40. Aquário
Depois de todo o estresse passado na semana de capricórnio, eu e Thomás precisávamos de um momento como aquele. Por mais que tivéssemos transado na semana passada, fora algo mais mecânico e frio, nada como aquela tarde de amor.
Quando Thomás e Lola estavam entregues em suas casas, logo depois de jantarem em nossa casa, eu estava livre para descansar um pouco. Decidi pegar meu celular e vi centenas de mensagens e ligações de Carolina. Não pensei em outra saída a não ser ligar para ela, que atendeu prontamente.
- Aonde você tava, Julia?
- Oi pra você também. - Murmurei, caminhando pelo quarto que ainda carregava o cheiro de Thomás. - O que aconteceu?
- Você não leu as mensagens? Você é inacreditável! - Carol bufou. - O Guilherme foi preso, Julia.
Senti meu corpo todo congelar enquanto me sentava na cama para tentar me acalmar e conseguir digerir o que Carolina tinha acabado de me falar.
- O quê? Por quê? Ele já saiu?
- Saiu. Os filhos da puta confundiram ele com um assaltante da região.
- Aquele que assaltou o Thomás. - Afirmei.
- Deve ser. - Murmurou.
- Carolina, isso é muito grave. - Disse, mordiscando a unha do indicador.
- Eu sei! Eu estou morrendo de vontade de socar aqueles policiais. - Rosnou.
- E ele já está em casa?
- Tá sim. Os pais querem processar os policiais por racismo, mas a gente sabe que não vai dar em nada. - Disse com pesar.
- E se a gente se mobilizar de alguma forma? Tentar levar isso pra imprensa? - Sugeri. - Tem muita gente que tá se conscientizando hoje em dia.
- Eu topo. Quero fazer qualquer coisa para me distrair desse sede de sangue que eu tô.
No dia seguinte, eu e Carolina nos encontramos na porta da escola. Não dissemos aos nossos o que faríamos, então pouco a pouco eles chegavam e nos viam entregando folhetos impressos pela Carol sobre racismo e como poderíamos mudar a situação do negro no Brasil, e nos ajudavam sem pestanejar.
- Eu não consigo acreditar que o Guilherme foi preso. - Thomás comentou, entregando um folheto.
- Eu consigo. - Respondi, também entregando o meu folheto. - O Brasil é um país preconceituoso. Por que um negro não pode morar em um bairro de classe alta?
Os alunos pegavam os papéis com curiosidade e poucos se negavam - como Matheus e Lucas haviam feito, por exemplo -, até que o único que eu achei que não viria apareceu. Guilherme saiu do carro e andou cabisbaixo, quase passando reto por nós.
Quando seus olhos encontraram-nos, pude ver ali a vergonha que estava sentindo. Sem pensar duas vezes, corri para seus braços e o apertei contra mim sentindo as lágrimas escorrendo por meu rosto enquanto eu caía no choro. Sem demora, nossos amigos vieram nos abraçar formando um abraço coletivo.
Me afastei o mínimo para olhá-lo e vi que também chorava. Limpei suas lágrimas com os polegares e lhe dei meu melhor sorriso naquele momento, tentando deixá-lo melhor, mas sabendo que seria uma tarefa difícil.
- Eu sinto muito por vivermos em uma sociedade de merda. - Disse com a voz embargada.
- Então vocês souberam. - Ele disse, olhando para cada um de nós.
- Sim e resolvemos fazer esses folhetos. - Entreguei um em sua mão e o vi se afastar para poder ler.
Ao invés de fazer uma expressão agradecida, ele apenas fechou o rosto ainda mais, mostrando-se irritado.
- Eu não queria que vocês tivessem chamado tanta atenção para mim desse modo. Agora todos vão saber da minha condição.
Guilherme era um garoto reservado e eu entendia o seu ponto, mas aquilo tinha que parar, não era justo com ele e tantos outros jovens negros.
- Gui, ninguém vai saber que é você, nós não colocamos seu nome. - Carol interviu, chamando a atenção do amigo. - Mas nós queríamos levar isso para a imprensa, para que isso pare de acontecer conosco.
- Não, Carol. Isso vai chamar uma atenção desnecessária pra cima de mim. Meus pais já estão tomando as devidas providências.
- Para de ter medo, Guilherme. Vá à luta! - Disse, fazendo seus olhos encontrarem os meus por um momento.
Ele ficou em silêncio, sabendo que eu havia dito a palavra mágica: medo. Ele estava com medo. Medo de chamar a atenção e não dar em nada. Medo de ser perseguido. Medo. Ele estava programado para temer uma autoridade e não respeitá-la.
- Gui? - A voz feminina nos chamou a atenção e ele se virou para Tati.
Sem que dissessem uma só palavras, os dois se abraçaram e trocaram um beijo digno de cinema. Meus amigos não contiveram os assovios e, apesar do recente momento tenso, todos riram.
Thomás não se intimidou e veio ao meu encontro, me abraçando por trás e beijando meu rosto enquanto víamos os dois trocarem confidências.
- Você é uma garota incrível. - Meu namorado sussurrou ao pé do meu ouvido.
- Eu sei. - Disse, deitando a cabeça em seu ombro e beijando seus lábios.
- Vamos, crianças! - O segurança do colégio pediu, anunciando que fecharia o portão e nós ficaríamos para fora.
Mais do que depressa, nós entramos prontos para mais um dia de escola.
Decidimos respeitar a vontade de Guilherme e não voltamos a tocar no assunto sobre fazer justiça ao que tinha acontecido com ele. Entendíamos o seu lado, por mais triste que isso fosse.
Não achávamos que apenas alguns folhetos fossem causar algum problema, mas Carla apareceu em nossa sala no dia seguinte com um dos papéis em mãos.
- Isso aqui foi achado nas dependências do colégio. - Ela começou, depois de ser respondida com um "bom dia" coletivo nada animado. - E, por mais que incentivemos a união dos alunos em prol de uma causa, não queremos que isso acabe ofendendo alguém. Por isso peço para que as manifestações sejam feitas em um lugar que não seja o colégio. Nós fomos informados sobre o que se trata isso e não queremos que cause mais constrangimentos ao aluno. Fui clara?
Senti algo engasgado dentro do meu peito enquanto ela fazia aquele discurso. Não podia deixar aquilo passar, não era certo o que ela estava fazendo. Por isso me levantei, atraindo seu olhar em meio ao assentir dos outros alunos.
- Pois não, Julia?
- Não, Carla. Você não foi clara.
- Julia, senta. Pelo amor de Deus. - Carol sussurrou.
- Qual foi a dúvida, senhorita Silva? - Insistiu.
- Essa manifestação não foi feita dentro do colégio. Os folhetos foram distribuídos fora do colégio. - Disse, apontando para a porta da sala. - E se essa manifestação anti-racismo ofende alguém, então o problema está na pessoa. Racismo é algo muito grave, dona Carla, e devia ser um assunto tratado com importância e naturalidade nos dias de hoje. Principalmente com os jovens.
Algumas palmas e assovios vieram com o meu discurso, parecendo deixar a coordenadora enfurecida.
- Senhorita Silva, pegue suas coisas e vá para a minha sala. - Carla disse, silenciando o barulho que havia criado em sala.
Sem questionar, peguei meus materiais e saí da sala, ouvindo-a questionar se alguém tinha mais alguma dúvida. O silêncio sepulcral fez meu coração se partir.
Não demorou para que a mulher estivesse em sua sala, sentando-se em sua própria cadeira enquanto mexia no computador de mesa. Não dirigiu o olhar ou a palavra à mim e eu não me atrevi também, sabendo que poderia acabar piorando as coisas.
- Vou te dar uma suspensão. - Foi o que ela disse enquanto a impressora cuspia o papel recém feito.
- O quê? Por quê?
Droga, meus pais iam em matar e eu não poderia ir à virada cultural. Tudo isso porque eu queria ajudar um amigo.
- Você tirou a minha autoridade em sala de aula, Julia. - Foi o que disse, estendendo o papel na minha direção.
- Eu te questionei, dona Clara. Vocês querem que sejamos robôs ou seres pensantes? - A mulher parou por um momento, pensativa. - Eu estou errada? Me responda isso.
- Não, Julia.
Carla suspirou e se voltou para o computador, passando a digitar até que outro papel saísse da impressora e ela me entregasse.
- Apenas uma advertência, mas tenha mais cuidado com o seu tom.
- Até parece que o seu tom foi o problema. - Carol debochou enquanto olhava o papel em sua mão, já na hora da saída. - Essa escola quer fingir que racismo não existe, porque a maioria dos seus alunos são brancos privilegiados.
- Me desculpe por isso. - Gui pediu, um braço envolvendo os ombros de Tati ao seu lado.
Eles finalmente estavam se assumindo? Já tinha passado da hora.
- Fica tranquilo, Gui. Eu não me arrependo. - Garanti.
- E, por favor, esqueçam isso. Eu já dei dor de cabeça demais à vocês. Vamos pensar sobre o nosso fim de semana. - Gui disse, querendo mudar o assunto.
- Eu nem sei se vou conseguir ir na virada cultural depois do que aconteceu. - Fiz uma careta, sentindo Thomás me abraçar mais para si.
- Acha que nossos pais vão se chatear por estar ajudando um amigo? - Davi perguntou, apoiando o queixo no ombro de Lola.
- Eu não sei. Ao mesmo tempo em que eles presam muito o respeito aos professores e coordenadores, eles também criaram os filhos para serem indivíduos íntegros e de caráter. - Dei de ombros. - Não consigo ter certeza sobre nada.
- Ainda mais quando ela falou sobre seu tom. - Carol suspirou, me devolvendo o papel. - É a sua palavra contra a dela.
- Exatamente. - Umedeci os lábios, vendo o carro do meu pai parar em frente à escola. - Tenho que ir. Nos falamos mais tarde.
Me despedi com um aceno para meus amigos e selei meus lábios ao de Thomás brevemente, saindo dali para dar uma notícia não tão boa para os meus pais.
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