo, sim? Uma coisa de cada vez, pelo menos te tiramos de lá. É um começo.

Um bolo de angústia tomou a garganta de Jennie. Eles estavam dizendo que não havia uma saída, não uma saída para ela.

— Eles revistam os carros? — perguntou.

Kai piscou algumas vezes, mecanicamente.

— Sim, eles revistam os carros, mas o monza não está aqui, o deixamos lá fora... o que você pensou, Ruby?

Lisa respondeu algo a Kai, mas a voz dela entrou e saiu pelos ouvidos de Jennie sem nenhum peso. Foi desconectada da conversa como se tivesse desligado um cabo de energia. Aconteceu dessa forma o dia inteiro, uma hora estava presente fisicamente, sentindo seu corpo e todas as dores dele, o colchão fino cheirando a mijo e toda a presença do Retiro a sua volta e, então, ao piscar, estava com o irmão, estava com Kai, Lisa, estava dirigindo o monza em alta velocidade pela rota 87.

A mente de Jennie ia e vinha em uma consciência oscilante. Dessa vez, ela estava no quarto de Rosé, sentada na cama perfeitamente arrumada dela, sentindo a aspereza do cobertor e semicerrando os olhos pela luz incômoda que vinha da janela. Rosé apareceu dentro da luz, os cabelos pareciam flutuar em um laranja flamejante: "só não tome muitos, um só basta" disse ela.

A voz de Kai a trouxe para o presente novamente, ele citou o nome de Rosé, a discussão agora era sobre ela.

— Sei o que vamos fazer — disse Jennie, tão baixinho que eles não a escutaram. — Sei o que vamos fazer... — repetiu. — Seioquevamosfazerseioquevamosfazerseioquevamos...

Os dois se calaram repentinamente, olhos arregalados e piscadas rápidas. Kai agarrou os ombros de Jennie, pressionando-a contra ele. O cheiro dele era familiar, era o cheiro de casa.

Jennie se calou e eles permaneceram por mais algum tempo na mesma posição, ela mal respirava, sem se mexer, sentindo o corpo dele abraçando o seu.

— Eu sei o que vamos fazer. — Ouviu um resquício de lucidez na sua voz. — Eu sei a lógica desse lugar.

Jennie estava em um raro momento de lucidez ou quase isso, e precisava aproveitá-la ao máximo antes de ser puxada para o lugar escuro de novo.

— É difícil sair vivo do inferno, já ouviram falar? — prosseguiu.

Kai maneou a cabeça, incrédulo.

— Te matar não é um plano viável, Ruby.

— E se eu me fingir de morta? — rebateu.

Lisa arfou, com os olhos inquietos.

— A menos que todos aqui tenham 6 anos, isso não vai rolar.

Eles ainda a encaravam daquele jeito, como se conversassem com uma criança murmurando sandices. Jennie estava a menos de cinco minutos murmurando sandices, mas agora estava bem, eles não conseguiam ver que ela estava tentando?

— Me escutem, quando eu estava na casa de Rosé, ela me deu os remédios que usava para dormir, eu os guardei no bolso do short... — falou rápido.

— Por que Rosé te daria algo de bom grado? Nós sabemos que nada do que ela faz é sem querer. — lembrou Lisa.

— Claro que não é, nunca é, ela deu a entender que se alguém tomá-los em excesso poderia morrer e esse alguém era eu, mas e se não chegasse a tanto? E se eu tomasse o suficiente para que minha pressão ficasse baixa o bastante para me atestar como morta?

— Você enlouqueceu? O que...? Jennie! — trovejou Lisa. — O que estamos falando aqui é suicídio, não estamos na droga de uma história shakesperiana!

— Olhe para mim, Lisa! Olhe dentro dos meus olhos e me veja! — Jennie apontou para o próprio peito, o indicador bateu no osso do esterno, protuberante. — Eu não posso mais ficar um segundo sequer aqui! Vocês não podem imaginar por tudo que eu passei... o que... o que fizeram comigo aqui! E nem você ou Kai irão pensar em algo melhor no pouco tempo que temos!

— E acha que morrer é a solução? — perguntou Lisa.

Kai passou as mãos pelos cabelos, jogando mechas castanhas para trás.

— Eu estou dentro e... qual é!? — Ele olhou para Lisa. — Ruby tem razão, não temos outra opção!

Um silêncio longo e pegajoso recaiu sobre os três.

Jennie os encarou por um tempo, Lisa engolia com dificuldade, as sobrancelhas juntas em um misto de súplica e frustração. Kai respirava espaçadamente, confiante. Jennie pensou em pegar as mãos de Lisa, tocá-las só para saber se ainda tinham a mesma textura, mas toda demonstração de afeto ali parecia errada, ainda mais ao lado de Kai.

— Sei que vocês foram longe demais por mim e eu não poderia estar mais grata, mas preciso que confiem em mim, como sempre confiaram.

As expressões de ambos mudaram e se tornaram semelhantes em um ponto: eles fariam tudo por Jennie.

Ela era o ponto em comum, a garota que vieram salvar. Eles deixaram muitas coisas para trás e não a deixariam também.

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