42. Peixes
- Julia. Julia, acorda. - Minha mãe me chacoalhava enquanto eu me virava na cama. - Julia, nós temos um problema, filha.
Foi a sua voz embargada que me fez sentar e olhar o horário no celular.
- Mãe, o que aconteceu? Por que está me acordando às quatro da manhã? - Esfreguei os olhos, me acostumando com a claridade do quarto.
- Sua avó, filha. - Um soluço escapou por entre seus lábios e eu esperei pelo pior, sentindo todo o meu corpo tremer. - Ela está no hospital.
Todos os acontecimentos depois disso foram como um borrão. Eu me lembro de vestir qualquer roupa que encontrei pelo caminho, prender meu cabelo sem me dar ao luxo de penteá-lo e então estar dentro do carro em direção ao hospital.
Minha mãe não havia entrado em detalhes e eu e meus irmãos não tínhamos coragem de perguntar o que havia acontecido. Meu pai só chorava no banco do passageiro e nós conseguíamos apenas imaginar o pior.
E o pior havia acontecido: Lúcia Silva tinha falecido às onze horas da noite do dia anterior devido a um infarto. Meu avô havia encontrado seu grande amor no chão do banheiro após o barulho do seu corpo frágil contra o piso frio. Não foi possível salvá-la, não havia o que fazer, ela morrera no mesmo instante.
Meu avô, o grande companheiro de sua vida, estava desolado durante o funeral e eu tentava consolá-lo, escondendo a minha dor. Amigos e parentes vieram vê-la, dar o último adeus, mas eu só conseguia estar ali por ele e por meu pai que não paravam de chorar um segundo sequer. Eu havia dito aos meus amigos e namorado que não era necessário que viessem, naquele momento eu precisava estar 100% ali pela minha família.
Eu também não queria estar ali, vê-la pálida e sem respirar, sem me dar mais um dos seus muitos conselhos. Imaginei como ela teria gostado de Thomás, o garoto que ela estava ansiosa para conhecer, mas que nunca chegaria a fazê-lo.
Se eu soubesse que a veria pela última vez no domingo, com certeza teria levado Thomás em meu encalço, mas nós nunca sabemos quando é nosso último adeus.
Será que eu havia agradecido o suficiente à ela? Será que disse que a amava o bastante? Será que ela se orgulhava de mim?
Sabendo o quanto seria difícil para o meu avô, as minha tia, irmã do meu pai, resolveu levá-lo para a sua casa que poderia abrigá-lo sem problemas. Imaginava que era ali que ele passaria o resto de seus dias. Se eu bem conhecia o meu avô, ele precisava de alguém que cuidasse dele e aquela casa traria lembranças dolorosas demais.
No dia seguinte, logo pela manhã, passei os olhos por algumas mensagens de consolo sem responder uma e decidi ficar na cama. Não queria receber olhares tristes ou sabia que em desmancharia em lágrimas.
Mas meus planos foram desfeitos por meu pai, que entrou no meu quarto próximo da hora de irmos para a escola.
- Julia, por que não está pronta? - Perguntou, acendendo a luz e se aproximando da minha cama.
Meu pai tinha o semblante cansado e de quem havia chorado muito, mas estava pronto para começar mais um dia o trabalho com o Uber. Suspirei profundamente e toquei sua mão em cima da cama, sentindo meus olhos marejados.
- Como você consegue, pai? - Questionei com a voz embargada.
Ele sabia sobre o que eu estava falando, porque apertou minha mão mais forte naquele momento. Depois de respirar fundo e olhar para cima, engolindo em seco o choro que queria escapar, ele se voltou pra mim:
- Dói demais, Ju. Acho que eu nunca senti uma dor como essa em toda a minha vida, mas eu ainda tenho vocês, tenho uma família pra cuidar e é isso o que a vovó iria querer, que eu cuidasse de vocês como ela cuidava. Ela não ia querer ver a neta preferida deitada na cama chorando a sua morte.
Ao final da sua explicação, ambos chorávamos e eu abracei meu pai com força, afundando meu rosto em seu pescoço. Nós ficamos naquela posição por um momento, chorando copiosamente enquanto deixávamos o tempo passar. Quando nos demos por satisfeitos, respiramos fundo e limpamos nossas lágrimas, prontos para reiniciar nossas vidas.
- Vá tomar um banho, se vestir e eu te levo pra escola. O que acha? - Assenti e meu pai abriu um enorme sorriso, beijando minha testa e se levantando. - Vou avisar sua mãe e seus irmãos. Te espero lá no carro em meia hora.
Como havia chego mais tarde naquele dia, ninguém me abordou até a hora do intervalo. Como sabia que provavelmente choraria, levei comigo uma garrafa d'água para poder me acalmar.
- Eu queria tanto ter estado lá por você. - Thomás disse, acariciando minhas costas.
- Sim, todos nós. - Carol assentiu e tocou minhas mãos por cima da mesa. - Mas entendemos que você precisava de um tempo.
- Não esperávamos que vocês viesse à escola tão cedo. - Lola comentou, acariciando os cabelos do meu irmão.
- Não adiantava nós ficarmos chorando pelos cantos dentro de casa. Não era isso o que nossa avó queria. - Davi explicou, provavelmente repetindo as falas do meu pai.
- Nos isolar seria pior. - Concordei.
- O que acham de passar a tarde lá em casa? Eu ainda estou com medo de ficar sozinho e vocês poderiam se distrair. - Gui sugeriu.
- Eu não sei... - Fiz uma careta.
Apesar de querer ficar com eles, eu não sabia se ficaria bem o suficiente para poder estar junto durante uma tarde inteira.
- Vamos, Ju. Vai ser bom pra vocês. - Carol insistiu, apertando minhas mãos entre as suas.
Troquei olhares com meu irmão que apenas deu de ombros e então eu assenti, arrancando gritos de felicidade dos meus amigos. Com certeza eu tinha os melhores amigos do mundo.
- Ei, Ju. Você viu o que o Tuti mandou no grupo da família? - Davi perguntou.
Nós estávamos todos reunidos na sala de Gui. Fazia frio e nós resolvemos que seria uma boa ideia tomar vinho para esquentar enquanto assistíamos à uma série de comédia. Me permiti sentar no colo de Thomás na poltrona, enquanto nossos amigos se espalhavam pelos sofás disponíveis. Tati não pudera vir e eu imaginava que Gui havia tido a delicadeza de não convidá-la para poder se concentrar em nos fazer sentir melhor.
- Não. O quê? - Questionei, já abrindo a conversa no celular.
Tuti: Família, consegui o estágio. Começo na semana que vem. Estou muito feliz.
Alessandra: Isso é ótimo, filho. Estou muito feliz e orgulhosa.
Meu pai havia enviado um áudio e eu escutei sua voz embargada durante os quinze segundos de bajulações. Sabia que aquilo era uma vitória para todos nós, ainda mais quando vivíamos um momento tão complicado.
- Caramba! - Disse, abrindo um enorme sorriso.
- Será que dá pra vocês pararem de ficar de mistério? - Carol resmungou.
- Meu irmão conseguiu o estágio. - Respondi enquanto enviava ícones de coração como Davi.
- O Tuti? Jura? Uau! - Gui se animou.
- Parabenize ele por mim. - Thomás disse, acariciando minhas costas e eu assenti, selando nossos lábios.
- Tudo vai se ajeitando aos poucos. - Carol disse com um sorriso acalentador.
Respirei fundo, olhando para cada um deles e sentindo um alívio dentro do meu peito.
- Obrigada, pessoal, por tudo. Não sei o que seria de mim sem vocês. - Declarei.
- Julia carinhosa, eu esperei tanto por você. - Lola disse, se levantando e vindo na minha direção.
Os outros fizeram o mesmo, dando um abraço coletivo em mim e levando Thomás de brinde, arrancando-nos gargalhadas.
- Como assim? Esperou tanto pela Julia carinhosa? - Thomás franziu o cenho, olhando em confusão para eles que voltavam aos seus lugares.
- Nada, é bobeira deles. - Disse, engolindo em seco e forçando um sorriso. - Eles também têm essa teoria de que eu sou uma Julia a cada semana. - Revirei os olhos, fingindo descrença. - Loucura, certo?
- Ah, então vocês também acham isso? - Thomás questionou, abraçando minha cintura enquanto olhava meus amigos. - Eu não sou tão maluco no fim das contas.
Meus amigos se entreolhavam, tentando não rir ou entregar o jogo, mas daquele jeito eles só levantavam mais suspeitas. Por isso puxei o rosto de Thomás para o meu, olhando em seus olhos.
- Vocês todos são malucos. - Sussurrei contra seus lábios, iniciando um beijo breve.
- Sei. - Thomás disse, semicerrando os olhos.
Tinha que mudar de assunto ou acabaríamos todo revelando algo que não deveríamos.
- Quem quer mais vinho? - Questionei, mostrando a garrafa vazia.
Todos chacoalharam as taças vazias em resposta.
- Eu te ajudo. - Meu namorado se ofereceu, se levantando e me acompanhando até a cozinha.
Peguei a outra garrafa, tendo facilidade em abri-la, mas não conseguindo terminar de fazê-lo. Thomás me virou de frente para ele, me recostando na pia enquanto me olhava com algo perto de admiração.
- Você tem ideia do quanto eu te amo? - Perguntou em um sussurro.
Abri um enorme sorriso, tocando seu rosto e acariciando suas bochechas com os polegares. Pela carícia, ele deitou a cabeça em uma das minhas mãos e sorriu.
- Eu também te amo, Tom. Muito. - Disse baixo.
Seus olhos verdes me encararam por um momento enquanto eu sentia suas mãos acariciarem meu quadril para cima e para baixo.
- Muito?
- Demais. - Assenti.
Embrenhei meus dedos em seus cachos e com a outra deslizei por seus ombros, abraçando-o para mim. Logo nossos lábios estavam unidos em um beijo calmo, nossas línguas se movimentando em uma dança sincronizada enquanto nós curtíamos o momento.
Eu achei que me incomodaria com todo aquela melação, mas o meu signo não permitia. Ser a Julia Pisciana deixaria o meu namorado do signo de peixes muito feliz e ele merecia depois de ter aguentado tantas de mim.
Thomás colou mais nossos corpos, pressionando seu quadril no meu e sorrindo junto comigo, sem nunca descolar nossos lábios. Por mais que eu quisesse prolongar aquele momento, ainda estava triste e precisávamos levar o vinho até nossos amigos.
Selei nossos lábios algumas vezes e empurrei o garoto com delicadeza.
- Precisamos levar o vinho. - Disse, me virando para terminar de abrir a garrafa.
- Claro, tinha me esquecido. - O garoto riu.
- Eu quase me esqueci, meu amor. - Congelei no lugar, franzindo o cenho.
Ele havia percebido?
- Do que me chamou? - Thomás perguntou.
Me virei para ele com uma taça na mão e a garrafa aberta na outra. Entreabri os lábios diversas vezes, sentindo minhas bochechas corarem enquanto o sorriso nos lábios de Thomás se tornava cada vez mais largo.
- Você nunca me chama de amor. - O garoto tinha um enorme sorriso nos lábios enquanto se aproximava.
- É? - Foi tudo o que a minha voz trêmula conseguiu dizer antes dele tomar meus lábios mais uma vez.
Eu não estava nem um pouco incomodada em ser beijada diversas vezes por Thomás. Pelo contrário, me peguei ansiando por aquilo. De mau jeito, tentei envolver seu pescoço com os braços sem derrubar o vinho, mas é claro que eu acabei derrubando a taça e nosso momento foi interrompido.
- Opa. - Coloquei a mão nos lábios, me afastando dos cacos junto com Thomás e acabando por pisar em um deles com o pé descalço. - Ai, droga!
- O que aconteceu? - Gui chegou na cozinha junto com os outros, vendo o estrago que eu havia feito. - Meu Deus, Ju. Você está bem?
Thomás e Guilherme me ajudaram a sentar em uma cadeira estrategicamente pega por meu irmão mais novo. Eu mal percebi que ainda segurava a garrafa com força quando Thomás a tirou da minha mão e deixou em cima do balcão.
- Acho que sim. - Pressionei os lábios, tirando o caco de vidro que havia ficado preso em meu pé e vendo uma bolha de sangue se formar no local. - Droga, me desculpa, Gui. Eu prometo que pago pela taça.
- Não se preocupa com isso. - Gui se afastou em passos largos.
Lola e Carol se organizavam para recolher os cacos do chão enquanto nosso amigo voltava do banheiro com uma caixa de primeiros socorros.
- Garotas, deixem que eu faço. - Pedi, vendo Gui se ajoelhar e começar a limpar o ferimento. - Ai! - Gemi, segurando a mão de Thomás com força.
- Você fica aí, desastre ambulante. - Carol apontou na minha direção enquanto colocava os cacos de vidro em uma caixa de leite vazia.
- Pronto. Nova em folha ou quase isso. - Gui deu de ombros, olhando meu pé enfaixado e se afastou, indo guardar a caixa.
- Obrigada Gui! - Sorri para ele.
Me levantei com a ajuda do meu namorado e andei até a sala apoiando apenas o calcanhar no chão, sem querer sujar a casa do Gui com meu sangue caso ele vazasse pela atadura.
- Talvez eu devesse andar calçada. - Comentei, fazendo Thomás rir.
- E parar de beber seria uma boa também. - Provocou.
- Está dizendo que fiz aquilo porque estava bêbada? - Ergui uma sobrancelha, me virando em seu colo para olhá-lo melhor.
- Claro que não, mas por ter derrubado uma taça vazia no chão. Pensando bem, acho que eu fui o problema. - Tentou se explicar e eu só consegui rir, depositando um beijo em seus lábios.
- Eu que te salvo e ele que recebe o prêmio? - Gui perguntou enquanto nos entregava duas taças de vinho e voltava ao seu lugar junto com os outros, também com suas taças cheias.
- Ficou com ciúmes? - Fiz um pequeno bico.
- Nossa, morri de ciúmes. - Gui revirou os olhos, nos fazendo rir.
- Depois eu lembro de beijar seus pés. - Disse, mostrando a língua pra ele.
- Vou cobrar! - Ele apontou na minha direção com os olhos semicerrados.
Ri baixo e revirei os olhos, sentindo os braços de Thomás me envolverem em um abraço confortável enquanto voltávamos a assistir a série.
De repente havia me esquecido dos meus problemas e me senti sortuda por ter amigos tão adoráveis.
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