Dragonfly
1.
Não consigo tirar essa sensação estranha de dentro de mim, a de que Jungkook esteve o tempo todo aqui. Ela gruda no céu da minha boca como um sabor.
Chego cedo na aula. A sala é como um auditório que afunila até o palco lá embaixo. Sou o primeiro a chegar e, pouco a pouco, como areia escoando num vira-tempo, outros alunos vão chegando e se espalhando. Eu presto atenção. Percebo tudo. Os sons ao meu redor, a movimentação ainda sonolenta dos vultos que me cercam como fantasmas. Uma libélula entra pela fresta das janelas lá no alto e descreve círculos no ar empoeirado. Suas asas são de cristal azul.
Os minutos passam.
Sou um garoto solitário esperando por outro garoto.
Sou uma metade cortada ao meio, esperando ficar completa.
Sou uma estrela pulsando perdida num céu vespertino quando ele finalmente entra pela porta. Cabeça abaixada, coberta pelo boné preto. Conheço seus movimentos, a forma como seu pescoço se curva para baixo enquanto ele caminha, expondo a nuca e os ângulos das mandíbulas marcadas. A luz da manhã reflete nas argolas da aba de seu boné quando ele começa a subir os degraus. Na minha direção. Observo os músculos de suas coxas flexionando nos jeans rasgados, os joelhos fortes aparecendo pelos rombos desfiados, as Timberlands cor de terra, o movimento de seus ombros quadrados cobertos pelo moletom preto.
Conheço esse garoto.
Sei quem ele é.
Jungkook. Já chamei esse nome.
Tantas e tantas e tantas vezes.
Ele passa perto de mim e eu levanto os olhos. Meu corpo sofre um frenesi, querendo se conectar. Não é o mesmo chamado que sinto por Jimin. É diferente. Mais intenso. Mais... urgente. Não sinto meu sangue fluindo no corpo, não sinto meus batimentos, só sinto Jungkook e seu olhar deslizando para cima em câmera lenta até encontrar os meus. A manga do moletom dele roça minha mesa, quase tocando meus dedos. Minha mão se abre para o toque, receptivo, estou totalmente receptivo.
Não chega a ser um contato, os nós dos dedos dele raspam a ponta dos meus dedos, é como dedilhar algodão.
Mas sinto o calor de sua pele por uma fração de segundo.
E é o bastante.
Eu o conheço. Meu corpo sabe disso, por mais que todo o resto em mim discorde.
Meus ouvidos captam o zumbindo estalado da libélula adejando contra os vidros da janela. Ela se debate como uma memória que tenta se libertar.
2.
"Você não vai conseguir terminar a tempo", Jimin diz.
Ele está deitado em minha cama no dormitório. Chaneol, meu antigo companheiro de quarto, se formou. Esse semestre estou sozinho, então Jimim migra para cá nas tardes de tempo vago. Seu alojamento fica do outro lado do campus - é simplesmente longe demais.
Ajeito os óculos de aros redondos no meu nariz e afasto a franja dos olhos. Eles ardem porque passei a última hora praticamente sem piscá-los, vidrado no notebook caçando material sobre John Waterhouse na internet. Mas as fontes não são suficientes, nem confiáveis. Preciso de livros. Preciso de um livro em específico e ele está com Jungkook, o garoto que não consigo decifrar, nem me aproximar.
Desde que ele entrou na minha vida, tudo tem dado errado. Tenho uma sensação incerta e eufórica, como beijar alguém que está caindo.
Jimin tem razão. Não tenho tempo. Não vou conseguir entregar esse trabalho. Falta apenas um dia.
Olho pela janela, observando o sol se pôr por trás dos prédios da universidade. Os dedos de Jimin tocam minha nuca, alisando-a, e isso me acalma. Sinto sua presença quente atrás de mim enquanto estou sentado no chão e escorado na lateral da cama, o notebook aquecendo minhas coxas.
"Eu devia tentar mais uma vez", digo.
"Tentar o que?"
"Falar com Jungkook."
"Quem é Jungkook?"
"Eu não sei", e estou sendo sincero. Jogo a cabeça para trás até que consigo ver Jimin de ponta cabeça. Ele se curva por cima de mim, a franja loira e bagunçada deslizando por sua testa num arco gracioso. "Mas ele é a solução."
Jimin desce os dedos que tocam minha nuca até a lateral do meu pescoço e afastam a gola da minha blusa. Ele tateia com a ponta dos dedos a cicatriz que tenho ali, perto do ombro. Sua unha curta sobrepõe o desenho em forma de um 3 ao contrário.
"Lembra desse dia?", ele murmura.
"É claro que sim", a ponta do meu dedo se une a de Jimin em meu ombro. Sua respiração está tão próxima que sinto o sabor familiar dela, doce e morna como leite. "Estava chovendo. Eu, você e Yoongi estávamos correndo na praia quando a tempestade veio. Vocês dispararam pela encosta, mas eu era pequeno..."
"Você era pequeno", Jimin ri pelo nariz, fazendo cócegas em meu ombro nu. Ele toca os lábios em minha pele e sua voz fica confidente. "Está tão grande agora TaeTae. Maior que todos nós."
Tento não pensar no quanto é macabro que Jimin fale de Yoongi como se ele ainda estivesse vivo, porque eu mesmo faço isso.
"...e não consegui seguir vocês. Fiquei para trás", sorrio também, apesar de ainda estar magoado. Não por Jimin, mas por Yoongi. Ele sempre sabia como me magoar sem querer, sempre me teve na palma da mão sem o menor esforço, mesmo agora. "Então você voltou para me buscar e encontramos aquele celeiro abandonado e entramos, mas eu estava chorando tanto que não enxerguei o ancinho."
"Você caiu de cara nele", Jimin está rindo tanto que o colchão da cama treme atrás de mim e ele precisa afastar a mão do meu ombro para cobrir a boca.
Das primeiras vezes que tivemos essa conversa, repassando esse dia na chuva, bati em Jimin por rir de mim. Mas não tem mais graça e ele nunca vai mudar, então só me atenho à lembrança desse dia. Ela é frágil como a casca de um ovo, temo que quebre se eu a revirar demais na minha mente. Jimin ofegante se largando no chão. Yoongi tirando a blusa encharcada e expondo a pele cor de cal. As gotas de chuva descendo pela penugem aveludada de sua espinha dorsal até as covinhas no final dela. Nós tínhamos quinze anos. Eu já era apaixonado por ele. Não foi porque estava chorando que caí por cima do ancinho.
Foi porque estava fascinado por Yoongi.
Nunca contei isso para Jimin, embora eu tenha certeza de que ele sabe, porque é o meu Jimin. Mas, assim como nunca comentei o que eu sentia por Yoongi, ele nunca me falou o que pensava disso. É o único segredo que temos um do outro, e eu tenho medo, muito medo de que um dia ele não exista mais.
"Ele vai sempre estar em você" Jimin murmura, sombrio, apertando a cicatriz em forma de 3 até formar um círculo exangue em minha pele, como se quisesse apagá-la, fazê-la evaporar. "Yoongi e Taehyung. Uma marca errada."
Algo na forma como Jimin diz isso me faz puxar a gola da minha blusa de volta e esconder minha cicatriz. Nada em Yoongi era errado. Jimin sabe disso, e é estranho que ele tenha dito algo assim, como se não estivéssemos falando da mesma pessoa. E ainda por cima, ela está morta. Deve ser por isso. Perder o melhor amigo está mesmo sendo mais do que meu irmão pode suportar.
"Venha comigo para Jeju", ele pede suavemente, afastando do meu ouvido algumas mechas de cabelo.
"Jimin", meu coração se parte por ele. "É melhor não. Temos que esquecer."
"Eu não consigo, Tae", ele fecha os olhos como se sentisse dor. "Você consegue?"
Não.
Jeju é onde passamos nossos verões a vida toda. É onde conhecemos Yoongi e é também onde ele sofreu o acidente. É uma ilha pequena e isolada na costa da Coreia do Sul. Nossa família mantém uma casa de veraneio lá, no alto de uma encosta rochosa. Está um pouco abandonada desde que eu e Jimin deixamos de ir. Não é mais a mesma coisa agora que não somos mais três.
"Não é justo que você me peça para esquecer ele se você mesmo não o esquece. Você esteve lá, na casa. De certa forma, você esteve mais perto dele."
"Fui lá para me despedir", justifico.
"Você levou flores para o túmulo dele. Eu quero fazer isso também. Eu preciso e vou fazer, mas quero que venha comigo. Não quero me separar de você nunca mais, é ruim."
Tento argumentar, mas não posso realmente negar nada para Jimin. Talvez, se ele tiver a chance de se despedir adequadamente do amigo, possamos virar a página juntos. Começar de novo. Será bom.
"Quando as aulas acabarem", eu prometo. "Só mais duas semanas, e então vamos."
Ele assente, os olhos me agradecendo. Jimin tem essa particularidade que me fascina, a forma como seus olhos expressam tanto enquanto seu rosto continua sereno. Acho que deve ser difícil habitar o corpo do meu irmão, tantos sentimentos agudos se sobrepondo o tempo inteiro.
Ergo a mão e toco seu rosto, trazendo-o para perto do meu até que meus lábios toquem a curva macia de seu queixo. Meu lábio superior roça seu lábio inferior e ele sorri antes de se afastar.
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espero que estejam gostando <3
prometo não demorar tanto para a prox att
:3
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