A estrela cadente
Noites como aquelas permitiam sentir a transcendência ao toque da mão; sonhar com o impossível; com mundos além deste mundo; e os segredos da criação. Noites como aquelas faziam com que as pessoas se sentissem mestres do universo. E pelos poderes de Grayskull, não precisavam ser tão geniais quanto Einstein, para apreciar a beleza mágica do cosmos.
Diante da magnificência celeste, Janice podia apenas ficar na varanda de sua casa, sem se preocupar com a ditadura do dono do morro e seus "funcionários" vigiando a favela... Tendo por companheiros seus pequenos cães... A natureza ao redor... As corujas, as lebres e esquilos... As árvores altas e frondosas a perder de vista... Tudo o que ela precisava fazer era fechar os olhos e respirar o ar puro da noite para se sentir em paz consigo mesma.
Ainda de olhos fechados, ela ergueu os braços...
Uma brisa repentina agitou-lhe os cabelos. Ela abriu os olhos a tempo de ver a passagem de uma estrela cadente no céu. Ficou maravilhada. Era a primeira vez que via uma. Espreguiçou-se devagar, sem deixar de observá-la... A incandescência formou um arco no céu, muito maior do que Janice imaginava ser o normal para uma estrela cadente... Poderia ser um cometa? Bem, ela não entendia muito dessas classificações. Já teve nas mãos o livro de Carl Sagan, mas não se sentiu estimulada a lê-lo. Era muito volumoso.
Baixou os braços devagar, sem conseguir conter um arrepio. Como se algo fosse mudar irremediavelmente com a passagem do corpo celeste. Era irracional, e ela sabia disso. Então, pensou na tradição, que dizia para fazer um pedido diante do avistamento... Janice sorriu e fechou os olhos pela segunda vez.
Pediu para permanecer segura para sempre.
A estrela fulgurante deixou um rastro longo no céu, antes de desaparecer por completo mais além, na floresta fechada do Parque do Avencal. Não provocou nenhum estrondo, apenas um clarão súbito e ardente que durou uma fração de segundo. E nessa fração, pode ser visto de todos os pontos da cidade e de suas cercanias.
---
Há quilômetros de distância do local em que Janice observava o fenômeno, o terceiro sargento da Aeronáutica, responsável por fazer a ronda na base do DTCEA, teve a mesma visão.
Ronaldo observava os céus do Morro da Igreja, sentado em seu jipe. Antes de avistar a queda do objeto, tudo o que ele pensava era no quanto estava com fome... O cheiro da sopa maravilhosa chegava em ondas, torturando-o à distância, conforme a direção do vento. Só o primeiro sargento Chaves sabia preparar aquela sopa, sem parecer o costumeiro caldo ralo de quartel. Porque ele aprendeu a receita com a mãe italiana. E os italianos não admitiam nada ralo em suas comidas, pelo menos, não os imigrantes que chegaram ao Brasil.
O som de risadas indicava que o pessoal devia estar se reunindo para jantar. Ronaldo teria que requentar a comida depois, se é que sobraria alguma coisa para requentar.
O fato era que o terceiro sargento não poderia largar o seu posto para nada. Nem para mijar. Que turno cruel aquele que o tenente lhe designou! Isso que dá ser o novato da base. Como recém transferido do CINDACTA II de Curitiba, ele ainda não tinha conquistado seu espaço para obter pequenas concessões, tais como fazer a ronda num horário decente. Quando chegou à base, todos na hierarquia já tinham suas tarefas designadas e reguladas pela experiência cotidiana. Até que o tenente o encaixasse nas tarefas diurnas, inclusive, a vistoria do radar meteorológico, restava-lhe a segunda ronda da noite...
A base do Destacamento do Morro da Igreja era responsável pela verificação das rotas de aviões que cruzavam os céus do Sul do Brasil. Os militares da Aeronáutica cuidavam dos radares, da transmissão do sinal de rádio aos pilotos e controladores de voo, e o recebimento/envio de dados ao Controle de Tráfego Aéreo de Curitiba. O seu objetivo mais abrangente era a vigilância dos céus. Contudo, num caráter tanto militar quanto civil, objetivava a defesa e o controle, respectivamente, das atividades em espaço aéreo nacional.
O trabalho era constante e tão rigoroso quanto o clima da região.
Àquele horário, a sensação térmica atingia os 30 graus negativos. O sargento estava usando o traje completo e, mesmo assim, tremelicava de frio. Sua respiração se condensava no ar gelado... Ele imaginou, por um instante, se o pinto iria congelar e cair caso decidisse dar uma "aliviada" por ali perto. De repente, a estrela cadente irrompeu "flamejante" sobre a sua cabeça, mas sem produzir som algum. Assim como veio, foi-se... Desaparecendo na floresta fechada do Parque do Avencal, entre São Longino, Urubici e Vacas Gordas. Então, o objeto provocou um rápido clarão entre as copas das árvores.
Não houve som de impacto. O que era de se estranhar. A terra tremeu um pouco. Mas foi tudo muito rápido. Tão rápido que ele julgou ser um delírio provocado pela hipotermia.
-Ei, o quê... Você viu aquilo? - o segundo sargento Deudério veio correndo de uma das torres. Ele parou ao lado do capô do jipe. Os dois permaneceram em silêncio, observando o clarão se apagar no horizonte, até desaparecer completamente e o céu voltar ao tom de veludo negro.
-Eu trouxe um pouco de sopa... - Deudério disse, em tom ausente.
Ronaldo automaticamente baixou os olhos para as mãos do segundo sargento e viu que ele tinha derrubado parte do conteúdo da panela, melecando as mãos e as mangas da jaqueta. A sopa devia estar pelando de tão quente, mas a temperatura do ar estava gelada e foi o que o salvou de uma séria queimadura. Na verdade, Deudério nem tinha percebido o desastre.
E quem se importa com a sopa agora, Deus do céu?
-Achei que poderia estar com fome -acrescentou Deudério por falta do que dizer. Seu comentário soou tão deslocado em meio ao alvoroço que os dois escutavam pelo rádio do jipe, permanentemente ligado, mas que nenhum deles se deu ao trabalho de atender.
Deudério pegou a panela melecada, abriu a tampa, e começou a beber a sopa direto da panela. Ignorou a colher. Ronaldo não reclamou que a sopa era para ele, pois o evento no céu tinha feito com que perdesse o apetite.
Ambos continuaram olhando fixo na direção da queda.
-Devemos investigar? - perguntou o segundo sargento, em dado momento.
-Acho que temos de ligar para alguém - respondeu o terceiro sargento, sentindo-se confuso. Droga, aquele não era uma boa hora para se esquecer do treinamento.
Mas quando ele podia imaginar que usaria aquele tipo de treinamento? Era como treinar para uma invasão e de repente estarem combatendo tropas hostis. Em ambos os casos, ele não se lembrava do que fazer.
-Acho que existe um protocolo pra isso em algum lugar... - Ele torceu os lábios. - Já sei! Comunicamos o tenente, e deixamos a batata quente com ele.
-O tenente não está na base, você sabe... - O outro balançou a cabeça como quem diz "corta essa". - Além do mais, ele vai dizer que temos que investigar...
Eles ficaram em silêncio, olhando para a floresta como se fosse um monstro prestes a saltar sobre suas cabeças.
-Devemos investigar - Deudério tornou a afirmar, um minuto depois. - Definitivamente - balançou a cabeça para cima e para baixo... Porém, não moveu um músculo sequer, exceto para continuar bebendo a sopa.
Os dois silenciaram. De repente, Deudério virou a cabeça para Ronaldo e perguntou:
- Quanto falta para o seu turno acabar?
---
No alto da colina que antecede o Parque Cascata do Avencal, havia um pitoresco chalé de pedras retirado. O proprietário, Matheus Steimback, acomodou-se em sua cadeira de balanço favorita para apreciar as luzes da cidade, por entre as árvores escuras mais a frente. Aos seus pés, a labradora Ruiva se esticou toda, implorando por um carinho na barriga. Matheus se inclinou e lhe fez a vontade. A cadela soltou um suspiro, olhando para o dono com adoração.
-Você é uma folgada, sabia? - disse ele, em tom afetuoso, enquanto alisava o pelo cor de caramelo do animal.
Lá dentro, o ruído do rádio avisou que alguém estava tentando fazer contato. Radioamadorismo era uma paixão de infância e Matheus transformou-a em parte de sua prática docente, na Escola de Educação Básica Geraldine Becker. Há mais de vinte anos ele lecionava Ciências para as turmas de ensino fundamental, e Física para as de ensino médio. Há cinco, teve a ideia de criar um projeto de radioamadorismo infantojuvenil que contagiou a escola - a ponto de, a cada ano, manter-se com a ajuda de patrocinadores. O equipamento principal para a estação de rádio foi comprado num verdadeiro mutirão. Guiados pelo professor, os alunos montaram dois tipos de antenas com elementos presentes na vida deles, tais como antenas de televisão, ou guarda-chuvas velhos. O mais difícil foi preencher os requisitos para o fornecimento das licenças dos equipamentos. Entretanto, dada a natureza pedagógica do projeto, não foi tão complicado quanto Matheus esperava.
A partir daí, os alunos decidiram fundar um clube, mantido pelos alunos ingressantes a medida que os antigos se formavam. As atividades do clube incluíam aprender os rudimentos do radioamadorismo, fazer a prova de habilitação, e repassar a filosofia do radioamadorismo aos alunos que entram na quinta série. O clube ficou conhecido como os Vigilantes de São Longino, mas eles se chamavam informalmente de SLS Hams. No ano passado, um dos alunos levou o clube a participar de um campeonato internacional de conteste. Ficou entre os finalistas, lado a lado com os Jamboree dos escoteiros. Mas depois que o aluno se formou, os novos estudantes não quiseram se envolver mais nesse tipo de gincana. Era preciso disposição para ficar por longos períodos conectado ouvindo, a fim de bater metas muito elevadas.
Os Hams ficaram famosos por terem ajudado durante as enchentes de outubro, que afetou cidades à leste e ao norte do estado, como Brusque, Blumenau e Porto União. Afinal, fazia parte da filosofia dos radioamadores auxiliar nas emergências, quando os demais meios de comunicação falham, formando uma rede solidária em torno dos necessitados.
Matheus estava contente com a realização de seu grande sonho, que era conciliar o magistério com o radioamadorismo. E ele tinha muito orgulho de seus alunos.
Com um gemido de dor, ele se levantou para verificar seu rádio. As costas sempre incomodavam mais no inverno. Ruiva levantou a cabeça para observá-lo. A cadela já fora cão guia por muitos anos. Resgatada da negligência de um dono que não se importava em cuidar dela. Atualmente, Ruiva só tem boa vida: caminhadas, brincadeiras, e nada de infecções auditivas, das quais sofrera antes. Matheus sempre achou uma judiação a maneira como muitas pessoas tratavam seus animais de estimação. Torcia para que algum abençoado inteligente um dia criasse uma bengala com GPS, ou algo do tipo. Por que não? A tecnologia estava tão avançada. Não era todo mundo que se engajava na responsabilidade de cuidar de um cão e suas necessidades. Nem sempre o proprietário era consciente para lidar de acordo com o que o animal precisava e merecia. Por sorte havia fiscalização, embora Matheus achasse que deveria ser mais rigorosa.
Ele já tinha presenciado tanta coisa na rua... Quando soube das circunstâncias em que a cadela foi resgatada, ele se ofereceu para ficar com ela até que lhe encontrassem um novo lar. Acabou que ele se tornou pai oficialmente. Ruiva não saiu mais de sua vida.
-Fica aí, garota - disse ele, entrando na casa. - Eu já volto.
Ao passar pela porta, ele não viu o clarão no céu. Mas Ruiva, sim, e achou que era uma boa hora para uma retirada estratégica... Ela ultrapassou o dono, quase o derrubando na entrada da sala de estar.
- O que deu em você? - Ele olhou para trás e reparou no horizonte rosado, antes que a luz desaparecesse por completo. - Você viu alguma coisa, não foi, garota?
Ruiva deitou-se na cama dela e deu uma choradinha.
Ele pegou o microfone de seu IC - 756 PRO II, com a mão direita e girou o botão da frequência com a esquerda.
-Vamos ver se mais alguém viu algo diferente no céu...
--- CONTINUA NA AMAZON
LÁ ESTÁ COMPLETO
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro