Na beirada - Capítulo Único
A porta do telhado do prédio se abriu com um estrondo. Uma mulher de azul a atravessou como se o mundo estivesse acabando. Talvez realmente estivesse. Ela correu até o parapeito e olhou para baixo. Vinte e cinco andares a separavam do chão. Ela respirou fundo e subiu na beirada. Ficou de pé em seu terno executivo azul escuro. Seus saltos-altos, de mesma cor, tiravam um pouco de seu equilíbrio quase a fazendo cair antes do planejado. O vento batia em seus cabelos pretos cacheados e em sua pele negra fazendo-a arrepiar. Era jovem e bonita. Ela respirou fundo novamente e fechou os olhos.
− Ahem! – O som de um pigarro soou atrás dela.
A mulher girou a cabeça observando a figura que acabara de tossir. Um homem vestindo um terno cinza se recostava em um cano de ventilação dois metros atrás dela. Sua camisa social azul claro com riscas de giz estava aberta até o segundo botão. A gravata vermelho-sangue se encontrava frouxa. O cabelo, mesmo penteado para trás como o de um executivo, ainda apresentava sinais de descuido. A barba, por fazer.
− O que você está fazendo aqui? – ela perguntou.
− Fumando – o homem respondeu, tirando uma carteira de cigarros do paletó e acendendo um. Deu uma longa tragada e soltou a fumaça enquanto olhava o céu nublado. Depois olhou para a mulher e esticou a mão que segurava a carteira, oferecendo o produto.
− Não, obrigada. Não fumo.
− É uma boa atitude. Faz muito mal à saúde.
− E eu pareço preocupada com isso? Você é quem deveria parar.
− O meu caso é diferente.
A mulher não tinha paciência para se engajar em uma discussão, por isso só respondeu:
− Tanto faz. Agora se me dá licença... – E se virou novamente para a beira do abismo. Respirou fundo mais uma vez antes de observar o homem de esguelha.
Ele não disse nada, somente retirou o paletó, revelando suspensórios, da mesma cor da gravata, segurando suas calças. Pendurou o casaco em um dos braços e deu outra tragada no cigarro. A mulher revirou os olhos.
− Você está me atrapalhando. Vai embora! – ela disse irritada.
− Eu cheguei aqui primeiro. Você é quem está me atrapalhando. – Outra tragada. – Vá pular de outro andar. – Ele sacudiu a mão como se espantasse um animal.
− Acho que eu tenho prioridade para o uso do telhado.
− Eu não acho – ele disse indiferente.
A expressão da mulher se contorceu de raiva e ela soltou um grunhido.
− Que se dane! – Ela girou novamente no parapeito e respirou fundo mais uma vez. Segundos depois se virou outra vez para o homem. – Você não vai me impedir?
− Não. – Mais uma tragada.
− Por que não?
− Por que sim?
− É o normal a se fazer nessas situações.
− E eu pareço normal?
Ela o olhou de cima a baixo.
− Sim. Parece um cara meio estranho, desleixado, cansado... mas normal.
− Hmm... – ele resmungou. – Você acertou a parte de estar cansado.
Ele acabou o cigarro e apagou a bituca no cano de ventilação, depois pensou por um momento e falou:
− Sabe... Eu poderia te salvar agora. Eu poderia largar meu paletó e correr até você como um super-herói. Te seguraria no ar e ficaríamos pendurados na beirada enquanto eu gritava motivos para viver. Mas não ia fazer diferença.
A mulher o olhava com uma expressão de surpresa e curiosidade. O homem pareceu notar sua confusão e por isso continuou:
− Te salvar agora não te salvaria no futuro. Não te impediria de cortar os pulsos amanhã, ou tomar um vidro inteiro de remédios no dia seguinte. Se quiser realmente ser salva, deve fazer isso você mesma.
A mulher arregalou os olhos.
Antes, quando viu o estranho pela primeira vez, ficara feliz. Não morreria sozinha. Poderia dizer algumas palavras antes do fim, mesmo que para um desconhecido. Chegou a rezar para que ele a impedisse. Agora não tinha mais certeza de nada. As palavras do homem a pegaram de surpresa e a deixaram confusa.
− Mudei de ideia – ela falou.
− Sobre pular?
− Sobre você ser normal.
− Ah... – Ele sorriu.
Ela deu um pequeno sorriso também.
− Me dê um motivo pra não pular – pediu.
− Você vai sujar o chão lá em baixo.
A mulher cruzou os braços na espera de uma resposta séria. O homem riu e continuou:
− Primeiramente pense no porquê de querer pular. Realmente vale a pena?
− Você não sabe da minha história.
− E nem pretendo. Mas você sabe. E por isso deve pensar se essa é a única saída.
− Seria mais fácil assim.
− Bem mais fácil, com certeza. Mas você realmente quer escolher o caminho fácil? Sabe... Eu vejo a vida como um jogo. Se desistir, você perde pra ela. E, não sei você, mas eu odeio perder. É por isso que nunca desisti.
A mulher se surpreendeu por um momento, descruzando os braços.
− Já pensou em fazer isso?
O homem fez que sim com a cabeça.
− Todos os dias, mas mesmo que eu aceitasse perder para a vida, ainda não conseguiria fazê-lo.
− Por que não?
− Sou diferente.
− Já disse isso.
− O fato ainda não mudou.
Ela cruzou os braços novamente e revirou os olhos.
− E você ainda não me deu um motivo para viver.
− Como eu disse, é algo que você deve descobrir sozinha. – Ele cruzou uma perna sobre a outra e se apoiou mais na ventilação.
Ela ficou impaciente.
− Você me lembra o Mestre dos Magos – falou.
− Não conheço esse cara.
− Caverna dos Dragões?
− Nunca ouvi falar.
− Você não teve infância? – ela perguntou embasbacada.
− Não – o homem respondeu indiferente.
− Bem... De qualquer jeito, vocês dois se dariam bem. São parecidos.
− Ele também é bonitão?
− Ele também é um babaca que só fala através de enigmas.
− Ah.
Ambos riram e o homem disse:
− Continuando. Não posso te dar um motivo pra viver, mas posso dar um para não morrer. Já deve estar na hora. – Ele começou a andar em direção ao parapeito.
− Hora de quê? – perguntou a mulher confusa.
− Do início do show. – Ele se encostou no parapeito olhando para a rua. – Olhe pra baixo.
A mulher ainda o encarava.
− Vamos – ele insistiu.
A mulher de azul engoliu em seco e olhou. Uma onda de vertigem a atingiu quase fazendo-a perder o equilíbrio, mas ela persistiu. Logo viu sobre o que o homem falava. Um pequeno grupo de pessoas começava a se reunir ao pé do prédio para observar o que acontecia. Alguns apontavam os celulares fotografando ou filmando a cena.
− Viu? Hora do show. Agora, o que eu vou dizer pode parecer maldade e talvez te faça querer pular mais ainda, mesmo assim ouça.
Uma pontada de medo atingiu a mulher, mesmo assim ela começou a prestar atenção. O homem fez uma pausa dramática e então disse:
− Se você morrer, ninguém vai ligar. – Existia em sua voz uma indiferença petrificante.
A mulher arregalou os olhos e começou a ruborizar. Sua expressão demonstrava somente raiva na superfície, mas havia tristeza misturada a desespero mais ao fundo. Quem dizia algo assim para alguém já à beira do precipício? Tudo que ele lhe dissera de bom pareceu se dissolver diante daquelas palavras.
Ela então gritou com a voz já alterada:
− Tinha razão! Agora eu realmente quero pular! – E se virou para a beirada novamente.
− Ainda não acabei de falar – o homem disse virando-se e apoiando as costas no parapeito. – Talvez eu tenha exagerado um pouco. Você tem família? Amigos?
Ela vacilou um pouco, tentando controlar a raiva, mas respondeu:
− Sim e sim.
− Certo. Eles vão sentir sua falta. A maioria deles pelo menos. Mas é um número incrivelmente ínfimo em comparação ao número de pessoas... de seres vivos restantes no universo. O mundo mesmo nem mesmo irá perceber a falta de mais um humano. O seu épico salto para o fim se resumirá no final a um vídeo com alguns milhares de visualizações na internet e uma notícia na quinta página do jornal. Uma notícia pequena.
− Você ainda não está ajudando! – ela gritou exaltada.
O homem suspirou mais uma vez.
− O que quero dizer é: todas as pessoas pensam em si como o protagonista da história do mundo. Isso é natural, mas não é verdade. Não existem protagonistas na vida. Aliás... – Ele coçou o queixo. – Talvez o protagonista seja a própria vida. Nós somos apenas coadjuvantes. Você, eu e todas as pessoas lá embaixo somos grãos de poeira comparados a todo o universo. E poeira não faz falta a ninguém. Portanto a única pessoa que realmente sentiria sua falta, aquela que realmente notaria sua ausência no mundo, é você mesma. Mas é claro... Você vai estar muito morta para perceber.
Ele girou a cabeça fitando a mulher. Só agora ela percebera a cor âmbar dos olhos do homem, algo que nunca tinha visto antes.
− E esse é o meu motivo para não morrer. – Ele sorriu para ela.
A mulher virou novamente para a beirada. Olhou para baixo, depois para cima. Para o céu. E pensou. Pensou pelo que pareceu muito tempo. Pensou em tudo que passara em sua vida. Todos os muitos momentos tristes e os poucos realmente felizes. Pensou em sua família. Pensou no motivo pelo qual decidira saltar e percebeu o quão ridículo ele era, tanto que nem sequer teria coragem de dizê-lo em voz alta para alguém escutar.
A mulher de azul se virou e deu um passo à frente caindo para o telhado. Recuperou o equilíbrio e encarou o homem, dizendo:
− Você poderia ter escolhido um motivo mais bonito e nobre do que esse.
− Mas aí talvez não fosse verdade. – Ele sorriu.
− Que seja. – Ela pensou por um segundo. – O que acha de tomar um café?
− Adoraria.
A mulher então seguiu para a porta do telhado, mas parou quando deu falta do homem.
− Não vem?
− Pode ir na frente. – Ele mostrou a carteira de cigarros. – Só vou castigar meus pulmões mais uma vez.
− Certo... Só não vai pular depois de todo esse discurso. Te espero na cafeteria do segundo andar. – Ela sorriu.
Ele devolveu o sorriso. A mulher atravessou a porta e desceu as escadas.
* * *
O homem vestiu novamente o paletó e olhou para o horizonte. Acendeu mais um cigarro e soprou a fumaça olhando mais uma vez para o céu.
− Acabou? – Uma voz grossa veio detrás dele.
− Sim – o homem respondeu sem se surpreender. Virou-se e olhou o dono da voz. O cigarro ainda na boca.
Um grande homem negro se encontrava à sua frente. Vestia um conjunto completo de roupas pretas que quase se camuflavam com sua pele. Era careca e possuía tatuagens no couro cabeludo.
− É possível que ela mude de ideia?
− Tudo é possível. Mas eu duvido. Desde o início ela não tinha convicção para tirar a própria vida.
− Então vamos. Você tem mais trabalho a fazer – o homem negro disse, fitando os olhos âmbar do outro com os seus próprios da mesma cor.
− Que tal uma folga? – O homem de terno tragou uma vez, soltando uma baforada de fumaça na direção do outro. – Eu tenho um encontro com uma beleza negra na cafeteria desse prédio. E eu não estou falando do café.
− Você já recebeu uma folga sequer em toda sua existência? – o homem de preto perguntou, ignorando a fumaça.
− Não, e é por isso que gostaria de saber como deve ser a sensação. – Sorriu.
Não houve reação do homem negro, ele apenas disse:
− Você não tem tempo pra isso se realmente deseja recuperar sua Graça. – Depois se lembrou. – E o Chefe quer falar com você antes do próximo trabalho.
− E por que ele mesmo não veio? – o homem perguntou já sabendo a resposta.
− Você realmente acha que Ele vai descer neste buraco só pra falar com um Caído?
− Pensei que era pra isso que servia a onipresença. – O sarcasmo era evidente em sua voz.
− Não O desrespeite! Senão sofrerá as consequências! – o homem negro disse se irritando pela primeira vez.
Aquilo pareceu agradar o homem de terno. Ele apenas riu e falou:
− Tá, tá! Entendi. – E atirou o cigarro pela metade com um peteleco.
O cigarro deu duas voltas no ar antes de aterrissar em uma poça d'água no chão e se apagar. Quando isso aconteceu, não havia mais ninguém no telhado.
Fim
* * *
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