Não conte nada a Rosé
— Lisa Manoban
A noite era clara, a lua cheia transformava o céu e a estrada, fazendo-a parecer mais misteriosa e atrativa. A regata que Lisa vestia era uma blusa de Kai, ela cortou as mangas e agora servia de vestido. O nome de alguma banda de rock que não ligava o suficiente para decorar o nome estampava sobre os seios.
Jennie rodopiava com uma garrafa de vinho nas mãos, ela usava um short velho que não cumpria a função muito bem e um sutiã de renda que espremia os seios fartos. Kai gargalhou, totalmente fora de si, correu até o monza e diminuiu o volume da música. Uma barulheira sem fim de guitarras e gritos cessou.
Mesmo sem música, eles continuaram a dançar descalços, sujando os pés de terra e as roupas de poeira. O ar era uma mistura de suor, álcool e cigarros, eles sentiam tudo que a noite poderia proporcioná-los, tudo que Huimang Hill não gostava de ver durante o dia. Lisa gritou, bêbada, mal se aguentava de pé, tudo doía. As mãos fortes de Kai agarraram a sua cintura, abraçando-a no calor da estrada. Ele aproveitou a proximidade de Jennie para puxá-la também e os três se abraçaram, se beijaram, choraram muito, por motivo nenhum, apenas exalando a adrenalina que os faziam ser um só.
— Eu amo vocês... — sussurrou Lisa, sentindo o rosto deles colados no seu. — Eu amo tanto vocês...
Eles sorriram, encarando o céu estralado e a lua.
— Eu poderia entrar nesse carro e nos tirar desta cidade. — disse Jennie, estranhamente sóbria. — Vamos todos juntos.
Kai gargalhou, se desequilibrou e caiu no asfalto.
— Se formos embora... — Ele apontou para Jennie. — Se você for embora... quem vai ganhar todas as corridas?
Lisa deu de ombros, a preocupação de Kai com as corridas era tão tola que só evidenciava o quão bêbados estavam.
— Rosé e aquela outra lá — respondeu.
— Jisoo — lembrou Jennie. — O nome dela é Jisoo. E qual o problema se ganharem? Elas vão sentir o gostinho da vitória pela primeira vez na vida.
Jennie se deitou no meio da estrada, junto a Kai, e Lisa a seguiu. Eles se abraçaram, sujos, e não tocaram mais no assunto. As palavras não precisaram ser ditas, mas estavam lá, rondando a mente deles. Se fossem embora, como Jennie sugeriu, as coisas começariam a se complicar, inevitavelmente. Jennie e Kai não poderiam contar com o dinheiro dos pais. Lisa, acostumada a estrada e a se virar com o que tinha, se tornaria a chata responsável, cansada de ter que lidar com iniciantes.
O concreto tremeu levemente, era o sinal de um carro se aproximando, mas eles não se levantaram. Aquela estrada não tinha a luz dos portes e, se fosse um motorista desatento, eles acabariam mortos, mas o trio era sortudo e o automóvel diminuiu a velocidade até parar. O farol amarelado tomou conta da rodovia. Kai foi o primeiro a sentar no asfalto, a buzina soou ininterrupta.
Lisa estava disposta a xingar, e teria feito, se não tivesse prestado atenção na marca do carro, um chevette.
— Você está nos seguindo, Rosé? — Jennie tomou as palavras da boca de Lisa e se levantou, cambaleante, indo até o chevette. — Não aceita perder uma vez sequer?
De longe, Lisa observou o casal se aproximar do carro, coçou os olhos, pensando estar mais bêbada do que realmente achava. Rosé e a carona estavam sujas, mas não era a mesma sujeira dela ou de Kai e Jennie, composta por terra batida e poeira, era como se elas tivessem tomado banho na lama, fediam a mangue e lodo.
— A cidade é pequena, já que se esqueceu, Jennie... — A voz aguda de Rosé saiu abafada e nervosa, de dentro do carro. — A última coisa que queríamos era encontrar vocês aqui.
Os cabelos dela estavam negros e pastosos, o rosto cheio de lama seca. Ela parecia uma garota totalmente diferente da que andava por aí montada como uma princesa.
Lisa se aproximou, fitando a menina sentada no banco do carona, também suja. Ela tremia em estado de choque, os olhos vermelhos e chorosos, aérea a tudo que acontecia.
Jennie seguiu o olhar de Lisa e perguntou:
— Jisoo, tá tudo bem aí?
— Não é da conta de nenhum de vocês, mas que porra? Dá pra saírem do meu caminho!? — Rosé buzinou. — Saiam, inferno!
Os pneus cantaram e os três saíram da frente do automóvel. O chevette ganhou velocidade e sumiu no horizonte.
— Menina estranha... — murmurou Lisa.
Era uma pena que ela estivesse bêbada demais para se lembrar desse momento. Lisa deveria ter se lembrado das questões que passou pela sua cabeça o resto da noite: porque Rosé e a outra garota estavam sujas de lama e tão afetadas, saindo da mesma estrada que levava ao pântano?
⟡ ⟡ ⟡
(10 de março de 1995 - 28 dias antes)
A delegacia de Huimang Hill era decadente, como tudo naquela cidade, mas inusitadamente, Lisa não se espantou. Já viu e ficou em tantos lugares decrépitos que até achou reconfortante a cela maior que o trailer onde morava, com um colchonete florido e uma comida insossa de hospital. Ela não conseguiu dormir na primeira noite, seu coração doía, e o escuro era mais denso do que esperava. Normalmente, pegava no sono vendo a lua, mas ali era só o teto descascado e paredes de concreto com cheiro de construção inacabada.
O fim de semana passou rápido, Jennie continuou em sua mente.
O tédio fez com que ficasse com raiva, os dedos estavam com as pontas machucadas e não havia mais unha para roer. Na recepção, o ruído da televisão chegava abafado pelas paredes. Era o único entretenimento daquela delegacia e permanecia dia e noite sintonizada no canal de venda de bovinos.
Todas essas amenidades escondiam um pensamento cruel relacionado ao destino de Lisa a partir dali, com uma ficha na polícia. Ela arrumaria empregos meia boca em postos de gasolina na beira de estrada, herdaria o trailer e viveria como a sua mãe e, com sorte, acharia um velho disposto a desposá-la, em alguma periferia. Em um cenário pior, continuaria o trabalho das mulheres da sua família.
A cela fez um chiado incômodo, chaves batendo nas barras, e Lisa foi trazida de volta à realidade pelo guarda. Ele ajeitou a fivela da calça grande demais para o corpo franzino.
— No terceiro dia costumamos dar um banho nos presos — disse ele.
Lisa se levantou da cama, com as costas doídas pelo tempo que permaneceu deitada, e olhou para os lados.
— Não me parece ter mais gente aqui, a não ser eu.
— Realmente não temos. — O guarda riu. O molho de chaves dançou nas mãos dele. — Mas você tem sorte, pode tomar banho em casa.
— Rosé retirou a denúncia? — perguntou ela, estupefata.
O guarda maneou a cabeça em negação.
— Pagaram a sua fiança.
Lisa engoliu um bolo de angústia. Ela se sentiu tola só por pensar nessa possibilidade.
A recepção da delegacia continha duas mesas e um guardinha tedioso. Do lado de fora, o céu era cinza claro, preguiçoso, e o ventilador de teto rodava e rodava, espalhando mormaço. Era um saco ser policial em Huimang Hill e se preocupar apenas com roubos de pulseiras e gatos em cima de telhados.
Nada de realmente ruim acontecia naquela cidade.
Lisa bateu as mãos na mesa, os olhos pequenos do guarda caíram nela.
— Quem me tirou daqui? — perguntou.
Era uma pergunta retórica, queria ouvir o óbvio: que Jennie conseguiu o dinheiro para a fiança e a esperava dentro do monza, vestida com o casaco que a emprestou, mesmo que estivesse calor demais para usar algo que cobrisse os braços, mas soaria poético e um pouco romântico não ter tirado-o até conseguir tirá-la da cadeia.
O guarda apontou para a porta da delegacia.
— Ele.
O sorriso de Lisa morreu, lá estava Kai, esperando por ela.
Kai encostou-se no monza, parado do outro lado da rua, o Sol forte o atingia como se o beijasse, deixando-o bronzeado. Ele tinha um bronze natural que não deixava de marcar presença, destacando os olhos castanhos claros. Um mini óculos escuros pendia no nariz, deixando-o pronto para uma sessão de fotos, para entrar no elenco de uma série de TV ou para tirar a garota da sua garota da prisão.
Lisa caminhou até ele, devagar, para agraciar o calor do Sol e a brisa fresca da manhã.
Ele tirou os óculos e jogou no banco do monza.
— Desculpe, papai demorou a me dar a mesada.
— Eu deveria ficar grata por você ter deixado de gastar esse dinheiro em roupas que nunca vai usar para me tirar da cadeia? — perguntou Lisa, incrédula.
O sorriso dele pendeu para o lado, os olhos fixos nela. Lisa estava tão perto que sentia o cheiro da colônia de barbear, misturada aos cigarros mentolados e o shampoo do cabelo recém lavado.
— Claro que deveria, deveria me agradecer mais tarde, aliás — ronronou Kai.
— Deixe de ser bobo... — A frase saiu lenta pelos seus lábios, o sotaque o deixou ainda mais arrastada. — Onde está Jennie?
O clima se dissolveu rapidamente e a postura de Kai mudou. Ele abriu a porta do carro, em um convite mudo para que Lisa entrasse, mas ela deu alguns passos para trás, repentinamente preocupada.
— Kai? — Silêncio. — Kai, porra, me fala o q...
— Rosé armou para ela. Armou pra vocês duas — respondeu ele.
Lisa fechou os olhos com força, sem ao menos saber o porquê Jennie não estava lá ou que tipo de armação Kai falava, sentiu o peito descer e subir rapidamente. Não gostava de chamar essa sensação de sexto sentido ou associá-la a algo divino, mas sabia que o que quer que Rosé fez a Jennie, não era insignificante. Rosé nunca agia de maneira insignificante, apesar da sua existência se encaixar nessa palavra.
Lisa olhou para trás, para a cadeia que havia acabado de sair e sua fachada medíocre, e por um segundo sentiu falta de estar lá, sentiu falta dos poucos dias que não teve problemas para se preocupar a não ser o seu futuro.
— O que Rosé fez? — perguntou a Kai.
— Ela tirou fotos de vocês duas... ficando, depois contou ao pastor e espalhou as fotos pela cidade. Agora todo mundo sabe. — Kai crispou os lábios. — Em cidade pequena não existem segredos, Lisa... não por muito tempo.
Os pelinhos do braço dela se arrepiaram. Kai sabia das fotos, sabia sobre a traição e contava como se tivesse descoberto a nota da prova de geografia. Ele arqueou as sobrancelhas, como se isso nunca tivesse sido um segredo.
— Por que está aqui depois disso? Por que está gastando o seu dinheiro para me tirar da cadeia? — Lisa quis saber.
Ele não respondeu, mas ainda a encarava, como se a resposta fosse óbvia demais para expressar em palavras.
— Só entre no carro, temos assuntos importantes para tratar agora.
Kai tinha razão ao dizer que havia assuntos mais importantes para serem tratados, Lisa sentia que precisava encontrar Jennie como precisava de ar para respirar. Eles entraram no carro, que fez um ruído familiar ao engatar.
— E onde ela está? — Lisa apertou o cinto entre os dedos, como se precisasse descontar em algo.
Kai maneou a cabeça, sem olhar para ela.
— Eu não sei, ninguém sabe... e o pai dela não vai contar.
Ele dirigia tão devagar que o sentimento de aflição persistia e aumentava gradativamente.
— Há quantos dias? — Lisa perguntou.
Ele pensou por alguns segundos.
— Desde sexta, quando você foi presa.
Lisa arfou, mal podia acreditar no que estava ouvindo.
— Ruby está sumida há quatro dias e você ao menos imagina onde...?
As mãos dele apertaram com mais força o volante.
— É mais complicado do que você pensa e eu tentei... juro que tentei. Cheguei a pedir meu pai para perguntar, mas o pastor não quis contar.
Lisa tirou os olhos da direção e tombou a cabeça para o lado, recebendo um pouco do vento que entrava pela janela do carro.
— E você tem alguma ideia...?
— Não é das melhores... — Kai respirou fundo, resignado. — Ruby já te contou sobre Amber?
Lisa piscou algumas vezes, envergonhada, não deveria se incomodar tanto com o fato de Kai saber sobre esse "Amber". Eles passaram por muita coisa juntos, estavam juntos desde de que Jennie se lembrava por gente, ele foi o dono do primeiro beijo dela, da primeira vez, eram o casal que toda a cidade invejava e se casariam quando Kai voltasse da faculdade. Jennie se tornaria a primeira dama, com uma vaga memória da rebeldia adolescente que morava em um trailer.
— Ela não gosta de falar sobre o irmão... — explicou Kai. — Amber era alguns anos mais velho que nós, ensinou Jennie a dirigir, me ajudou a comprar o carro e foi quem teve a ideia de criar as corridas. Ele era a alma dessa cidade... e todo mundo meio que sabia que Amber não se vestia como uma garota, estava sempre atrás das roupas largas, dos piercings... mas a gota d'água foi cortar o cabelo e querer ser tratado no masculino. O pastor não gostou nada disso... e Amber sumiu.
Lisa se remexeu no assento, incomodada e já prevendo o final dessa história.
— Como assim...? Sumiu?
— Amber foi "sumido" — corrigiu Kai. — Nem mesmo Jennie sabe como o pai fez para tirar o irmão de casa sem ninguém ver. Eles falavam sobre o Retiro, o corpo voltou com o uniforme de lá e era a única coisa que ela sabia sobre o paradeiro dele.
— E você acha que Jennie foi mandada pra lá? — Lisa engoliu o seco. — Para esse tal de Retiro?
Kai ponderou.
— É uma hipótese. É lá que o pastor esconde as ovelhas negras da família.
A garganta de Lisa doeu, era essa a conclusão que temia. Ela precisou desviar os olhos de Kai e passar a observar as ruas calmas de Huimang Hill, tentando não chorar na frente dele. Lisa não se lembrava da última vez que chorou, talvez quando criança, quando não entendia porque não podia vestir os vestidinhos rosa que as meninas usavam ou ter aquela boneca que havia lançado, mas ao compreender que o trabalho da mãe era sujo, que não tinha amigos pois eles a chamavam de suja, prometeu nunca mais chorar.
— Podemos procurar nos mapas... — disse, segurando as lágrimas. — Deve ter alguma uma lista telefônica e...
— Esse lugar não está no mapa, Lisa.
— Então vamos ficar aqui? Esperando o corpo dela chegar!?
— Só estou tentando pensar racionalmente!
— Porra! Enfia a racionalidade no rabo, Kai! Precisamos achar Jennie o mais rápido possível!
— Boa sorte para procurar por todo o país!
Lisa o encarou com as sobrancelhas arqueadas, mas ele não devolveu o olhar e continuou a prestar atenção na estrada, as mãos tremiam no volante.
— Pare o carro — pediu.
Kai alternou o olhar da estrada para ela.
— O que?
— Pare esse carro agora! — gritou.
Ele levou o monza para o acostamento e Lisa bateu a porta ao sair. A brisa fresca foi a primeira a atingir a sua pele, o Sol iluminava todos os seus pensamentos obscuros. Kai, a alguns passos longe, era como uma antítese no meio da rodovia, queria socá-lo e abraçá-lo por ser o mais próximo de Jennie que tinha naquele momento.
— O pastor não vai nos contar onde ela está... — disse Lisa, em pânico.
Kai se aproximou, a palma formando uma concha na frente da testa, protegendo os olhos do Sol. Ao redor, não havia nada a não ser a estrada estreita e Huimang Hill lá embaixo, a terra vermelha subia em partículas pequenas e sufocantes.
— Foi o que eu disse — lembrou ele.
— E Rosé? — sugeriu Lisa.
Kai sorriu, amargo.
— Impossível.
— Talvez...
— É impossível, Lisa — insistiu Kai.
— Não podemos ser pessimistas.
— Não estou sendo pessimista, estou sendo realista. — Ele rebateu. — É mais fácil o Papa nos dar a localização do Retiro do que arrancarmos alguma coisa de Rosé.
Kai apontou para a cidade abaixo deles ao dizer "Rosé", como se ela fosse a personificação de toda aquela merda. Lisa respirou fundo, o medo, a preocupação e a possibilidade de nunca mais ver Jennie era o catalisador do seu desespero, precisava usar isso para se mexer, para executar todas as alternativas possíveis.
— Precisamos tentar, se não vamos passar os próximos dias pensando no "e se", me entende? Não custa nada tentar... — Ela olhou no fundo dos olhos dele. — Vamos tentar, por favor.
Kai meneou a cabeça lentamente, nada satisfeito com a ideia de encontrar Rosé, mas sem nenhuma contraproposta melhor para dar. Ainda com um pequeno bico nos lábios, ele deixou Lisa para trás e voltou para o carro.
⟡ ⟡ ⟡
Depois de longos minutos preenchidos por suspiros apreensivos e arfares, Lisa encarou a igreja por trás do vidro do monza. Era uma construção bonita, a torre poderia ser vista de muito longe, a mais alta de Huimang Hill depois da mansão do prefeito, porém, toda aquela pompa trazia angústia, o que soava contraditório já que aquele ambiente deveria ser acolhedor, pacífico e gentil. Algo ao redor não parecia natural, ela se sentia vigiada, como se os seus pecados fossem ser julgados em praça pública.
— É onde Rosé sempre fica depois da escola. — A voz de Kai era baixa, quase como se rezasse para Lisa mudar de ideia.
— Por que não estou surpresa? — zombou ela.
Kai se inclinou no banco e observou a igreja do ponto de vista de Lisa, como se tentasse entender o que fazia com que ela olhasse aquela construção com uma cara tão retorcida.
— Se o pastor te ver lá dentro as coisas podem piorar. Eu posso ir e você fica aqui, no carro.— pediu ele.
— Eu quero conversar com Rosé cara a cara. Você só precisa trazê-la para fora.
Kai sorriu, sem graça.
— O que te faz pensar que vou conseguir essa façanha sem precisar usar a força física?
— Nós dois sabemos que você não precisa usar a força física para conseguir o que quer — respondeu ela, como se fosse óbvio. — Sorria, olhe dentro dos olhos dela e passe as mãos nos cabelos... eu não preciso te ensinar o que você já sabe, não é?
Antes de ter uma resposta, Lisa saiu do carro, esperando que Kai fizesse a mesma coisa.
Ela deu a volta pela lateral da construção e descobriu a antiga igreja aos fundos, o patrimônio intocável rodeado de histórias e mato. As mãos molhadas de suor inutilizaram o cigarro de menta que pegou antes de sair do carro e a incerteza começou a se juntar ao medo. Talvez Kai estivesse certo, era uma péssima ideia falar com Rosé.
Lisa maneou a cabeça, tentando se manter tranquila a esses pensamentos, e entrou dentro da igreja destruída. Por sorte, não precisou esperar muito tempo para Kai aparecer novamente, acompanhado de Rosé. Ela usava um vestido de babados azul e as sandálias tilintavam no chão desregular. Rosé parecia uma boneca de porcelana, nenhum fio do cabelo vermelho-alaranjado estava fora do lugar.
Ela ergueu a mão e Kai a ajudou a passar por um dos buracos da parede.
— Por que não quis entrar na igreja, estrangeira? — perguntou Rosé.
A constatação de que havia acabado de sair da prisão se tornou um pensamento difícil de ignorar.
— Não sou bem vinda lá dentro — respondeu Lisa.
— A igreja aceita todos que tenham fé — rebateu ela. Kai segurou um riso, mas Rosé o fitou com uma careta. — A que devo a honra?
Embaixo da janela havia várias bitucas de cigarro. Lisa imaginou o pastor ali, fumando um maço atrás do outro enquanto criava cenários macabros para torturar seus filhos não tementes a Deus.
— Não está surpresa em me ver? — perguntou Lisa.
— Não. Eu já sabia que você estava solta — Rosé jogou uma mecha dos cabelos para trás dos ombros. — A justiça desse país está cada vez pior, ainda mais quando o assunto é fiança, não é?
Lisa sorriu, a língua passando pelos dentes da frente.
— Preciso concordar com o primeiro ponto, mas o problema não é a fiança... é a polícia ser tão incompetente que não consegue distinguir uma denúncia falsa de uma verdadeira.
Kai lançou-lhe um olhar de advertência, como se dissesse: "É esse o seu plano? Irritá-la até que ela se canse e vá embora?" Mas Rosé sorriu triunfante, nem um pouco afetada pela alfinetada de Lisa. Ela não podia andar, por causa dos saltos, e devido a isso permanecia em frente a um dos buracos, se sustentando nas paredes para não cair.
— Me fale, quantas vezes você precisará abrir as pernas para pagar tudo que deve a Kai? — Rosé ergueu o indicador. — Mas pense pelo lado bom, sua mãe pode ajudá-la a fazer a conta!
Lisa formou punhos com as mãos. Seria fácil derrubá-la, em um só movimento acabaria com aquela expressão prepotente, mas Kai interveio antes que tivesse a chance e parou no meio delas. Lisa recuou.
— É isso que ela quer, não vê? — sussurrou Kai. — Você precisa manter o foco ou vamos sair daqui de mãos abanando!
Lisa mordeu os lábios.
— Você tem razão, droga. É só que... ela me tira do sério —sussurrou em resposta.
— Agora eu posso ir embora? — perguntou Rosé, atrás deles. — Não quero atrapalhar nada entre vocês!
Lisa nunca precisou ser política antes, nunca precisou ter que negociar ou jogar pelos interesses de outra pessoa. Lawan dizia que a filha era como uma luta de ringue sem regras, pronta para conseguir tudo da forma mais direta e arrebatadora o possível, mas em Huimang Hill eles agiam de uma maneira diferente e, a princípio, ela achou que estivesse saindo bem, mas caiu tão fácil nas provocações de Rosé que se sentia envergonhada.
— Ainda não terminamos... — Lisa molhou os lábios secos. Kai saiu do caminho, mas ficou ao seu lado. — Eu não sei o que você está tramando ou o motivo do seu ódio por Ruby... mas acho que não gostaria de vê-la morta, certo? Se você sabe onde ela está, precisa nos dizer.
Rosé maneou a cabeça, confusa.
— Por que vocês acham que eu sei?
— Não é óbvio? — bufou Kai. — Nada acontece aqui sem você saber. Se nos contar, vamos...
— Fazer algo pior comigo? — interrompeu Rosé.
— Pode parecer inusitado, mas a maioria das pessoas estão ocupadas vivendo suas vidas, nem tudo gira em torno do seu umbigo — rebateu Lisa.
— Você chegou agora, querida, pega mal dizer coisas que não sabe. — Rosé usou um tom de voz condescendente, como se Lisa não entendesse vocabulário básico. — Por que não pergunta pro seu pseudo namoradinho como as coisas funcionam aqui?
Kai massageou as pálpebras.
— Rosé, cale a porra da boca...
— O que eu falei de errado? — Ela prosseguiu, em uma falsa surpresa. — Vocês deveriam me agradecer, sem Jennie o caminho está livre!
— Já chega! Você é uma completa maluca! — Lisa se aproximou apenas para apontar o dedo no meio daquele rosto hipócrita. — Kai tinha razão, é impossível manter uma conversa civilizada com você!
Rosé parecia uma estátua, não se abalou em nenhum momento. Lisa puxou Kai para a saída, não seria responsável pelos seus próprios atos se ficasse mais dois minutos na companhia dela. De repente, uma figura pequena apareceu no buraco em que iriam sair. Lisa recuou alguns passos, fitando a face em pura curiosidade e inocência da garota, o que tornava as feições dela ainda mais infantis do que já pareciam.
— Está tudo bem aí? — perguntou ela, intercalando o olhar entre os três.
Lisa se lembrou dela, era a garota do banco do carona. Foi a primeira vez que ouviu a sua voz, se assustou no quão grave era.
— Está sim! Lisa e Kai vieram conversar comigo, mas já terminamos! — Rosé passou por eles e puxou a menina para perto.
Lisa as observou sumir por uma das portas laterais da igreja. Kai pegou a sua mão, apertando contra a dele.
— Rosé é maluca, não leva a sério nada do que ela diz, okay? Agora precisamos encontrar outro jeito de descobrir onde Jennie está.
Os lábios de Lisa estavam secos, a garganta ranhosa, não se lembrava da última vez que bebeu água.
— Não precisamos encontrar outro jeito.
Kai franziu o cenho.
— Lisa, você mesmo disse, foi perda de tempo...
— Não, não foi — falou, firme.
Um formigamento subia pelos seus pés e tomava outras partes do seu corpo. Ela tinha mais perguntas do que respostas, mais inseguranças do que certezas e muitos sentimentos indefinidos acumulados na garganta, mas aquela menina fez tudo valer a pena. No último segundo, ela apareceu junto a uma memória importante: ela no banco do carona de um chevette sujo de lama, afetada e chorosa, tão frágil e abalada, tão às ordens. A voz de Jennie estava junto à lembrança: "Jisoo." Esse é o nome dela.
Lisa riu, incrédula.
— Rosé me ajudou, no fim das contas...
Kai demorou a entender o motivo da risada, mas quando compreendeu o porquê, começou a rir também.
— Você está falando da pobre coitada da Jisoo?
— A própria. — Lisa apertou a mão dele com mais força. — Vamos descobrir tudo o que precisamos com a cadela da Rosé. Vamos salvar a nossa garota, Kai.
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