Não conte nada a Julieta
(23 de março de 1995 - 13 dias antes)
— Lisa Manoban
— Ah, qual é! — Lisa empurrou os ombros de Kai. Ele deu alguns passos para trás, balançando os cabelos molhados de suor.
O rosto de Kai estava vermelho pelo exercício físico em excesso, mas o resultado era visível: seus braços tinham crescido em pouco tempo.
Lisa começou a andar de frente para ele.
— Pare de se preocupar com vestibular, você sabe que vai conseguir e, se não conseguir, seu pai paga uma faculdade particular para você, simples assim.
Kai gargalhou, deitando-se no gramado.
— Nada é tão simples assim.
Ela sentou-se ao lado dele.
O céu de fim de tarde era preguiçoso. Kai começou a usar o colo de Lisa como travesseiro. Os dois continuaram no gramado, encarando o dia virar noite. Ao fundo, a propriedade do prefeito se erguia como um monumento, as luzes do gramado se acenderam sozinhas quando escureceu totalmente. O casarão antigo parecia uma casa que um senhor de escravos teria. Lisa não duvidaria se um dia tivesse sido, era sabido que a herança do prefeito passava gerações.
Kai havia herdado a cidade, o dinheiro e o maxilar proeminente do pai, a beleza e bondade da primeira dama.
— Eu preciso me preocupar, Lisa — sussurrou Kai.
— O quê? — Ela maneou a cabeça em confusão.
O silêncio entre eles durou tanto tempo que Lisa se esqueceu sobre o que conversavam.
— Eu falei que eu preciso me preocupar — repetiu ele. — Meu pai fala que tudo que merecemos vem do nosso esforço, então mesmo se ele decidir pagar a faculdade, vai querer que eu morra tentando a bolsa.
Lisa respirou fundo, adentrando com os dedos pelos cabelos molhados de Kai, em um carinho singelo.
— Não entendo como todos vocês conseguem viver cheios de normas e morais, de adultos dizendo o que devem ou não fazer, o que devem ou não parecer...
Ela tinha acabado de chegar a Huimang Hill, mas sabia que não ficaria muito tempo por lá. A cidade tinha um quê de estranheza que nunca se acostumou, era abafada, úmida e recheada de olhos curiosos e preconceituosos. O sol nunca brilhava em Huimang Hill, mesmo no ápice do calor o cinza tomava o céu, cheirava a cidade pequena, a mato e mentiras. O clima abafado combinava com a cidade, e, por ficar no meio de grandes serras rochosas, de florestas e pântanos em volta, os moradores tinham a sensação egoísta que eram o centro do universo, como se não houvesse nada além de Huimang Hill.
Nada a prenderia lá, Kai era um bom amigo, sentiria falta dele, mas o esqueceria daqui a uns anos, como esquecera dos outros.
— Estou pensando em ir embora. — Ela revelou o pensamento em voz alta.
— Me leve com você — pediu Kai, baixinho.
— Não fale isso nem brincando, você sabe que não consegue ficar longe daqui.
— Então fique também.
Lisa bufou.
— Me convença... e sem usar piadinhas, cara, você é péssimo nisso.
Ele se levantou de supetão.
— Talvez eu te convença de outra forma...
Antes que Lisa conseguisse impedi-lo, sentiu os dedos ágeis na sua barriga, fazendo cócegas.
— Para... agora! — Ela se debatia na grama, rindo. — Kai, eu já disse! Para!
As cócegas cessaram, mas Lisa ainda gargalhava, porque a risada de Kai era contagiante, porque ela era só uma garota de passagem. Ocupava seu tempo ouvindo músicas indie, pensando na próxima cidade em que iria morar e não havia conhecido o maior dos seus problemas: a filha do pastor que amava ganhar corridas.
Kai se aproximou novamente, Lisa se sentou, sentindo seu corpo formigar.
— Você precisa parar de flertar comigo — sussurrou ela, sentindo o nariz dele resvalar no seu.
Kai sorriu malicioso.
— E quem disse que eu estou flertando com você?
— Essa é a cara que você faz quando está flertando comigo. — Ela apontou para o rosto dele e recebeu um tapa para abaixar as mãos. — Estou falando sério, Kai.
— Por que?
— Porque você tem namorada. —rebateu.
— Bem lembrado. — Ele sorriu, como se aquele fosse um assunto que anotaria na caderneta e colocaria na última gaveta da cômoda, embaixo de vários outros lembretes esquecidos. — E falando nela...
Lisa se virou para acompanhar o olhar dele. Alguém se aproximava, uma figura que ainda não havia sido apresentada. Assim que ela chegou perto o suficiente, Kai se levantou, sorriu e a suspendeu do chão, beijando seus lábios. A garota vestia uma jaqueta jeans que ia até os joelhos, a manga estava dobrada perto das mãos e os cabelos esvoaçavam. Por baixo da jaqueta, um conjuntinho de saia e topper vermelho tomavam conta do corpo delgado.
— Você é a famosa Lisa? — Ela levantou uma sobrancelha, surpresa. — Kai vive falando sobre você, que bom que finalmente nos conhecemos.
Lisa ficou alguns segundos vergonhosos sem saber o que dizer, tinha esquecido o próprio nome. Sua voz saiu como um sussurrar medroso:
— Legal... que... bacana, acho.
Kai ficou feliz, porque as duas garotas que tanto falava começaram a se falar também.
A partir dali seriam os três e o mundo, nada poderia pará-los, nada poderia afetá-los, nada poderia separá-los.
Foi ali que Kai convenceu Lisa a ficar, nada de piadinhas, cócegas ou cantadas baratas.
Jennie convenceu Lisa a ficar, convenceu Lisa a ficar a fazer tudo por ela.
⟡ ⟡ ⟡
Lisa sabia das consequências caso fossem pegos. Ela era a única do trio com mais de 18 anos e nada mais que uma mãe prostituta para clamar a sua inocência, se necessário. Kai, com 17 anos, poderia usar da genética mágica que o fez muito parecido com um galã de cinema e do pai influente o bastante — e rico — para livrá-lo das consequências de entrarem como voluntários em um retiro religioso, no interior do país.
O manda-chuva do lugar deveria ser mais criterioso com seus funcionários, mas estávamos nos anos 90 e ninguém ligava o suficiente. Naquele lugar tão remoto, as pessoas iam para morrer. Lisa estava bastante insegura e talvez um pouco arrependida, sentia um medo tão grande que tinha certeza que as coisas dariam errado. Era óbvio que daria, o que eles achavam que fosse acontecer? Entrariam no monza com nada mais que coragem como bagagem, ofereceriam trabalho em troca de moradia e fugiriam carregando Jennie no colo para longe daquele lugar? Era a típica irresponsabilidade juvenil que ouviu sua mãe dizer e nunca levou a sério.
— Kai... — lamuriou ela, mas perdeu o ímpeto ao olhar os olhos brilhantes dele, na escuridão do corredor. Iriam recuar? Deixá-la ali? Lisa mordeu os lábios, aflita. — Sei que é um plano arriscado, mas você não acha arriscado demais?
Kai fechou a porta para que Jennie não ouvisse a conversa no corredor.
— É óbvio que é arriscado, mas você tem outra ideia?
Lisa se aproximou dele, segurando-o pelo braço.
— Eu tenho todos os motivos para aceitar esse plano sem pestanejar, mas consegue entender plenamente o que ela disse? Vamos dopá-la o suficiente para ela perder a consciência, ela pode morrer, Kai.
O rosto dele se tornou uma máscara impassível, como se não tivesse mais saco para discutir com Lisa.
— Ela toma os remédios e morre, ela fica e morre, você consegue entender plenamente que não temos outra opção?
Lisa engoliu o seco, dando passos vacilantes para trás, mas Kai a abraçou forte.
— Desculpe, eu sei que está com medo, eu também estou, mas vamos conseguir tirá-la daqui essa noite. Eu prometo, Lisa — sussurrou ele, em seu ouvido.
Ela se forçou a acreditar naquelas palavras com a força restante que possuía. Deixar Jennie ali não era sequer uma opção, nem uma hipótese. Sendo descobertos ou não, sofrendo as consequências ou não, eles iriam tentar.
Kai se afastou e tirou a chave do bolso, balançando-as.
— Vá até a sala de pertences e pegue as roupas de Jennie, ela disse que os remédios estão no bolso de trás do jeans.
Lisa arqueou uma sobrancelha, surpresa.
— Como conseguiu as chaves?
Ele sorriu, enigmático, e as jogou para ela.
— Se eu te contar, vou ter que te matar.
— Engraçadinho. — Lisa guardou o molho de chaves no bolso do macacão, vendo-o se preparar para voltar ao quarto de Jennie. A porta estava enferrujada e, ao abrir, um ranger baixinho soou pelo corredor deserto. — Cuide bem dela, eu já volto.
Ele maneou a cabeça em afirmação e sumiu para dentro do quarto. Lisa permaneceu no corredor, pensando. Aquela breve viagem de resgate trouxe questões das quais nunca pensou antes. Deu passos arrastados até a porta do quarto de Jennie, observando-os pela pequena fresta.
O lampião estava no meio do quarto, projetando sombras pelas paredes e pelos dois ocupantes, embebidos naquela semi escuridão pacífica. Jennie estava deitada no colchão, a luz amarelada acentuava os ossos protuberantes, as bochechas sugadas e os braços frágeis, como se fossem se quebrar ao menor toque. Lisa não conseguiu olhar para ela por muito tempo, ainda teria que buscar forças para lidar com o que fizeram com Jennie.
A tailandesa se sentia culpada, se não tivesse cedido à tentação de ficar em Huimang Hill e de ficar com a namorada do seu melhor amigo, nada disso estaria acontecendo. Rosé não teria as fotos comprometedoras e o pastor nunca saberia sobre a breve aventura de Jennie.
Kai se sentou na beirada do colchão, os dedos alisavam suavemente o rosto de Jennie. Ele estava de costas para Lisa, de modo que ela só conseguia ver a figura imponente dele, a figura que protegeria Jennie e seguia com coragem o suficiente para guiá-las. Lisa se encolheu ainda mais, ciúmes era um sentimento novo, nunca tinha experimentado antes.
Jennie se aninhou nos braços dele e Lisa percebeu, com um revirar de estômago, que talvez nunca conseguiria ter aquele nível de intimidade com ela. As pausas longas, as constatações no escuro... era uma garota de fora, de todo modo. Era boa na cama.
Se afastou da porta, ainda a passadas lentas, e caminhou para o fim do corredor. Ela segurou as lágrimas, segurou os pensamentos que não conseguiria lidar naquele momento.
Eles tinham um plano em mente e se focaria nele, pelo bem de Jennie.
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