3 - Caspar, o Rapaz da Pólvora
31 graus Norte, 29 grau Leste. Depósito de Proa.
Dimitri mantinha-se com os braços cruzados e a guarda alta, enquanto observava Caspar comer uma maçã.
Será que esse é um sinal de que eu também posso comer? Mas permaneceu com fome e em silêncio, enquanto os únicos barulhos do cômodo eram o de sua barriga e dos dentes de Caspar mastigando. Ele era assim mesmo, de poucas palavras. Preferia analisar bem suas situações antes de fazer um movimento em falso. Mas Caspar não parecia ser amedrontador ou coisa do tipo. Na verdade, parecia um ser bastante simples, com necessidades simples.
Por isso, discretamente, levou uma de suas mãos até o esconderijo onde havia guardado suas maçãs roubadas. Tateou-as com cuidado para não fazer barulho, mas soltou-as rapidamente quando Caspar se moveu.
— Quer uma? — ofereceu o loiro. — Assim você não precisa roubar.
Dimitri, surpreso por ter sido pego, concordou com a cabeça. Caspar jogou em sua direção uma das frutas, e o novato pegou-a no ar.
— Ficou tão assim na cara? — perguntou Dimitri, constrangido.
— Você é um péssimo ladrão.
Os dois riram baixinho, mas logo ficaram em silêncio novamente, aproveitando, ou não, a companhia um do outro até terminar de comer.
Caramba, Dimi arregalou os olhos ao morder a maçã.
Uma explosão de sabor tomou conta de sua boca. Pensava estar com fome, mas só descobriu o quanto estava faminto de verdade quando mordeu aquela maçã. Em outras circunstâncias talvez ela parecesse viscosa e um pouco murcha, mas, naquele momento, aquela era a melhor maçã do mundo. Quanto a Caspar, ele era ótimo em quebrar o gelo, mas suas conversas eram sempre péssimas e atrapalhadas, então, decidiu deixar o novato falar primeiro, o que acabou sendo uma decisão horrível, pois foi seguida por longos minutos em silêncio.
Dimitri suspirou, contente com a refeição, mas incomodado por ter que falar. De qualquer maneira, Caspar parecia o cara ideal para se tentar extrair informações.
— O que é essa apresentação oficial? — perguntou, casualmente.
O loiro deu de ombros, enquanto terminava de retirar o caroço com um pequeno canivete.
— Não se preocupe com a apresentação. Todos passamos por ela quando chegamos. Do que você realmente tem que ter medo é de conhecer Jack.
— Quem?
— Jack — explicou Caspar, cuspindo uma risada. — Quem está no cargo de timoneiro atualmente. Você vai ver.
Dimitri pôs as mãos nos bolsos, discretamente roubando o canivete de Caspar.
— Parece que eu não tenho muita escolha.
Caspar, que sequer percebeu, terminou de comer sua fruta, deixando o miolo dentro de uma cesta de palha. Ficou um tempo em silêncio, analisando o novato.
Ele é meio... estranho, pensou Caspar. Parece estar pensando em milhares de coisas, enquanto nem uma palavra sequer sai de sua boca.
Caspar, em contrapartida, era o completo oposto. Falava o tempo todo sem pensar.
— Tem gente especulando sobre a sua história e o que você estava fazendo sozinho em alto-mar. Tem cada teoria... estão até apostando, sabia?
— O quê? Sério?
— Em nome de Nathaniel Dyi — respondeu o loiro. — Quando um marujo aposta em seu nome, é como apostar em nome dos deuses.
E Caspar sabia tudo sobre apostas.
— Se a aposta não for cumprida, o vencedor tem o direito de cortar o dedo de quem não o pagou. E se já não sobram dedos... bom, acho que você pode escolher outra coisa para cortar.
— Que povo civilizado — resmungou Dimitri.
— Você não saberia me dizer se, hã, por acaso você foi engolido e vomitado por um... monstro marinho?
Definitivamente, Caspar não pensava antes de falar. Dimitri fez uma careta, sem saber ao certo se tinha ouvido direito.
— Não?! — respondeu.
— Droga! Vou ter que pagar três coroas para o velho — xingou a si mesmo, cerrando os punhos no ar.
Caspar tirou de dentro da meia algumas moedas e pôs-se a contar. Quanto mais contava, mais revoltado ficava.
— Uma, duas... argh, droga, só tenho trocados — resmungava.
Dimitri esboçou um sorriso.
Ele parece um cara legal, pensou. Então fechou a expressão. Ele precisava focar. Ainda não sei onde estou, não posso confiar em ninguém.
Então, pela segunda vez na manhã, tentou levantar. A sensação de ficar em pé era estranha, pois Dimitri não sentia direito os calcanhares ou os joelhos. Quando sua sensibilidade voltou, já era tarde demais.
— MIAUUUUUUU!
— Ah, gato idiota!
Sem perceber, Dimitri havia pisado no rabo felpudo de um gato, ou algo parecido com um. Tinha a pelagem alaranjada e suja, parecia um tanto velho e levava um tapa-olho de couro, com o que se parecia um obturador metálico, do lado direito da cabeça. Parecia o resultado de algum cientista lunático por máquinas. O bichano fez um estardalhaço e pulou para o colo de Caspar, que riu e o agarrou, como se fossem amigos íntimos. Em seguida, fez carinho em sua barriga.
— Ahá! Vejo que já conheceu o Cook.
— Essa coisa tem nome?
O bichano rosnou em resposta. Caspar riu.
— "Essa coisa"... ele é o mascote da tripulação, Dimi. Na real, o dono legal dele é Lars, o Atroz.
O loiro apontou para o próprio rosto.
— Os dois têm o tapa-olho no mesmo lugar e nem me pergunte o porquê. Também não sei. Então, se eu fosse você, não chamaria o Cook de "coisa" na frente dele.
Dimitri sentiu um arrepio. Algo no que Caspar havia dito, cutucara em um ponto fundo de sua memória adormecida. Um ponto sombrio e medonho.
— Espera. Lars, o Atroz, você disse?
Só de falar em voz alta, sentia calafrios ao ouvir aquele nome. Não sabia muito bem o porquê, mas sentia. Caspar concordou com a cabeça, levantando em um salto. Em seguida, respondeu com um tom de admiração e um brilho nos olhos.
— Sim, o próprio. O cara é o mais procurado de toda a Baía de Hombatomba. Dizem por aí que ele comeu a própria mão para não morrer de fome.
Dimitri tinha certeza de que já ouvira aquele nome antes. Então a sensação de algo estar errado voltou com tudo e seu instinto de autodefesa também. As peças começavam a se encaixar em sua cabeça.
— Se Lars, o Atroz, trabalha aqui, então...
— Positivo, novato. Bem-vindo ao Nadia Keane!
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