95 - O Trabalho de Um Cartógrafo
Curiosidade é mais contagioso que gripe. Não tardou para que todos os Saqueadores da Barra se pendurassem na borda do navio para olhar de perto aquele pedaço de terra. Patrick Hall segurou o chapéu, maravilhado. Poeta folheou suas anotações, mais confuso que marujo bêbado em terra firme. Calculava coordenadas através de seus óculos.
— O quê? — Virava a página. — Não, não pode ser. O porto mais próximo é o de Andovas. Não era para ter uma ilha aqui.
— Parece que você tem que atualizar suas anotações, meu chapa — disse Caspar, descansando a mão em seu ombro.
Poeta fechou o caderninho.
— O Mar Fechado não possui ilhas e todo mundo sabe disso, é uma passagem estreita de navios e de correntes traiçoeiras — disse, confiante de suas palavras. — O capitão Hall vai perceber que ancorar em um lugar como esse é imprudente e, então, vamos zarpar para longe daqui.
— Homens, preparar para ancorar! — gritou o capitão.
— O QUÊ?!
Aquilo era demais para o coraçãozinho de Poeta. Indignado e um pouco desesperado foi correndo até seu superior.
— Mas, mas capitão... essa ilha não consta nos mapas.
— Hora de atualizá-los, então — disse Hall, sorrindo e pondo seu chapéu na cabeça de Poeta. — Parece que fomos os primeiros a descobrir esse lugar. Não é excitante?!
— Na verdade, não.
Patrick Hall caminhou de volta para o convés e Poeta o seguiu de perto como um camundongo assustado.
— Mas o senhor não acha que, por não ter sido explorada ainda, pode ser perigoso para a tripulação descer em terra firme?
— Por isso, esse vai ser o SEU TRABALHO.
O garoto limpou as orelhas. Só podia ter ouvido errado.
— ... como é que é?
— Você é o cartógrafo, faça o que sabe fazer de melhor. Quero que ande pela ilha e mapeie o que puder.
O capitão olhou para algum ponto distante e mergulhou em seus pensamentos, hipnotizado pelas possibilidades.
— Com sorte, esse lugar será perfeito para esconder alguns tesouros — sussurrou para si mesmo e fechou-se dentro de sua cabine.
Poeta já estava acostumado a ser contrariado pelo bando de idiotas com quem convivia diariamente, mas seu capitão?! Levou a mão à testa que doía de tanto pensar, até relembrar que estava sem boina. A pobrezinha tinha sido empalhada na parede como o prêmio cruel de um caçador de recompensas em um bar nojento de trocas e agora levava um belo buraco no meio. Caspar, o bisbilhoteiro, que obviamente tinha ouvido toda a conversa, aproximou-se.
— É, amigão — suspirou — Alguém vai fazer hora extra no dia de folga.
Poeta bufou.
— Você vem comigo.
— O QUÊ?! — Caspar franziu o nariz. — Eu não, sai pra lá. Isso é trabalho de gente inteligente. Eu vou é abrir um coco e procurar umas garotas na praia.
Poeta retirou sua boina do bolso e esfregou na cara do amigo.
— Você está me devendo uma.
75 graus Norte, 18 graus Leste. Ilha não catalogada.
— Içar âncora! — gritou Kim.
— Ahoi!
Caspar correu para seu posto e Jack terminou de girar o timão. Agora não tinha mais volta. O Nadia Keane estava nas margens de uma ilha completamente sem nome. Poeta não conseguia entender como a tripulação estava tão animada sobre isso. Patrick Hall foi o primeiro a descer. Pulou, suas botas pretas indo de encontro com a areia macia. Olhou ao redor. Parecia uma praia deserta e silenciosa. Não havia colinas ou penhascos, apenas uma floresta tropical mais adiante. Cesco foi o próximo. Tirou a camisa, deixando sua pele amarela brilhar ao sol, pendurou-se nas cordas e lançou-se para fora do navio.
— FESTA NA PRAIA!
— Controle-se, marujo — repreendeu Hall.
Que bom, suspirou Poeta, aliviado. Pelo menos ele ainda tem algum bom senso. O capitão virou-se para a sua tripulação.
— Homens, esta parada pode parecer como um dia livre para vocês, mas não é. Pelo menos não por enquanto. Não sabemos que lugar é esse e não temos certeza do que podemos encontrar por aqui. Vou separar grupos para explorar o local e, quando Poeta tiver mapeado toda a ilha, poderão tirar o resto do dia de folga.
É, nem tanto.
— Tudo eu... — Revirou os olhos.
— Isso significa — continuou Hall.
Cesco levantou as sobrancelhas.
— Festa... na praia?!
Patrick Hall bufou.
— É. Festa na praia.
Se você nunca presenciou um pirata ouvir a palavra "festa", talvez não consiga visualizar a cena. Os Saqueadores da Barra penduraram-se nos brandais e pularam na areia, parecendo animais selvagens. Alguns rodopiavam, outros simplesmente se jogavam no chão sem intuito algum além de engolir areia.
— Quietos. Temos que ser cautelosos. Não sabemos o que pode ter por aí. Grupos Alfa e Beta vêm comigo pela esquerda. — Indicou Hall. — Grupos Delta e Gama vão pela direita.
E dispersaram-se, cada grupo caminhando em uma direção oposta.
A extensão da praia era muito bonita, apesar de carregar consigo um ar desértico. Havia flores tropicais crescendo na beira da floresta e muitas pedras em contraste com aquela areia, tão fina e branca. Porém, quanto mais passos davam, mais as coisas pareciam esquisitas. Indícios de esculturas nas rochas. Desenhos nos troncos das árvores. Não tardou para que o Grupo Alfa desse de cara com algumas estacas de madeira presas ao chão.
— Parece... abandonado — disse Zuca.
— Não — respondeu Kim, dando um passo receoso para trás. — Tem alguém aqui.
Em sua frente, havia uma tocha recém apagada.
Os Grupos Delta e Gama também faziam suas descobertas. Havia pilares de pedra claramente esculpidos por alguém. Três, quatro, cinco... Alguns levavam rostos desenhados. Rostos tristes, melancólicos, raivosos, assustadores, com olhos esbugalhados e a boca aberta. Caspar os encarava, tentando imitar suas expressões em caretas exageradas, quando Jack pulou do alto de uma árvore, bem em cima do pobre coitado.
— AAHHH!
A timoneira gargalhava, como se estivesse tendo um ataque epiléptico de soluços.
— O quê? Achou que era um fantasma?
O rapaz da pólvora levantou-se e bufou. Aquele era um momento raro. Ele era a última pessoa que você veria irritada, mas a bruta tinha passado dos limites
— Eu vou te matar, garota.
— Quero ver me alcançar!
E os dois desataram a correr, como duas crianças desocupadas. Caspar tinha as pernas mais longas, mas Jack era ágil demais. Se dependesse dela, a brincadeira não teria fim.
— Madeira! — gritou Cesco de cima de uma árvore.
Lá do alto, caiu um enorme coco na areia, fazendo Poeta pular de susto.
— AHH!
— Foi mal! Alguém mais vai querer?
King observava as crianças e ria, lembrando de seus tempos de juventude. Uma vez, ele e Esmée foram à praia. Talvez tenha sido o dia mais feliz de sua vida. Lars, o Atroz Amargurado, apenas revirava os olhos. Odiava ficar de babá. Poeta bufou e voltou para seu caderno.
Dimitri caminhava ao seu lado, intrigado.
— Pensei que estaria mais animado.
— Fazer trilha com um bando de idiotas? Não, muito obrigado.
O novato não pôde deixar de rir. Ver Jack e Caspar perseguindo um ao outro em círculos definitivamente entrava na categoria "bando de idiotas".
— Quer dizer... mapear uma ilha completamente nova. Pensei que gostasse dessas coisas.
Poeta suspirou.
— Não me leve a mal, eu amo. Quero mapear o mundo todo, além da Cordilheira — explicou, mostrando uma página de seu caderno. — Quero... encontrar o Mundo Perdido — disse, arrependendo-se em seguida. Falar aquelas palavras em voz alta soava tão infantil. — Por que acha que virei cartógrafo?
Dimitri levantou uma sobrancelha, sentindo que aquela não era a história completa.
— Mas...?
— Mas isso está errado! — disse Poeta, frustrando-se. — Não deveria ter uma ilha aqui. Essas águas já foram exploradas por todos os tipos de oceanógrafos e nunca foram encontradas terras no Mar Fechado. É tão... estranho.
Baixou a cabeça e mergulhou o nariz em suas anotações mais uma vez. Precisava se distrair o mais rápido possível. Pegou um de seus "doces para emergência" no bolso, seu giz de carvão e começou a rabiscar nas páginas freneticamente, enquanto mastigava. Era nítido. Poeta odiava ser contrariado, quanto mais ter suas verdades ditas como mentira. Dimitri observou de canto de olho. Desde o dia da oficina de relógios no Nadia Keane, sabia o quanto Poeta era bom no desenho. Mas, talvez, um elogio ou uma inflação de ego subisse a autoestima do colega.
— Você manda muito bem.
Poeta puxou um sorriso forçado. Eu sei o que está tentando fazer.
— Valeu, Dimi. É parte do trabalho de um cartógrafo — respondeu, suspirando. — Estou tentando passar o maior realismo possível para depois comparar com a cultura de outros lugares. Tentar descobrir que diabos de ilha é essa.
— Se parecem com a decoração de Winikeneke.
Não que Dimitri entendesse alguma coisa de arte. Santo Carelli, bufou Poeta.
— Não. Os traços da cultura artística de Calamari são arredondados e coloridos. Esses daqui são mais brutos e rupestres, se assemelham com a arte dos nativos do Vale das Presas, mas... não poderia ser. Estamos do outro lado do mundo.
O novato levantou as sobrancelhas, curioso.
— Você sabe que tipo de gente mora aqui?
Poeta fechou a expressão, no momento em que uma sombra percorreu seu rosto. Não seria possível. O Vale das Presas era um lugar distante e havia sido considerado praticamente inabitável depois da Grande Guerra. E mesmo que houvesse algum sobrevivente... seria possível que tivesse atravessado o mapa até um lugar desconhecido daqueles?
Um calafrio de incerteza tomou conta de seu corpo.
— Eu... não faço a mínima ideia.
Caspar era um dos jovens com mais preparo físico, quando se era comparado com fracotes como seus colegas de bordo, mas nem ele tinha fôlego o suficiente para acompanhar a maldita da timoneira. Freou o passo, pondo as mãos nos joelhos.
— Tempo! — gritou ofegante.
Jack virou-se, desapontada.
— Deixa de ser molenga, O'Connell.
O rapaz da pólvora levantou a cabeça e estreitou os olhos ao ver belos cabelos acobreados, logo em frente. Com suas energias renovadas, alongou as costas e marchou adiante, com os pés descalços chutando areia e um sorriso brilhando no rosto.
— Ah, foi nada não. Pensei ter visto uma miragem.
Kim, a pouco centímetros de distância, levantou a sobrancelha.
— Essa é nova.
— Boa né?! — Caspar piscou o olho.
De braços cruzados, a contramestre esperava o resto dos Saqueadores da Barra alcançá-la. Grupo Alfa, Beta, Delta e Gama estavam reunidos novamente no outro extremo da ilha. Patrick Hall deu um passo à frente.
— Poeta, relatório.
Poeta tirou um cronômetro do bolso.
— 23 minutos, senhor.
46 minutos de caminhada por todo o perímetro da ilha.
— Não é muito grande.
Mas havia algo diferente daquele lado. A floresta parecia um tanto mais convidativa. Seriam as árvores floridas ou as placas indicativas presas em seus troncos? Não havia letras escritas, mas o símbolo de uma seta é universal. E era bem claro. "Entre na floresta", era a mensagem.
De repente, o cenário pareceu escurecer. Dimitri levantou o queixo e percebeu que havia nuvens escuras tomando conta dos céus. Um arrepio percorreu sua espinha. Patrick Hall virou-se para sua meteorologista, Jack, e ela concordou com a cabeça. Não poderiam velejar com aquele tempo.
— Capitão? — Kim aguardava por novas ordens.
Patrick Hall respirou fundo.
— Seguiremos em frente. Não se percam uns dos outros.
E lá se foram os Saqueadores da Barra, em fila, rumo à escuridão.
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