Não conte nada ao detetive
— Rosé
Meus dedões quebrados pareciam jacas enormes e inchadas, enrolados em esparadrapo barato e em pomada anti inflamatória. Eu precisava de um médico antes que as coisas piorassem. O corte na minha cabeça, por algum motivo inusitado, abriu ontem. Perdi tanto sangue em dois dias que a força do ódio era a única coisa que me mantinha acordada.
Kai me botou num robe de seda ridiculamente curto e desconfortável, mas era isso ou ficar nua, e eu não queria dar essa visão a ele. Trouxe também descolorante e tinta ruiva e queria a cor natural dos cabelos quando chegasse, à noite. Não encostei na sacola desde que saiu, gostei dos meus cabelos castanhos, ele que lute para me ter ruiva de novo.
Para alguém que estava presa por algemas ontem e hoje já podia circular livremente pelo quarto, eu tinha conseguido certa vantagem. Garotos são fáceis de manipular, eles gostam de ouvir elogios, amam quando o pau deles é o centro da conversa e esperam que os olhemos com o mesmo olhar de uma atriz de filme pornô. Por isso eu os achava tão previsíveis e sem graça, realmente entediantes.
Ontem, quando Kai chegou, eu disse o que ele queria ouvir, que me tornaria a primeira dama e que estava louca por ter recusado antes — eles também gostam de ter razão —, e com isso, ganhei um curativo mal feito nos dedos e um quarto inteirinho para andar de lá pra cá e pensar em um jeito de arrombar a porta.
Estava no terceiro andar, numa suíte, provavelmente dos pais de Kai. Era impossível não ter nada para usar como arma. Vasculhei cada pedacinho do quarto, desde o colchão até os armários. Estava cansada, mas sem admitir a derrota. Encarei a porta do banheiro e um sorriso nasceu em meu rosto enquanto corria para lá. Revirei as gavetas da pia e, no meio de loções, cuecas tamanho GG e camisinhas, encontrei minha arma secreta: um aparelho para barbear. Tirei da embalagem e fitei as lâminas presas, precisava tirá-las dali.
Primeiro, bati com elas na parede, tentei arrancar com a fechadura, sacudi, mas necessitava de algo mais fino. Fitei as minhas mãos, com oito dedos funcionais e três sem as unhas, — minha manicure me mataria se as visse agora —, mas era um sacrifício necessário. Enfiei meu dedinho no meio delas, mordi meus lábios para não gritar e puxei, as lâminas caíram no chão, misturadas a sangue.
Enrolei o dedo quase decepado com papel higiênico. Estava uma bela de uma porcaria, mas eu tinha três lâminas agora, com o golpe certo, poderia fazer estrago. Escondi uma das lâminas na parte de trás do meu pulso, presa com fita, e as outras duas no bolso do hobby.
Sorri orgulhosa para o espelho do banheiro... até a porta do quarto se abrir.
— Rosé?
— Ah! Oi!.... Espera só um minutinho! — Comecei a limpar os resquícios de sangue no chão com papel higiênico. — Porcaria... porque ele tinha que chegar logo agora? Idiota, desgraçado dos infernos...
— Rosé! Abre a porra da porta do banheiro!
— Será que eu não tenho um minuto de paz? Cretino, insuportável...
— O que?
— Nada! — Joguei os papéis no lixo e abri a porta, tentando controlar a respiração ofegante. — Eu disse: Será que... ai meu Deus, o que houve com o seu rosto?
Kai parecia ter acabado de chegar de uma guerra, cheio de band aid pela cara, sobrancelha costurada e bochechas inchadas.
— Foi a Lisa? Aquela garota é barra pesada, minha cabeça que o diga.
— E a mãe — ele murmurou, fazendo cara de nojo. — Mas em uma delas eu consegui dar um fim.
— Você fez o quê...?
Ele já tinha dado as costas para mim e sentado aos pés da cama.
— O que você esperava que eu fizesse?
— Se controlasse! — esperneei. — Você não ligou a televisão hoje? Eles têm outra linha de investigação e eu nem preciso estar lá para deduzir que seja você!
— É óbvio que é, tem carro de polícia rondando perto da mansão, tive que pegar um dos carros do meu pai emprestado, sair com o monza é chamativo demais.
— E então para passar o tempo, como se já não tivesse ferrado, resolveu matar...?
— A mãe dela.
— A mãe dela, que maravilha! — Maneei a cabeça, se tivesse mãos para isso começaria a cantar parabéns, realmente um grande plano. — Você agiu de maneira impulsiva de novo, só provando que eu sempre estou certa.
Kai cuspiu, chutando uma mala aos pés da cama e, antes que eu pudesse perguntar porque a trouxe, ele já havia cruzado o quarto e agarrado meu queixo. Sua respiração se mesclava com a minha e era horrível. O cheiro de sangue seco e esparadrapo permeava nós dois. Doía tê-lo me agarrando e colocando as mãos em mim quando, claramente, eu não estava permitindo, mas não iria dar o gostinho de reclamar. Kai tinha uma fixação doentia por pescoços, se eu fosse morrer nas mãos dele, já poderia imaginar como seria.
— Sabe, Rosé... eu estou exausto, dá pra ver pela minha cara, não é? — Ele balançou minha cabeça para cima e para baixo, respondendo a própria pergunta. — A última coisa que eu preciso é ouvir você e toda essa prepotência me dizendo o que eu fiz ou não de errado.
— Eu só...
— Se acha a dona da razão, mas esquece que quem está mandando aqui agora sou eu. — Ele me soltou, quase me fazendo cair. — Vamos embora.
— Embora? — cochichei, observando-o pegar a mala novamente. Eu odiava ter que fingir ser uma vítima amedrontada, mas eu percebi que conseguia arrancar mais informações dele dessa forma.
Kai abriu a bolsa, tirou uma muda de roupas e jogou em cima da cama para que eu vestisse.
— Não podemos ficar aqui — ele respondeu. — Eu não devia ter matado aquela cadela, mas Lisa me deixou com tanta raiva, a culpa é dela pela mãe estar morta.
A culpa era dele por tê-la matado, óbvio, mas já ouviram o ditado "Com louco não se discute"?
— Mas, olha só... — Me aproximei, ainda receosa, passando as mãos pelas costas e ombros dele. — Se fugirmos agora, você vai estar assumindo a culpa, e o pior, não vai conseguir se tornar prefeito.
Era uma jogada arriscada, eu poderia deixá-lo com raiva o suficiente para colocar meu pescoço na reta — literalmente. Por isso, tentava falar de forma doce. Pareceu surtir efeito, ele se virou para mim, os lábios em um crispar amargo.
— Então qual o seu plano?
Não disse que era fácil lidar com garotos?
Me sentei no colo dele, mesmo morrendo de nojo. Não deixar isso transparecer pelo meu rosto era algo digno de um Oscar. Eu merecia um Oscar, Grammy, um Nobel e mais alguns prêmios, sempre me imaginava recebendo-os antes de dormir.
— Eu vou aparecer de novo falando que Lisa, Jennie e Jisoo me mantiveram em cárcere privado e ainda por cima te livro de uma acusação de assassinato.
— ... Jisoo?
— Shiiiiu — Tampei os lábios dele com os meus dedos. — Você é o filho do prefeito, é o dono dessa cidade, Kai. Pague os melhores advogados, pague a polícia, até parece que você não sabe como Huimang Hill funciona. Eu tenho o delegado nas minhas mãos só por um escândalo sexual. Mostre todos esses machucados na frente das câmeras e chore, diz que tudo não passa de um complô político para acabar com o seu futuro cargo de prefeito.
Ele pareceu ter gostado da minha ideia, suas mãos espalmaram minha bunda e um sorriso iluminou sua face.
— E para tudo se tornar ainda mais trágico eu posso arquitetar um acidente fatal que... infelizmente, vai findar com a vida dos meus pais, uma verdadeira lástima... — Ele fingiu uma cara de sofrido, mas depois gargalhou. Kai pegava o jeito das coisas fácil e, mesmo que não admita em voz alta, eu ainda estava no controle do jogo. — Então eu vou virar prefeito e enxotar aquele investigador que gosta de meter o bedelho onde não é chamado.
— Exatamente, podemos fazer tudo do nosso jeitinho. Viu só como é bom confiar em mim?
Ele me encarou por alguns segundos, tentando notar algum traço de mentira, mas eu consegui manter o personagem até o fim. Para não correr riscos, o beijei, fechando bem os olhos e pensando em outra coisa, qualquer coisa que não fosse o que eu estava realmente fazendo. É pra um bem maior, Rosé, já está acabando, já está acabando...
— Você vai mesmo incriminar Jisoo? — ele perguntou entre arfares, animado.
— Você estava certo sobre ela, sempre esteve.
Aquilo foi a gota d'água, Kai sorriu grande, como se eu tivesse acabado de pedir sua mão em casamento, e me beijou... de novo.
Seus dedos subiram até a minha cintura, me jogando na cama e subindo em cima de mim, por um segundo o desespero me tomou, porque eu sabia onde Kai queria chegar me beijando assim, suas mãos já adentravam a minha camisola Mas, se eu o parasse, ele saberia que tudo que eu disse não passava de mentiras, então me obrigaria, como estava fazendo indiretamente agora, me tomando sem o meu consentimento, como parcialmente estava acontecendo agora... pense, pense, Rosé.
Aquele era o momento perfeito, o momento que eu esperei desde que acordei amarrada naquela cama. Kai parou o beijo e me encarou, eu estava sorrindo de orelha a orelha, mas não pelo motivo que ele achava que era. Passei as mãos pelos cabelos dele, sentindo a fita se soltar entre os fios, e com a outra desci para agarrar sua ereção, massageando-a por cima da calça. Ele gemeu ao pé do meu ouvido e, aproveitando que também estava com a boca colada no dele, sussurrei:
— Te vejo no inferno, filho da puta.
Finquei a lâmina no pescoço de Kai.
Assim que ela entrou por inteiro, o sangue jorrou vermelho vivo em cima de mim. Fechei a boca, tentando cobrir do jato que me atingiu, mas não consegui, estava gargalhando, significava que havia atingido exatamente onde eu queria, a jugular.
Ele me encarou, o rosto em completo choque.
Acho que Kai chegou a pensar que fosse imortal, que ninguém nunca fosse pegá-lo, matá-lo, que os privilégios de berço o livrariam de qualquer enrascada que se enfiasse na vida. Ali, naqueles poucos instantes, ele soube que iria morrer.
Kai ainda conseguiu fazer impulso para se levantar, tentando tapar o ferimento que jorrava sangue, mas eu fui mais rápida e peguei a segunda lâmina no meu bolso.
Ele se debatia, não conseguia falar nada, o rosto já machucado estava vermelho, grotesco. Eu empurrei os fios de cabelo molhados de sangue para trás, atrapalhavam a minha visão, a camisola colava no corpo, o líquido era pegajoso. A lâmina pequena escorregava na minha mão, machucava os meus dedos, mas consegui fincá-la dentro do globo ocular dele.
Tudo fedia a sal e ferrugem, eu estava completamente ensopada e com a leve certeza que Kai já tinha morrido, mas a adrenalina subia pelo meu estômago, eu estava me deliciando com aquela vingança.
— Nem... — Acertei a lâmina em seu rosto. — A sua mãe... — de novo. — Vai ... — mais uma vezinha. — TE RECONHECER! — sorri. — Filho da puta do caralho!
Respirei fundo e fechei os olhos assim que a completa paz me atingiu. Quando os abri, gotinhas de sangue grudavam nos meus cílios. Tudo estava vermelho, mas Kai estava em cima de mim e eu estava orgulhosa por ter feito aquilo. Por ter acabado com aquele rostinho bonito com as próprias mãos. Agora, nenhum traço dele poderia ser reconhecido no meio de tanto sangue.
A quietude que tomou a casa foi tanta que eu ouvi quando os carros pararam do lado de fora, quando eles arrombaram a porta principal. O que pareceu uma cavalaria começou a subir as escadas, o barulho começou numa crescente interminável até o primeiro estrondo fazer a porta estremecer. Fitei uma última vez o que sobrou de Kai, sorrindo antes de gritar.
— Socorro! Me ajudem! — berrei, dessa vez mais alto. As lágrimas começaram a escorrer pelas minhas bochechas.
No terceiro impacto a porta se quebrou ao meio.
O corpo de Kai pesava, as mãos ainda estavam presas em mim, o que ajudou a tornar a cena mais desesperadora, consegui me desprender, deixando que a lâmina caísse. Entrou um batalhão inteiro no cômodo, mas quem me salvou foi o detetive que vi na televisão. Ele não se importou com o sangue e me abraçou, me afastando de Kai.
— Está tudo bem agora... — ele disse para mim.
— Me desculpe... por favor, eu só fiz o que... — solucei. — Ele estava... ele... tentou... — Coloquei minha cabeça entre o peitoral do homem, chorando tudo que eu consegui.
Eu era boa nisso, em fingir chorar, era a atuação que eu mais gostava de fazer. Por incrível que pareça, as duas melhores cenas foram na presença de Kai, quando tive que pedir desculpas por matar o gato dele e agora, quando o matei.
— Vai ficar tudo bem — o homem disse mais uma vez. — Você não teve culpa.
Fiz mais uma ceninha, mesmo que estivesse sorrindo pelas suas costas.
— Chamem os paramédicos, ela está machucada! — o detetive pediu. Alguns homens desceram com o comando. — E vocês, isolem o local! — Ele apontou para o que restou.
Aos leitores que estão esperando uma reação natural minha, entendam, eu nunca me arrependeria de matar Kai. Aquelas lágrimas desciam sem emoção alguma, mas a primeira que tocou o meu coração e me fez debulhar em choro foi ver Jisoo cruzar a porta.
O detetive me soltou para dizer a ela que deveria voltar, mas era tarde demais, eu já tinha cruzado o espaço, empurrado metade do pelotão e caído nos braços dela.
Jisoo demorou para me abraçar de volta, um pouco chocada com a situação. Eu sabia que ela morria de nojo de ver sangue, mas, aos poucos, suas mãos apertaram a minha cintura e me prenderam em um abraço que quase me deixou sem ar.
— Eu o matei, eu acabei com isso por nós duas — cochichei no ouvido dela.
— Estou orgulhosa de você — ela sussurrou de volta.
Quando Jisoo me soltou e encarou o corpo de Kai na cama, foi a vez dela de fazer cena.
Ela aprendeu direitinho comigo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro