Não conte nada a eles
(21 de março de 1995 - 11 dias antes)
— Kim Jisoo.
Jisoo lidava com a ansiedade de formas diferentes.
Às vezes, gostava de deitar na banheira cheia de água e se imaginar no pântano, se afogando no lodo espesso, sendo preenchida por uma escuridão total sem estrelas... noutras, na maioria das vezes, gostava de ficar ao lado de Rosé. Era um anestésico natural para a ansiedade, com Rosé não tinha medo, tremedeiras e sensação de finitude. Jisoo se sentia infinita, como se vivesse dentro de uma fotografia, presa naquele pequeno segundo em que a câmera fotográfica dispara e o sorriso se torna imortal. Não envelheceria, não se tornaria mãe ou avó de alguém, viveria na magia do fim dos anos noventa.
Mas ela sabia que a única maneira de viver eternamente jovem era morrer jovem.
Jisoo engoliu em seco, escondendo as mãos trêmulas no casaco de tricô. Naquela manhã Huimang Hill amanheceu fria, estranhamente na mesma manhã em que o monza vermelho apareceu estacionado na porta da sua casa, com o garoto bonito parado do lado de fora, esperando o momento que ela acordaria e olharia pela janela.
Kai lembrava o verão, o pecado, o intocável, mas também podia ser o detentor do frio quando queria. Jisoo presumiu que fora ele o responsável por fazê-la desenterrar o casaco de tricô naquela manhã, enquanto saiam da parte residencial da cidade. Ele não disse nenhuma palavra, mas Jisoo entrou no carro mesmo assim, pois sabia o porquê Kai estava ali. Lisa tinha cumprido a promessa de chamá-la assim que conseguisse salvar Jennie.
A ansiedade, que já estava difícil de ser controlada em dias comuns, aumentou gradativamente naquela curta viagem. Era como se fosse enterrada viva, estrangulada por uma mão invisível.
— Chegamos — disse Kai, batendo a porta do carro ao sair.
Ela levantou o olhar para encarar o trailer na beira da estrada. Uma mulher na faixa dos cinquenta anos fumava um cigarro na portinha pequena, e mesmo que fosse cedo demais para começar o vício, algo na maneira que ela tragava o cigarro indicava que talvez nem tivesse parado.
— E aí, gostosão? — Ela deu um tapa estalado na bunda de Kai assim que ele passou pela porta, entrando no trailer. — Olá, docinho! — E encarou Jisoo com curiosidade.
O que faria a seguir? Imitar Kai e entrar sem pedir licença? Esperar Lisa aparecer? Mordeu os lábios, ansiosa, no momento em que Lisa apareceu na janelinha lateral com um sorriso grande, transformando todo o frio em calor, como o próprio sol que havia abandonado Huimang Hill.
— Mãe! Está deixando a Jisoo tímida?
— Eu não fiz nada! — A mulher se virou, chocada. — Achei que a garota fosse muda!
Elas riram. Jisoo acabou rindo também, se aproximando de Lawan.
— Bom dia, senhora.
Recebeu um olhar enigmático da prostituta, como se fosse uma criatura muito diferente das que a filha costumava levar pra casa, e realmente era.
— Só Lawan, querida, e fale mais vezes! Você tem uma voz muito bonita para ficar calada.
Lisa acenou positivamente com a cabeça, concordando com a mãe, e puxou Jisoo para dentro do trailer.
— Não precisa agir assim, minha mãe não liga para bons modos — sussurrou ela.
— Eu ouvi, peste! — gritou Lawan.
Lisa voltou para mostrar um dedo do meio a mãe e logo começou a guiar Jisoo pelos cubículos pequenos do trailer. Os cômodos eram aconchegantes, a cozinha era composta por uma mesa de dois lugares, um sofá pequeno com gatos dorminhocos e eletrodomésticos versão "mini". Kai estava sentado na mesa de dois lugares balançando o café num copo barato e continuava a estampar a mesma indisposição que esteve presente a viagem inteira. Jennie estava sentada ao lado o namorado, parecia ter acabado de chegar de uma guerra, Jisoo demorou segundos vergonhosos para reconhecê-la. A pele estava amarelada e cheia de marcas de feridas, como se estivesse anêmica — o que poderia ser verdade — já que os ossos da clavícula saltavam, os ombros magrelos e curvados tão frágeis que poderiam se quebrar com um vento mais forte. Havia tufos irregulares pela cabeça dela que nada lembrava os cabelos de outrora.
— Está feliz, Jisoo? — perguntou Jennie.
Lisa advertiu a amiga com o olhar.
— Jisoo precisa ver o que ela fez comigo! — exclamou Jennie, apontando para o próprio peito.
— Jisoo não tem culpa das barbaridades de Rosé, Ruby! Se não fosse ela, não teríamos te tirado de lá! — respondeu Lisa.
Jennie bufou.
— Ela poderia ter...
— Não poderia. — continuou Lisa, entredentes. — Jisoo se colocou em risco, assim como Kai e eu. Ela estava preocupada com você.
Jisoo e sua expressão assustada corroboraram ainda mais para que a defesa de Lisa surtisse efeito. Jennie se calou, molhou os lábios com a língua e abaixou a cabeça.
— Me desculpe, eu só... — Ela suspirou. — Eu só estou abalada por tudo que aconteceu... — Jennie buscou aprovação pelo pedido de desculpas em Lisa.
Jisoo tentou sorrir, em um incentivo.
— Tudo bem, eu não posso imaginar tudo o que você passou lá e...
— Claro que não pode.
Dessa vez foi Kai quem respondeu, com os olhos focados no copo de café, como se olhar para Jisoo fosse um privilégio que ela não mereceria.
Estava mais do que óbvio que Jisoo não era bem vinda ali e, apesar de estar acostumada a se sentir indesejada em todo o lugar da cidade, aquele tipo de ataque direto era insuportável. Ela se virou, pronta para ir embora, mas Lisa não permitiu que saísse da cozinha e a fez se sentar no estofado, expulsando os gatos que antes dormiam ali.
— Sua saia vai ficar lotada de pelo, se importa? — perguntou ela.
— Nem um pouco — respondeu.
Lisa pôs café no copo de molho de tomate que os três também usavam, como se assim Jisoo passasse a fazer parte do grupo.
— Jennie voltou e ninguém pode saber disso. Ela vai ficar aqui até as coisas se acalmarem.
— Até eu acabar com Rosé — corrigiu Jennie.
Um clima mais gélido que o frio anterior se instaurou nos quatro ocupantes, Jisoo encarou a fumaça quentinha que saía do café e tomou um gole, gostou do sabor amargo da bebida apesar de ter algo de alcoólico misturado. Quando levantou os olhos, três pares lhe encaravam a procura de alguma resposta a correção de Jennie. Eles queriam entender de que lado estava, no entanto, se procuravam por isso, por uma decisão, uma resposta petulante ou um sinal explícito de qual caminho ela seguiria, se decepcionariam, — Jisoo estava tão ou mais perdida que todos ali pois nunca na vida esteve do lado que fazia uma escolha, que lutava por algo, só recebia ordens e cumpria ordens, como foi ensinada.
Uma expressão de incredulidade perpassou pela expressão de Jennie e, graças ao silêncio, a voz dela pareceu mais alta e quebradiça, ecoando pelas paredes finas do trailer:
— Eu tenho pena de você.
Jisoo interrompeu o movimento para tomar mais um gole do café.
— Como?
— Eu tenho pena de você, Jisoo, sempre tive — repetiu Jennie, pausadamente. — Quando éramos crianças eu queria te salvar dela, eu não achava certo o jeito que Rosé te tratava, como te obrigava a ser um cãozinho treinado e obediente... fico pensando se teria dado certo, porque, agora, tudo que consigo sentir por você é pena.
Jisoo também se permitiu pensar a respeito. Teria dado certo? Se sentiria menos presa? Teria uma auto estima melhor? Uma ambição sequer na vida? Talvez dividisse o monza com Kai, Jennie e com Lisa, venceria as corridas na rota 87 e eles a fariam se sentir pertencente a algum lugar no mundo.
— Vocês acham que eu vou dar para trás, não é? — Jisoo apertou o copo de café com força, sentindo os nódulos dos dedos doerem pela pressão. — Que vou contar tudo à Rosé.
— Nós temos certeza.
— Diga por você, Kai. Eu confio nela — Lisa respondeu e se virou para Jisoo. — Foi por isso que eu te trouxe aqui, lembra do que conversamos naquela noite?
Era tudo o que Jisoo mais lembrava, se agarrava aquela promessa com todo o seu coração, agora tinha outra deusa que lhe supriria, que tiraria toda a ansiedade presa dentro de si. Por que não embarcar no que quer que Lisa dissesse? Ainda mais com os olhares ciumentos de Jennie e Kai queimando aquela cozinha.
Era boa a sensação, era bom despertar sensações novas que não fosse o que sempre recebeu a vida toda.
— Eu tô dentro — disse ela.
⟡ ⟡ ⟡
— Bem vindas ao quadragésimo encontro de mães e filhas de Huimang Hill! — A senhora Park era toda sorrisos, batendo com o garfo na taça de cristal. — Vocês não podem imaginar como é gratificante ser a responsável por esse lindo encontro! — Ela sorriu, soberba, e todas as outras mulheres tiveram que estampar o mesmo sorriso.
Jisoo foi com a mão até a gola rolê do vestido, tentando alargá-la um pouco mais. Toda a decoração daquele salão era em tons de dourado, todas as mesas estavam lotadas de guloseimas sem glúten e corações recortados e colados por ela e Rosé, que tiveram um trabalhão para criar algo a altura do que senhora Park achava agradável, mas não queria gastar para ter.
— Quero agradecer especialmente a doce e prestativa Jisoo... — Todas as mulheres no salão olharam Jisoo, que acenou sutilmente, ao lado da mãe. — E a minha fabulosa filha, Park Rosé! — Um burburinho alto iniciou quando Rosé, graciosa e angelical, reverenciou as convidadas com um sorriso casto. Os cabelos ruivos desciam como cascatas onduladas feitas por babyliss e o vestido era branco, emulando um anjo. — Minha filha está com um projeto incrível de doação de cestas básicas para a população carente do município ao lado, mas também está embarcando com tudo nos estudos e, se Deus quiser... — Ela soltou um risinho ao completar — E ele quer! Ano que vem será o ano em que ela estará cursando medicina em uma das universidades mais prestigiadas do país! Por favor, bastante palmas, mais palmas, ela merece!
A sala se transformou num alvoroço, as mães que estavam sentadas se levantaram, as filhas com inveja também foram obrigadas a se levantar e a prestar condolências à Rosé e sua bondade.
Jisoo continuou sentada.
A família Park era dona de metade do comércio vigente da cidade e possuía cabeças de gado por toda a extensão do pequeno país. Rosé seria bancada por mais quatro gerações depois dela e, como dinheiro não era um problema, gastá-lo com festas tradicionais como aquela, onde o prato principal era mergulhado na inveja de todas as mães, que não conseguiram ter uma filha tão perfeita assim e por não terem se esforçado o suficiente para pescar o senhor Park quando ele ainda era um jovem garanhão, procurando uma garota boa o suficiente para chamar de esposa. Era o passatempo favorito da família.
Huimang Hill era mantida por esse espírito.
A reunião começou logo depois. O salão era pequeno, então não tinha para onde Jisoo fugir. Ela deveria sorrir e responder as outras mães como ia o seu desempenho na escola, falar que não estava pensando em namorar pois "queria estudar primeiro" e em menos de trinta minutos já se encontrava tão entediada que o sono começou a aparecer.
— E a sua menina, Baram? Está circulando alguns rumores sobre ela e bem... todas nós sabemos que são apenas rumores, claro! Mas Jennie está fazendo falta nos cultos de domingo.
— Ah, Jennie está passando as férias na capital! Espero que consiga voltar antes das aulas começarem, mas ela está gostando tanto que não tenho certeza...
— Aposto que a capital está proporcionando férias maravilhosas a ela. — Foi automático, Jisoo não conseguiu controlar. Um lampejo de medo passou pelos olhos da esposa do pastor. Antes que pudesse se desculpar pela rispidez, seu braço foi puxado por mãos frias, o sorriso de Rosé foi quente ao se desculpar por Jisoo e pedir a as mães ali um segundo a sós com ela.
Caminharam para dentro da casa de eventos da família Park e o aperto de Rosé se intensificava. Elas atravessaram a cozinha, com garçons e cozinheiros andando de lá para cá, e chegaram à sala de arranjos e suprimentos da festa. Seu braço doía, as marcas vermelhas onde Rosé apertou formavam vergões e saltavam pela pele.
Jisoo foi jogada direto para a parede mal rebocada e a pose angelical da Park deu lugar a uma demoníaca ao se aproximar, lenta e ameaçadoramente.
— Não ouse nunca mais fazer aquilo, está me ouvindo?
— Eu não f...
— Fez sim, porra! Intimidou a mãe daquela cadela em público, não se faça de sonsa! — Rosé cuspiu no chão, raivosa, e algumas gotículas acertaram a bochecha de Jisoo. — Eu recebi notícias de Jennie, sabia? — A expressão de Rosé era desafiante.
— Talvez...
— Talvez... talvez... — Rosé aproximou o nariz do pescoço de Jisoo. — Tire a roupa e me entretenha pelos próximos dez minutos antes que sintam a nossa falta. Já te disse que você fica linda quando está calada e pelada?
Jisoo respirou entrecortado, com a boca aberta procurando ar para respirar, algo puro que não fosse o cheiro do perfume doce demais que Rosé usava. Era mais difícil do que achou que seria, como pensou que seria capaz? Esteve a vida toda nas mãos de Rosé, era um livro aberto fácil de ser lido, interpretado, modificado, se sentia tonta somente por estar tão perto dela.
Rosé juntou as sobrancelhas bem feitas numa expressão desconfiada.
— O que aconteceu?
— Por que teria acontecido alguma coisa?
— Porque você não fez o que eu mandei até agora. — Podia sentir as pedrinhas do vestido de Rosé machucando sua coxa. — Vou perguntar de novo, Jisoo, o que aconteceu? Nossa última conversa não foi esclarecedora o suficiente? Eu não deixei claro?
Algo dentro dos olhos de Rosé era próximo do que chamamos de preocupação, mas todos os sentimentos dela eram assim: algo próximo do que sentimos, algo próximo do que deveria ser normal, mas nunca realmente era. Rosé nasceu com algo faltando, nasceu oca por dentro.
— Não quero fazer o que você me mandou. — O coração de Jisoo bateu rápido, descompassado, quase pulando do peito pela adrenalina. — Se quiser diversão procure em outro lugar... porque, quando você diz... quando diz que eu sou a única...
Não conseguiu terminar, as palavras saiam como uma colcha de retalhos, pareciam certeiras em sua mente, conseguia pensar nitidamente nelas, mas na hora de dizer eram surreais demais.
— Mas que porra...? — Rosé estreitou os olhos, desconfiada. — Quem tá botando essas ideias na sua cabeça?
— Ninguém — Jisoo respondeu rápido, mas foi em vão. Nunca conseguiu mentir para Rosé, a resposta estava escrita em seus olhos.
Quando ela conseguiu decifrar a expressão desconfiada se transformou em raivosa.
— Sua filha da puta! — vociferou Rosé.
Jisoo não se lembrava de um momento onde sentiu tanto medo. Rosé foi com tudo para cima de si e o que impediu os corpos de se fundirem foi a própria gravidade, pois era visível que ela queria esmagar Jisoo como faria com uma formiga.
O jato de ar quente que saia da boca dela batia nas suas bochechas.
— Você contou a Lisa sobre o lago? — perguntou Rosé. Jisoo não conseguiu responder, tinha perdido a voz, não conseguia se mexer. — Você contou sobre o lago, porra? — perguntou ela de novo, a voz calma e repentinamente baixa, sussurrando diretamente no ouvido de Jisoo.
Maneou a cabeça, negando.
— Contou sobre mim? — perguntou Rosé.
Jisoo maneou a cabeça novamente em negação.
— Contou sobre nós duas?
Jisoo fechou os olhos com força, tremia, arfava, chegava até mesmo a rezar para que alguma das mães interrompesse aquilo. A falta de uma resposta a deu a confirmação que necessitava.
— Você enlouqueceu de vez! — gritou Rosé.
— Eu só estou cansada de ser um segredo!
— Você não entende, caralho!? — Rosé a olhava como se sofresse retardo mental, como se fosse tão insignificante que não merecesse explicações. — Você será sempre um segredo! O que achou? Que eu fosse te assumir? Você... — ela riu. — Ouviu o que acabou de dizer, Jisoo? É ridículo.
Bem, acho que vocês sabem que, o que eu conto aqui não é narrado fielmente. Eu nunca prometi a vocês fidelidade, mas a questão é que, pela primeira vez na vida, Jisoo percebeu que amar Rosé não era biológico, não era inevitável, fora do seu controle, percebeu que poderia amá-la e, ao mesmo tempo, se juntar aos inimigos dela para destruí-la.
— Então é isso? — sussurrou, mais para si mesmo do que para Rosé.
— Isso o quê? — perguntou ela, confusa.
— Acho melhor me deixar ir embora, Rosé. — Jisoo arqueou a cabeça, encarando-a face a face. — Acho melhor se recuperar e voltar a festa, ainda há muitas mães que precisam ouvir sobre os seus atos de caridade e sua benevolência. Acho melhor não me procurar mais, se sou tão insignificante, não precisa de mim, certo?
Rosé ponderou, os olhos castanhos estavam lotados de lágrimas, ela as limpou com o dorso da mão antes que escorressem.
— Você sempre se achou diferente, não é? Como se eu fosse a má dessa história toda... mas a culpa também é sua. O que fizemos não tem como ser desfeito e o que vai vir também não. — Ela deu passos desajeitados para trás, quase caindo dos saltos. — Não se esqueça que eles vão se voltar contra você quando descobrirem que é igual a mim, Jisoo. Eu te fiz a minha imagem e semelhança.
E talvez, Rosé não estivesse mentindo.
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