A segunda chance
Assim que chegou ao seu quarto e sala, ela caiu sem forças no sofá e chorou até não poder mais. Não sabia muito bem como agir, agora que o momento chegara. Não podia mais adiar a fuga. Isso era fato. Uma sombra passou pela janela e ela teve um sobressalto, pensando ser um dos soldados vigiando a casa. Mas, daí, ouviu, ou pensou ter ouvido, uma voz masculina que teria dito:
-Você tem que ir agora, ou vai ser tarde demais.
Selma apareceu naquele instante, e Janice esqueceu a sombra e a voz misteriosas. Elas se abraçaram e Janice lhe contou tudo o que aconteceu. Selma acenou para que esperasse e saiu sem dizer nada. Voltou em seguida, trazendo o capacete e as roupas de seu filho mais novo. Tinha pegado as chaves da moto dele também.
-Você tem que ir agora, ou vai ser tarde demais – disse ela, ecoando a voz misteriosa. Com certeza, Janice estava ficando maluca.
A despedida teve de ser rápida, mas não menos emocionante. Janice lembrou-se de Jujuba, e decidiu que não tinha porque ter precaução agora. Ela escalou o muro de trás, como estava acostumada a fazer para lhe dar comida e água. Quando a cachorrinha a viu, abanou o rabo e chorou de felicidade. Ela usou a telha da casa ao lado como apoio e saltou para dentro. Era a primeira vez que ousava ir tão longe, em sua ajuda aos animais. Como sempre, o cubículo não tinha água, comida, nem uma cama decente. Estava sujo com as fezes acumuladas do animal. Ela pegou Jujuba no colo e gelou, ao ver que Xande estava na cozinha, de costas para ela.
A garota escalou o tanque de lavar roupa e impulsionou o corpo para cima do muro. Conseguiu pular de volta para o seu lado, dando de cara com uma Selma aterrorizada.
-Eu não podia ir embora e deixá-la aqui! – justificou Janice. – Olha o estado em que ela está. Suja. Com o pelo embolado. Cheia de pulgas e carrapatos. Não vai durar muito na mão desse desgraçado.
Selma apenas balançou a cabeça, como quem diz "arriscar-se por um bicho".
-Ele lida com o comércio de cães roubados das residências e Petshops – foi tudo o que a senhora disse, querendo dar a entender que ele arrumaria outro animal para substituir Jujuba.
"Mas pelo menos esta, eu salvei!"
-Agora, ande! Já se arriscou demais – incitou-a Selma.
Janice se vestiu com as roupas do filho dela. Pegou a mochila e a pequena mala, depois colocou Kuka, Mila e Jujuba dentro de outra mochila maior, de viagem, na qual coube a caixa de transporte para animais. Amarrou o cabelo no alto da nuca, colocou o capacete e, então, saiu a passos largos em direção ao quintal de Selma.
O estômago se contraiu à medida que seus olhos detectavam a presença dos soldados de Caetano em seus postos de vigilância. Eles portavam ostensivamente suas metralhadoras uzis. Ela podia sentir os olhos deles "cutucando" suas costas, afiados como navalhas, enquanto ela lutava para caminhar de maneira despreocupada...
Alcançou o quintal de Selma, que lhe acenou da porta. A amiga jogou um beijo e disse bem alto:
-Vou ficar com a Jan, filho. Tenha cuidado no trânsito.
Selma sabia que o filho estava no baile funk e que iria dormir na casa da namorada, fora do morro. Quando ele voltasse, viria direto do serviço e já estaria de novo com a moto.
Ela corria um risco enorme por acobertar a fuga da garota de Caetano. Mas se conseguisse convencer o pessoal de que não sabia de nada, ficaria bem. Bastava telefonar ao filho, ou mandar uma mensagem para ele corroborar sua estória junto aos vigias do morro.
Enquanto Selma pensava em seus próximos passos, Janice olhava horrorizada para a motocicleta. Sentia-se gelada de pavor. Nunca dirigiu uma moto na vida. Tentou se lembrar das instruções de um namorado seu, dos tempos da adolescência. Ele tentou lhe ensinar, mas ela levou na farra. As lições passaram confusas pela sua mente.
De repente, foi como se a mente clareasse. Como se tudo fizesse sentido. O medo foi embora e ela simplesmente montou na motocicleta, girou a chave na ignição e a manobrou para a descida estreita do morro. Ela mal sabia como dirigir, e de repente conseguiu conduzir sem provocar nenhum acidente.
Desceu a base do morro devagar... A mala com as alças passadas em torno dos ombros, onde estavam amontoadas as cachorrinhas chorosas. A mochila igualmente, presa ao abdome. E a outra, dentro do bagageiro. Ela pilotou com cuidado para fora da comunidade, rezando para que os homens não a alvejassem. Procurou lembrar-se de que eles não sabiam que era ela, a fim de se tranquilizar.
Faltava pouco. Muito pouco.
Janice deixou a moto nos fundos da padaria onde o filho de Selma trabalha e seguiu a pé o resto do caminho até a estação do metrô. Nem sabia como conseguiu chegar à Rodoviária Novo Rio, carregando sua bagagem. Seus pés andavam, seus pulmões respiravam... Ela simplesmente agia como um autômato. Pegou o primeiro ônibus que saía de lá para São Paulo, pouco depois da meia-noite.
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Amanheceu e o ônibus estava manobrando para estacionar na rodoviária da capital paulista. O motor foi desligado e Janice sentiu um frio no estômago quando viu os demais passageiros a sua frente se levantarem.
Ela saiu do veículo com as pernas bambas e caminhou sem rumo, tremendo de frio. Olhou no relógio central e viu que era pouco mais das seis da manhã. Garoava lá fora. As nuvens e o vento frio faziam com que qualquer um duvidasse de que estavam em pleno verão. Janice passou o dia na rodoviária. Vagamente se deu conta que aquele lugar mais parecia um shopping, já todo decorado para o natal. O Tietê era um verdadeiro playground para uma garota do interior, embora ela conhecesse a rodoviária do Rio, e esta não fosse pequena... Mas a de São Paulo, talvez por representar o primeiro momento de liberdade, parecia ser tão... acolhedora. Ela queria viver ali dentro para sempre, apenas observando o vaivém de passageiros, as luzes coloridas dos enfeites de natal, as comidas, as roupas, as bugigangas... Enfim... Foi até a banca de revistas e comprou um romance de bolso para ler. Riu do ridículo de sua atitude e pensou se uma pessoa recém liberta de um presídio, ou cativeiro, agiria de forma diferente.
Ela sentou num dos bancos de espera, diante de centenas de estranhos que não prestavam a menor atenção no que ela fazia, então, começou a ler... Depois de um tempo parou, imaginando o que fazer dali para frente. Definitivamente, era melhor viajar à noite... Poderia dormir dentro do ônibus. Além do mais, à noite, era mais fácil que seus cães passassem despercebidos.
Subitamente, percebeu no quanto se sentia cansada e suja. Era como se todos os acontecimentos do dia anterior estivessem cobrando o seu preço. Ela foi até ao banheiro para verificar se as cachorras estavam bem. Elas conseguiam respirar pelos buracos que ela fez na bolsa. Mas ninguém podia perceber que estava levando três animais clandestinos dentro do ônibus. E se Caetano mandassem alguém rastreá-la... Era mais fácil se lembrarem de uma garota e três cães, do que de uma garota sozinha.
Ela entrou numa das baias para trocar de roupa e cuidar delas... Foi aí que descobriu algo inusitado. Em meio as suas coisas, havia um maço grosso de dinheiro envolto em plástico. E não era o dinheiro da poupança, que estava no forro da jaqueta. Reconheceu a embalagem e, confusa, tentou imaginar como o dinheiro de Caetano foi parar dentro da mochila. Aquele dinheiro era contado e embalado pelo Navalha. Um dinheiro muito bem vigiado.
Ela guardou de volta, arregalou os olhos e sorriu. Tinha dinheiro suficiente para pensar no que fazer da vida... As primeiras ideias que lhe vieram à mente foram malucas e logo descartadas. Por mais que quisesse pegar um avião para fora do país, não possuía passaporte e era arriscado passar pela alfândega. As cadelas não tinham os documentos necessários para transporte. Seriam apreendidas. Era mais seguro o anonimato do ônibus.
Ela foi até o guichê de compras e olhou os itinerários de todas as empresas. Comprou uma passagem para o Espírito Santo. E de lá, para Minas Gerais. Viveu os dois dias que se seguiram, comendo a comida das rodoviárias e dormindo dentro dos ônibus. Dava água e comida aos animais escondido, em banheiros públicos, durante as paradas. Em Minas, comprou outra passagem para Pelotas, no Rio Grande do Sul, mas desceu antes do destino final, bem antes... Em Florianópolis... Onde comprou outra passagem para São Longino do Sul.
A minúscula cidade era ideal para o que ela pretendia, que era sumir do mapa. Situada na parte mais escarpada da Serra Catarinense, não fazia parte da rota turística habitual. Janice pesquisou rapidamente na internet, antes de tomar a decisão final. Quando pensavam em frio, as pessoas procuravam São Joaquim, ou Urubici - com seus hoteizinhos charmosos e pousadas familiares - na esperança de sentirem o gostinho da Europa em terras tupiniquins. As pessoas só pensavam em São Longino, quando os climatologistas anunciavam o ranking das regiões mais frias do país, com elevada incidência de neve. Daí, começavam as competições no frio, como maratonas, provas de ciclismo, atletismo, entre outros.
No entanto, a cidade não via uma nevasca da boa há mais de três anos, para a tristeza do atual prefeito, que acreditava ser a falta de neve a causa do marasmo comercial da região. Efeito estufa, diziam os ambientalistas; efeito Trump, diziam os críticos da política internacional. Janice entendia bem do assunto efeito estufa, pois era um dos temas que ela deveria abordar, enquanto professora formada na matéria de Biologia.
Se lhe perguntassem há dois anos, diria que nunca imaginaria utilizar seu diploma, quando formada, tão longe de casa. Mas, que casa? Ela não tinha uma. Sua única família estava morta. E a vida na capital fluminense não foi boa... Ela pensou que Caetano não tinha como descobrir aonde ela estava, a não ser que Janice aparecesse nos eventos registrados pelas redes sociais. E ela tomaria o maior cuidado para que isso não acontecesse.
Antes de embarcar no ônibus para a Serra Catarinense, Janice deletou seu facebook, instagram, twitter, quebrou o chip e jogou fora o celular com whatsapp. De agora em diante, não tinha mais celular nem conta na internet, enfim, se era para desaparecer do mapa... Ela desapareceria do mapa.
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