4. Áries
O dia seguinte na escola foi quieto para mim.
Não apenas pelo fato de estar me sentindo estranha nos últimos dois dias. Não sentia vontade de me redimir com os meus amigos ou reconhecer os meus erros. Eu não estava errada, não precisava reconhecer nada. Por isso passei boa parte do meu tempo calada enquanto ouvia o que eles tinham para me dizer.
Quando paramos na porta do colégio para nos despedir, no entanto, foi que eu senti uma grande vontade de desabafar sobre o que estava acontecendo comigo. Algo que continuava sem entender. Algo que seria melhor se compartilhado. Mas e se eles achassem que eu estava louca?
Tomada pela impulsividade, interrompi a conversa deles:
- Tem algo acontecendo comigo.
Todos ficaram em silêncio e olharam para mim, curiosos.
- Nós percebemos, amiga. - Carol se pronunciou e virou na minha direção. - Achamos que você estava tentando roubar meu posto de mal humorada.
Não ri da sua provocação, apenas engoli a seco e contive a vontade de revirar os olhos.
- É sério. Será que nós podemos ir pra sua casa? - Olhei para Gui.
A casa de Guilherme era sempre vazia. Sua mãe sempre viajava a trabalho e seu pai estava muito ocupado cuidando da direção de uma empresa multinacional. Ele não tinha nenhum irmão e uma mulher simpática vinha limpar sua casa toda manhã, mas a tarde ela já partia para outra tarefa, às vezes deixava um agrado para Gui quando ele pedia por algum almoço - como mencionei, era uma mulher adorável. Seu quarto também era enorme e poderia nos abrigar melhor do que qualquer apartamento que eu e as meninas morávamos. O meu maior problema eram meus irmãos, principalmente Tuti que era de uma inconveniência extrema.
- Claro. - Ele respondeu, hesitante pelo que eu tinha para falar.
Depois de deixar minha mãe devidamente avisada - por mais que ela não estivesse merecendo satisfações - fomos até o ponto de ônibus mais próximo. Mesmo com tanto dinheiro, Guilherme sempre foi um pouco mais reservado. Os pais queriam lhe dar liberdade, mas sempre lhe ensinaram que se ele usasse o dinheiro para esbanjar, consequências aconteceriam. Gui não queria amigos pelo dinheiro que ele tinha e muito menos queriam atrair atenção para possíveis assaltantes. Andava como um menino normal dentro da condução de São Paulo, porque era mesmo um garoto normal.
Mas sabíamos que assim que fizesse dezoito anos ganharia um carro e o bilhete único seria picado em um milhão de pedaços.
Chegamos em sua casa e fomos direto para a cozinha fazer um lanche, cada um se ocupando de pegar o seu patê preferido e ajeitando o lanche como queria. O meu prato ou hambúrguer ou o que quer que eu estivesse comendo costumava ser o mais organizado, mas agora parecia que ele havia sido organizado por um brutamontes.
Deixei o lanche no prato, dando um suspiro, fechando os olhos para colocar as ideias na cabeça.
- Ju? Vai querer refrigerante? - Gui me tirou dos meus devaneios e eu saí do mundo da lua por um segundo, percebendo que não ouvia uma palavra sequer que saía da boca dos meus amigos momentos antes.
- Por favor. - Estendi meu copo para ele, dando um sorriso sem dentes.
- E então? Vai nos dizer o que aconteceu? - Carol perguntou, a boca esvaziada a pouco agora voltava a morder mais um pedaço de seu lanche.
- Tudo bem, antes de começar, eu quero pedir que vocês estejam dispostos a ouvir a maior loucura que vocês jamais pensaram que sairia da minha boca. - Pressionei os lábios e olhei para cada um, vendo-os assentir. Provavelmente sentiram a seriedade na minha voz e decidiram que não era o momento para fazer alguma brincadeira. Depois que o silêncio se alongou eu contei o que havia acontecido comigo duas noites antes: desde a minha pesquisa astrológica, até minha ida inocente até a cozinha e então as constelações, o desmaio e os dias confusos. Como eu estava mudada em tantos sentidos, como eu queria até mesmo mudar a minha carreira. - E é isso. E então? Vocês acham que eu sou louca?
Todos estavam intrigados demais para comer, prestando atenção em cada palavra que eu proferia.
- Você tomou ácido? - Foi o primeiro comentário da Carolina.
- Mas que caralho, Carolina! - Dei um tapa na mesa, atitude essa que a sobressaltou. - Você não consegue levar nada a sério? Parece que eu tomei ácido? - Aproximei meus olhos arregalados do seu próprio rosto, a garota afastou o corpo com medo de que eu a atacasse do outro lado da mesa. - Eu estou falando! Não sei o que aconteceu! - Respirei fundo e fechei os olhos, voltando ao meu lugar quando os abri. - Eu queria a ajuda de vocês, mas eu tenho uma teoria. Vai parecer loucura e eu estou mesmo acreditando que estou louca, então evite falar esse tipo de coisa se não quiser ver sua amiga internada em um hospício, Carolina Araújo.
- E qual é a sua teoria, Ju? - Foi Guilherme quem perguntou.
- Naquele mesmo dia, algumas horas antes, eu disse que não acreditava em signos três vezes. - Olhei para Lola dessa vez, que tinha os olhos arregalados agora. - Lembra o que você falou para mim?
- Três vezes dá azar... - Minha amiga soprou e eu assenti. - Acha que o Universo te colocou uma maldição?
- Como o quê? - Carol franziu o cenho.
- Eu não sei. - Balancei a cabeça em negação.
- Como se ela fosse destinada a vivenciar na pele cada signo do zodíaco para finalmente acreditar que eles realmente influenciam na vida de um indivíduo. - Guilherme tinha os olhos cerrados na minha direção, me analisando como se eu fosse objeto de grande interesse.
- Mas por quanto tempo? Uma semana? Um mês? Um ano? - Lola o-lhou para Guilherme, voltando a roer as unhas.
- Um ano? - Arregalei os olhos. - Vou aguentar onze anos dessa palhaçada até voltar para Virgem?
- Isso significa que você está no signo de Áries? - Carol perguntou, franzia o cenho enquanto olhava para a tela do seu celular.
Dei de ombros.
- Me diga você: essa é a sua personalidade, Carolina? - Ergui uma sobrancelha, recostando na cadeira.
A garota colocou os olhos em mim, deitando a cabeça levemente para o lado.
- Talvez seja. Mas acredito que todo o seu mapa astral neste momento esteja em Áries, porque você tá na própria definição desse signo. Pelo menos eu não sou ignorante o tempo todo como você tá sendo. - Foi a vez da garota erguer as sobrancelhas, como em um desafio.
- Tudo bem, garotas. Já chega. - Guilherme passou a amenizar a situação, impedindo que eu desse uma resposta malcriada na impulsividade.
- Sabe o que você devia fazer? Ficar com cada signo do seu oposto complementar no momento. - Lola sugeriu, parecendo animada com a minha própria desgraça.
- Eu não vou fazer isso, Heloísa. - A garota murchou na hora e eu prossegui. - Não acho que essa seja a experiência mais emocionante da minha vida. Mas vou deixar levar. O que mais eu posso fazer?
- O preço a se pagar por irritar o Universo. - Carolina provocou pela milésima vez, parecendo se divertir.
- Será que podemos comer agora? - Lola nos olhou e só então percebemos o quanto estávamos com fome naquele momento.
Falar dava fome.
Fazer teorias da conspiração dava mais ainda.
- Eu realmente acho que nós deveríamos vender brigadeiros. - Carol comentou no dia seguinte, enquanto estávamos nos intervalos de aulas.
- Nós quem? Você sabe que eu quero ser engenheiro. - Guilherme comentou enquanto digitava freneticamente no celular.
- Eu acho uma ótima ideia. Poderia fazer o design da empresa, toda a identidade visual. - Lola estava abraçada nas pernas, pequena demais para aquela carteira tão grande.
- Muito obrigada, Lola. Você é uma ótima amiga. - Lancei um olhar furioso para o meu melhor amigo. - Obrigada por nada, Guilherme.
- Ah, pronto! Agora vou ter que aguentar duas arianas. - O garoto se levantou, saindo da sala sem mais nem menos.
Eu e as meninas nos entreolhamos sem entender nada e voltamos à nossa conversa inicial.
- E você faria o que, Carolina?
- Cozinharia com você. - Deu de ombros.
- E desde quando você cozinha, garota? - Ergui uma sobrancelha.
Carolina era conhecida por não ser boa na cozinha. Sempre que íamos almoçar na casa dela, sua mãe deixava algo para nós esquentarmos, porque da última vez que ela se prestou a fazer um macarrão instantâneo deixou ele queimar. A alegação dela foi de que estava entretida demais na conversa com Lucas.
- Tudo bem, eu coloco em recipientes. - Revirou os olhos.
Guilherme voltou apenas quando o professor fazia a chamada e a tempo de responder a sua presença. Seus cachos afro estavam bagunçados e os lábios avermelhados.
- Foi beijar quem? - Sussurrei para ele.
O garoto apenas fez um sinal de que falaria depois, mesmo sabendo que o depois nunca chegaria. Uma das características do meu amigo era a discrição e ele não gostava muito de falar sobre as garotas com quem se relacionava. Ou garotos, nunca se sabe e não me interessava, isso não mudaria nada na nossa relação.
Durante as aulas eu via Carolina trocando olhares com Lucas. Não entendia muito bem a relação deles e jamais desejei que minha amiga se machucasse, mas sabia que ele a usava quando e como queria. Já pedi pra minha amiga tomar cuidado, mas a resposta era sempre algo como "já sei", "para com isso, Julia" e outras mais.
Quando o sinal final tocou nós saímos calmamente, deixando que alguns alunos mais apressados passassem na frente, mas eu não perdi o olhar e nem a piscadela de Lucas para Carolina.
Antes que ela corresse ao seu encontro, puxei-a pelo ombro.
- O que foi aquilo, Carolina Araújo?
A garota se virou para mim com um sorriso tímido brincando nos lábios.
- Ele me convidou para ir na casa dele hoje a tarde.
- E você vai? - Ergui uma sobrancelha, olhando para ela enquanto andávamos para a saída.
- Claro que vou, Julia. Não posso perder a oportunidade de conquistá-lo.
- Você é muito burra, Carolina. - Balancei a cabeça em negação, virando para contemplar a rua abarrotada de carros que iam e vinham buscando os alunos que saíam naquele horário.
Meu irmão não demorou a se aproximar e fez isso quando Carolina explodiu comigo.
- Você não tem ideia do que é amar uma pessoa, Julia. Você é uma criatura sem coração que despeja qualquer indivíduo que você intitula como "inútil" para os seus planos. Às vezes esse indivíduo só quer que você o ame de volta. Sabia?
- E você tá falando isso porq...
- Porque você é igualzinha à ele! - Àquela altura alguns alunos olhavam na nossa direção e eu encarava alguns de volta para que percebessem que eu estava incomodada. Quase soltei alguma grosseria, mas Carolina continuou. - Você nem sequer está prestando atenção no que eu falo. Me deixa lidar com isso do meu jeito, OK? Eu sei o que eu faço da minha vida e ela é MINHA vida.
- Vai se foder, Carolina!
- Vou mesmo!
Duas buzinadas curtas soaram da rua e pudemos ver Lucas no carro que o pai havia lhe dado, o vidro abaixado enquanto esperava por Carolina. Sem se despedir, ela correu para o carro dele e pude ver que Lucas lhe deixou um beijo no rosto. Com metade do corpo para fora do carro e um dedo do meio apontado na nossa direção, ela sumiu na esquina seguinte.
- Deixa, Ju. Você sabe que é sempre assim. - Lola comentou, se aproximando timidamente enquanto abraçava seus livros que não cabiam na mochila.
- Ela fica com o Lucas, ele dispensa ela, nós a consolamos e ela faz de novo. - Guilherme assentiu enquanto citava cada fase do ciclo de Carolina.
- Mas isso é certo? Não! Nós estamos tentando protegê-la e ainda recebemos uma grosseria dessas. - Pude ver o carro da minha mãe se aproximando e voltei meu olhar para meus amigos. - Querem passar a tarde lá em casa?
A troca de olhares entre meu irmão e Lola foi descarada, quase como se eles se conversassem pelo olhar. Guilherme pareceu desconcertado, passando a mão pela nuca e dando um meio sorriso amarelo.
- Eu tenho que fazer umas coisas hoje a tarde. - Comentou distraidamente.
- Tudo bem, Gui. - Pisquei para ele. - Sei bem que tipo de coisa é essa.
- Julia! - Davi arregalou os olhos para mim, notando a minha indiscrição e eu apenas dei de ombros. - Você enlouqueceu de vez.
Minha mãe deu duas buzinadas pela nossa demora e eu olhei para Lola que deu de ombros e assentiu, digitando agora no celular - provavelmente para avisar os pais sobre onde passaria a tarde. Nos despedimos brevemente de Guilherme e entramos no carro.
- Nós já estávamos vindo, mãe. - Reclamei, batendo a porta do carro assim que entrei.
- Boa tarde, Heloísa. Como estão seus pais? - Minha mãe me ignorou, olhando minha amiga pelo retrovisor.
- Estão bem, tia. Sentindo falta da minha irmã, mas logo se acostumam. - Deu de ombros, tímida.
A irmã de Lola havia ido estudar no Japão e não tinha intenções de voltar para o Brasil tão cedo. Víamos nas redes sociais o quanto era um país fabuloso.
Minha mãe continuou com o típico questionário dela, perguntando amenidades para a minha amiga que era sempre muito simpática com a minha família. Vez ou outra eu via pelo retrovisor ela e meu irmão trocando alguns olhares. Cerrei os olhos, desconfiada demais daquela situação.
Antes que pudesse fazer qualquer comentário, minha mãe estacionou em frente ao prédio onde morávamos. Assim que entramos no apartamento, pude ouvir a música que reverberava pelas paredes do quarto dos meus irmãos.
- Abaixa essa merda, Arthur! - Berrei. - O que quer comer, amiga?
- Vamos fazer um macarrão? - Sugeriu.
- Posso ajudar? - Davi perguntou e a garota assentiu.
Assim que estávamos todos na cozinha, ocupados com suas próprias funções, soltei sem pensar:
- O que vocês dois tem? Estão namorando? Ficando? Transando casualmente? - Cruzei os braços enquanto me recostava na bancada ao lado deles.
Ambos estavam cabisbaixos, um ao lado do outro, cuidando da sua própria panela.
- Vão me responder? Ou eu vou ser obrigada a pegar seus celulares? - Assim que finalizei a última palavra da pergunta, arranquei o celular de Davi do seu bolso traseiro, passando a correr para longe dali.
- Julia! Não! Volta aqui, garota!
Meu irmão correu atrás de mim, mas tive tempo suficiente para me trancar dentro do banheiro. Sabia a senha do meu irmão e aquilo era uma desvantagem para ele naquele momento. Ele confiava em mim, mas eu não era a Julia certinha e virginiana, eu era a Julia impulsiva e grosseira.
Ignorei as batidas e protestos na porta, e abri a conversa de Heloísa em seu celular. O nome Lola vinha acompanhado de um coração. A maior parte do tempo eles faziam declarações amorosas um ao outro e parecia que aquela reação durava desde o segundo semestre do ano passado. Como eles não haviam me contado? Parei quando haviam coisas mais picantes escritas e aquele momento foi o suficiente para saber que eles estavam juntos e fazendo muito mais do que beijar.
Saí do banheiro e entreguei o celular na mão de Davi, passando por ele como um furacão. A música alta de Arthur não me incomodava mais e eu fui para o meu próprio quarto, me trancando ali sem me importar com Lola.
Ela não havia se importado comigo até aquele momento, por que eu devia fazê-lo?
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