[Parte 1 - Observadores de Borboletas] - Recomeço
A noite estava como Janice amava mais que tudo no mundo: silenciosa, fria, o ar puro, com um leve cheiro de mato e pinho... Cheiro de liberdade.
Liberdade conquistada à duras penas.
Um vento suave dedilhava ocasionalmente as folhas das árvores no alto das copas. Ela olhou para cima e não viu uma única nuvem. O céu estrelado abraçava a floresta como um cobertor cintilante... Quando chegou àquela região, tinham lhe dito que o inverno nas montanhas costumava ser gelado, mas que proporcionava as noites mais lindas do ano. Bem, disseram-lhe a verdade. Era tão bom estar entre pessoas que diziam a verdade... Incapazes de sorrir e planejar a sua morte pelas costas...
Encolhendo-se dentro de seu suéter de lã, novo em folha, Janice pensou na sorte que teve em escapar sem deixar rastros. Até onde foi possível, ela realizou uma maratona, percorrendo de ônibus diferentes estados, com direito a diferentes disfarces, a fim de passar despercebida pelas eventuais câmeras de segurança. Sua fuga do Rio de Janeiro pode ser considerada cinematográfica. Contou com algumas vantagens táticas que ela soube explorar. A primeira, é que no documento de identidade anterior, seu nome constava com um grave erro de digitação; de modo que, ao mandar refazê-lo, ela ficou com duas cópias, pois não lhe foi cobrado a devolução do documento antigo. Um deslize por parte do funcionário do órgão emissor, mas um deslize muito bem-vindo. Ela tampouco jogou o documento inválido fora... Sabe, lá, Deus por quê! Uma dessas casualidades que favorecem os desesperados.
A segunda vantagem tática: no Rio de Janeiro, ela sempre foi tratada pelo apelido... Algo que, agora, fazia questão de evitar. Ninguém mais a chama de Jan. Seu nome é Janice, e nenhum diminutivo será admitido em seu lugar (não por capricho, mas por uma questão de sobrevivência). A Jan do Rio ficou para trás.
Resumindo: uma Janaína errada, da identidade anterior, tornou-se a Janice certa. E o apelido Jan poderia ser de qualquer outra: Janete, Janine, Jane, Januária, Jana...
Tais casualidades, se é que podem ser chamadas assim, devem ter sido postas em seu caminho por Deus, já que a polícia falhou vergonhosamente. Um boletim de ocorrência foi feito, com pouquíssimo entusiasmo... Outros tantos registros se seguiram sem nenhuma resposta efetiva... E disseram-lhe que o seu caso só se encaixaria no Programa de Proteção à Testemunha se algo de concreto acontecesse... tipo, tentarem matá-la! Ela começou a imaginar que teria de ser esfaqueada ao vivo, ou numa gravação em vídeo que ventilasse na mídia. E mesmo assim, provavelmente, teria literal e figurativamente morrido na praia.
O fato de ter descoberto que ela procurou a polícia, dizia muito sobre o poder de quem a perseguia.
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Janice foi vítima do clássico: "lugar errado na hora errada". Ela testemunhou um encontro entre Caetano, o dono de morro, e um cara importante, que ela depois identificou como sendo um famoso deputado estadual do Rio. Os dois estavam desviando parte do carregamento de drogas e dos lucros das bocas que deveriam ser entregues ao chefe da facção criminosa, o qual cumpria pena no complexo de Bangu I.
Laércio, o gentil, era o chefão de todas as operações e o protetor de Caetano. Mas este não se contentava com o que tinha, dentro da hierarquia.
Ele e o tal deputado pretendiam ampliar a rede, exportar a droga para outros lugares e, assim, agir de forma independente da cúpula. O dono do morro era ambicioso a ponto de almejar para si o controle da facção.
Janice era bem menos ambiciosa do que ele. Bem menos... (Almejava uma profissão de risco no Brasil de hoje.) Queria ser professora e ensinar à garotada as maravilhas da ciência; o estudo dos organismos; e da evolução da vida na Terra. Para tanto, fez o vestibular da UFRJ e passou... Daí, precisou se mudar de Areal, no interior, para a capital.
Não deixou nada nem ninguém para trás. Havia se passado um ano da morte dos pais, em um terrível acidente de carro. Eles eram sua única família. Ela sabia que precisava seguir em frente... mas entre os poucos pertences, nao poderia deixar de levar o álbum de fotografias e as duas cachorrinhas, Kuka e Mila, que pertenciam à mãe.
No Rio, Janice logo percebeu o quanto tudo era caro e difícil. Não teria só de trabalhar como também guardar cada centavo. Conseguiu alugar um quarto e sala tipo barraco, na base do morro do Timbau, uma das dezessete comunidades da Favela da Maré - pertinho da faculdade. Assim, ela iria a pé à aula e ao trabalho e nao gastaria com transporte. Pelo menos, era o que ela esperava.
O primeiro grande problema que teve de enfrentar, após a mudança, não foi o custo de vida. E, sim, a atenção indesejável do dono do morro.
Caetano quis Janice no instante em que pôs os olhos nela. Achou-a do tipo bonitinha e inocente. Então, era uma questão de aceitar as atenções do traficante conquistador, ou... Bem, já tinham dito à garota o que acontecia com as "vadias" (como ele as chamava), que se rebelavam, ou que lhe diziam não. Ele não aceitaria um não, sem dar o troco... As mulheres mais destemidas desapareceram de maneira misteriosa. Concretadas, incendiadas dentro de pneus, ou apenas estupradas e depois mortas com um tiro na cabeça... Deixadas na mata para os bichos comerem, ou numa cova rasa para dificultar o trabalho da polícia. Outras levaram uma surra que serviu como exemplo para as demais.
Depois que se cansava delas, ele as passava para serem usadas pelos seus "soldados".
Janice procurou a polícia para pedir ajuda contra o stalker, sem perceber o quanto estava sendo ingênua. Quando Caetano ficou sabendo, mandou trazê-la até a laje, como alguns chamavam o ponto mais alto do morro (local em que o alto escalão permanecia de tocaia, vigiando as bocas, com seus fuzis prontos para atirar na polícia). Foi uma noite de terror para a jovem estudante de biologia. Janice foi ameaçada e espancada.
Quando amanheceu e ela foi enviada de volta ao seu quarto e sala, percebeu que teve sorte de sair com vida.
Foi socorrida por Selma, sua única amiga. Uma senhora que vivia no barraco à direita do dela, e cujo filho trabalhava honestamente numa padaria, em Bonsucesso. Ela cuidou de Janice e lhe contou que traições como a dela eram pagas com a morte. Passado o desespero, Janice começou a se perguntar como Caetano soube que ela estivera na polícia. Selma, então, explicou à garota do interior sobre os fatos da vida numa favela do Rio de Janeiro. Janice finalmente compreendeu que Caetano tinha olhos e ouvidos em todos os lugares. E que ela estava metida em uma grande enrascada.
Para começar, estava sendo vigiada quase vinte e quatro horas por dia, pelo vizinho mal encarado que vivia no barracão a sua esquerda. Ele era conhecido como Xande Corte de Navalha, responsável pela "endolação" da droga antes que as mulas e os vapores levassem o produto para o destino final - os usuários. Xande tinha uma filha pequena que vivia com a mãe. Eventualmente, a garota visitava o pai. Trazia sua cachorrinha shitzu chamada Jujuba e deixava na casa dele por um tempo. Quando a menina partia, ninguém dava bola para a cachorrinha, que ficava abandonada num cubículo sem água nem comida, exceto o que Janice lhe dava por cima do muro.
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Aos poucos, Janice entendeu que a convivência com os traficantes era uma situação insustentável, mas obrigatória, se ela quisesse viver. Janice sabia que precisava escapar, mas não sabia como. Assumiu, então, a perfeita imagem da submissa que Caetano esperava, tratando de observar tudo o quanto podia, tudo que fosse útil para uma fuga. A começar pelas atividades dos matutos, que abasteciam as favelas com armas. Eles iam até as fronteiras e traziam o contrabando de volta ao morro. E a forma como se moviam, sem serem apanhados pela polícia, era o que realmente lhe interessava aprender. Ou seja, passar despercebida.
A situação da moça era a seguinte:
Estava concluindo a licenciatura do curso de graduação em Biologia, com foco em Genética e nas horas vagas, bancando a vadia pessoal de Caetano. Ao invés disso acabar com sua dignidade e autoestima, deu-lhe forças para lutar pela liberdade. Precisava do título se quisesse dar aulas. Assim que pegasse o diploma, venderia os poucos pertences e sacaria o dinheirinho da poupança que herdou dos pais falecidos, mas que nunca mexeu. Caetano não sabia do dinheiro. Só iria descobrir se mandasse investigá-la. E só iria investigá-la se ela fugisse. Daí, a necessidade de sacar tudo perto da fuga e lidar com dinheiro vivo.
A formatura aconteceu no final do ano. Ela já tinha oficialmente o diploma, portanto, não viu necessidade de participar da cerimônia. Sacou seu dinheiro, escondeu no forro da jaqueta, preparou uma mala pequena e duas mochilas... Tudo isso com calma. Aos poucos. Ao longo da semana... Afinal, tinha que driblar os olheiros, fogueteiros, radinhos e soldados do morro. Todos eles ficavam de butuca, e se vissem qualquer movimentação suspeita, relatavam ao dono do morro.
E naturalmente... Por mais gentis que fossem os moradores que cruzavam o seu caminho, eles também viviam sob a mesma lei. Janice não tinha como confiar plenamente em alguém, pois não podia adivinhar quem era e quem não era leal ao tráfico. Havia sempre aqueles que trabalhavam na hierarquia, de uma forma ou de outra. Fieis, mulas, portadores, tias ou vapores... Essas pessoas não conheciam outra vida. Ou porque gostavam, e se sentiam parte de algo, ou porque não tinham escolha mesmo. Até onde Janice sabia, a favela estava cheia de gente boa, mas que se calava para sobreviver.
A crise econômica brasileira, desencadeada pela ladroagem da cúpula política tornava quase impossível para os cidadãos de bem levarem a vida com plena dignidade humana. A política estava misturada em tudo, inclusive, no funcionamento das empresas. Por outro lado, definir quem era bandido e quem era mocinho estava muito difícil em uma sociedade com total inversão de valores e uma educação deteriorada às raias do barbarismo.
Os traficantes estavam em toda parte. Tornaram-se referências sociais, lideranças que decidiam sobre a vida de muita gente. Faziam as leis nas comunidades e, também, ajudavam os seus... Embora, na maioria dos casos, cobrassem um preço muito caro por sua proteção. A natureza de sua liderança arrancava das pessoas o livre arbítrio tanto quanto qualquer liderança que no Brasil conquistava o poder; e no caso dos traficantes, em particular, arrancava até a vida.
Determinados tipos de liderança - e isso não era privilégio dos traficantes apenas - exigiam a renúncia aos princípios individuais - se quer ajuda, precisa dançar conforme a música. Essa cultura de "conviver e bem viver" só era possível porque se respirava uma ditadura de valores morais - mistura de cleptocracia com mafiocracia. Os bandidos maiores criavam e executavam as leis, bem como controlavam a educação. Portanto, não estavam apenas no morro, mas em toda parte, e os piores estavam na trajetória do rio de verbas públicas. Então, era só uma questão de lógica - e de tempo - que cordeiros e lobos alternem seus papeis.
Os representantes máximos das Leis e da Ordem, por outro lado, viviam num mundo ideal. Um mundo especial e fechado, de faz de conta, feito de clubes e charutos; e alguns deles se beneficiavam do mundo concreto da mesma maneira que os senhores de engenho se beneficiavam do trabalho escravo, em tempos passados. O cerne do escravagismo continuava lá... Soterrado sob toneladas de propagandas "politicamente corretas" e de símbolos ocidentais de liberdade e democracia. Nada mudou, realmente, desde a Descoberta. Apenas as peças no tabuleiro. A pacificação dos morros era uma utopia impossível de se realizar, enquanto bandidos de gravata continuassem dominando todos os setores sociais.
Quem podia mais chorava menos.
À medida que Janice entrava em contato com textos de filosofia e sociologia, refletia mais e mais sobre essas questões. Mas não de uma maneira abstrata... Ela começou a planejar.
Decidiu que precisava ser mais esperta do que os bandidos da hierarquia, e fazer tudo de maneira cuidadosa e detalhada, sem cometer erros, já que não poderia contar com o Estado para socorrê-la. O Estado era campo minado. Era mais fácil ela ser morta e seu corpo jogado no lixão, do que a polícia prender Caetano e ele ser condenado por assassinato, estupro e tráfico.
Para que seu plano desse certo, porém, teria de romper com todos os laços: os conhecidos do trabalho, da faculdade, do próprio morro... A única que sabia era Selma, e as duas tinham combinado uma forma de comunicação muito sofisticada, para quando ela partisse.
Mas, daí, Janice testemunhou o fatídico encontro entre o seu abusador e o deputado estadual. Assim que o político a viu, temeu ser reconhecido. Olhou com desagrado para Caetano e fez o sinal inequívoco de "livre-se dela". O dedo que corta a garganta. Mas o dono de morro ainda achava que podia se divertir um pouco mais com a garota. Além do quê, não gostava que lhe dissessem o que fazer. Mas, diante da inflexibilidade do deputado, ele teve que ceder. O político era um parceiro de negócios que não convinha desafiar. Ainda não... Sendo assim, Caetano chamou Janice num canto para lhe perguntar se ela se tornaria um problema para os seus negócios. Ela jurou que não falaria nada... Mas ele sabia que não podia confiar. Não podia se arriscar.
Quando estava saindo do banheiro, ela flagrou uma conversa entre Caetano e Lipe.
Lipe era o homem de confiança, a quem Caetano recorria para resolver as situações mais delicadas e sigilosas. Afinal, nada do que estava fazendo poderia chegar aos ouvidos de Laércio, o gentil (o chefe da facção).
Selma havia contado a Janice o motivo de o chefão ser chamado assim. Diziam as más línguas que ele tratava muito bem a pessoa que estava prestes a matar... E as mortes proporcionadas por Laércio eram terríveis. Demoradas. Requintadas. Repletas de rituais e sofrimentos. Alguns levavam mais de uma semana para morrer, enquanto ele os torturava. Mas sempre dizendo palavras gentis e sorrindo para suas vítimas...
-Não quero pontas soltas - Janice ouvira Caetano dizer para Lipe. - A garota é dedo duro. Já fez uma vez, vai fazer de novo.
-Claro, chefe! - respondeu Lipe, suavemente. Ele era o principal matador e açougueiro do grupo. Já tinha executado muita gente para Caetano.
- Façam o que quiserem - foi a martelada final sobre a tampa do caixão, como diz o ditado. - Mas, depois, livrem-se do corpo.
-A gente já arrumou até os pneus.
Foi a noite mais aterrorizante na vida de Janice. Lipe e dois soldados a escoltaram até o seu quarto e sala, perto da base do morro. E no trajeto, ela rezou com fervor para que conseguisse chegar lá, viva. Curiosamente, Lipe teve um mal estar súbito. Quando alcançaram as escadarias, já era visível que não estava passando bem. Começou a se escorar nas paredes das casas... Até que um de seus homens perguntou se precisava de ajuda. Um médico talvez. Confuso, Lipe abanou a cabeça negativamente e disse que a tarefa iria ser cumprida noutro dia. (O que ele não fazia ideia, ou não se importava, era que ela sabia exatamente a que se referia a tal tarefa - a sua morte.)
Era óbvio que, tendo sido uma ordem confiada pelo dono do morro, Lipe não permitiria a qualquer outro executá-la. O capanga, então, mandou os soldados levarem-na até sua casa e seguiu o próprio caminho - rumo à privada mais próxima, de onde não saiu até altas horas da madrugada.
A garota conseguiu uma segunda chance.
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