Track 3 • Ev'ry time we say goodbye
• Track 3 •
Ev'ry time we say goodbye
(John Coltrane)
"Ev'ry time we say goodbye
I die a little
Ev'ry time we say goodbye
I wonder why a little"
Pela janela do ônibus, atravessando a extensão do rio Han, ela sentiu como se todos os caminhos confluíssem naquelas correntezas que desaguavam em inevitáveis lembranças.
Por bem ou por mal, ela continuava sendo eu, perturbada até mesmo pela rota dos transportes coletivos e os caminhos que obrigatoriamente atravessariam o rio Han. O nosso rio e o de mais 10 milhões de pessoas, eu era capaz de escutar no fundo a risada grave de Taehyung que não cansava de se divertir com a nossa antiga piada interna. Um sorriso chegou a me escapar enquanto fitava a paisagem se movendo pela janela, me recordando de outros tempos em que tudo era mais promissor. O sorriso não chegou a durar nem um segundo, pois logo fui dragada por memórias que insistiam em me desconectar do agora.
Em uma luta contra aquele fluxo tão inevitável como das águas escuras do rio à minha frente, tive vontade de dar o sinal, descer no primeiro ponto após a ponte e voltar andando. Sentir sobre o rosto o vento, me forçar a respirar e me jogar. Metaforicamente, apenas. Deveriam existir várias formas de seguir em frente, assim como infinitas metáforas para defini-las, mas eu não conseguia deixar de pensar em como seria olhar fixamente para aquelas águas, de cima para baixo, as fortes correnteza do rio Han vistas da ponte, a vertigem por olhar tão fixamente até ter coragem de, finalmente, me jogar.
Cogitei, daquela ponte, abandonar todo o passado em um salto, como se fosse capaz de fazê-lo como uma simples ação. Em algum momento talvez, mas definitivamente não seria hoje. Eu ainda não conseguia abrir mão de todas aquelas memórias. Afinal, se eu o esquecesse, quem habitaria as minhas memórias? Em quem eu pensaria enquanto passo por essas margens largas? Quais significados a música que sai do meu fone teria? Quem eu veria antes de fechar os olhos? Qual seria a graça de passar por todos aqueles lugares sem me lembrar dele?
Deveria existir um meio-termo entre se jogar abandonando tudo para trás e ficar apoiada no parapeito da ponte assistindo meu passado aprisionar meu presente. O pensamento me fez apertar os olhos algumas vezes, vendo de forma intermitente a grande extensão de água, montanhas, prédios e mais prédios, céu; a combinação visual curiosa que era Seul de um lado e, por outro, as combinações improváveis de pessoas que essa cidade proporcionava debaixo desse mesmo céu.
Eu, definitivamente, não deveria estar pensando naquilo, mas ainda não havia descoberto como impor restrições aos meus pensamentos e eles, rebeldes, viajavam livremente pelo passado, me recordando de que já fomos uma dessas combinações, uma combinação bem interessante, devo que admitir, de uma universitária de Anyang e um saxofonista de Daegu. Os achados e perdidos de Seul.
Logo no início de tudo, quando eu tentara imaginar como seria sair com um músico, deveria ao menos ter passado pela minha cabeça que aquela primeira sexta-feira havia sido uma excepcionalidade e, diferente de pessoas convencionais como eu, músicos trabalhavam nos dias em que as outras pessoas descansavam. O quarteto de jazz, que não era uma exceção à regra, fazia apresentações sextas, sábados, domingos e, às vezes, até mesmo durante a semana. Eu, por outro lado, estudava de segunda a sexta sempre de manhã e algumas vezes à tarde, com trabalhos e matérias acumuladas a perder de vista. A conjectura estava longe de ser ideal e, não por outra razão, torci o nariz quando Taehyung sugeriu, literalmente do dia para a noite, que nosso segundo encontro fosse um piquenique na hora do almoço às margens do rio Han em plena quarta-feira.
Depois de uma série de desencontros, tentando sem sucesso encontrar algum dia em que Taehyung não estivesse tocando ou que eu não estivesse estudando, ele surgiu com tal ideia genial numa terça à noite. E, antes que eu dissesse "não", mais uma vez, Min-Ji tomou meu celular e respondeu por mim, marcando com Taehyung na frente do campus às 13h.
— Deixa de ser nerd uma vez na vida. Você vai sobreviver se não ir à biblioteca um dia.... — antes que eu pudesse questionar e argumentar sobre o quão indispensável seria a minha tarde de estudos, ela fez um sinal pedindo que a deixasse terminar. — Chung, eu sei que o primeiro encontro foi legal, mas se você sempre disser não pra qualquer coisa que saí um pouquinho da sua rotina, vocês não vão se ver de novo tão cedo...
Lembro-me de ter pegado de volta o celular ainda irritada, mas internamente ter dado razão à minha amiga. Já havia quase um mês desde o primeiro encontro e nossas agendas nunca batiam, portanto, alguém teria que ceder. E, por mais que eu seguisse um cronograma bem rígido de estudos, não era como se Taehyung pudesse simplesmente cancelar apresentações marcadas e deixar o seu grupo na mão para ir a um encontro.
Eu me senti numa cena ridícula de filme quando desci as escadarias da entrada principal e notei, assim como todas as meninas que passavam por lá, a presença de Taehyung. A sua elegância e charme despontavam dentre os universitários apressados. Ele estava vestido de forma chique e, ao mesmo tempo, despojado com uma camiseta de algodão branca por dentro de uma calça de alfaiataria cinza. Quando ele me viu, tirou os óculos escuros de armação redonda e sorriu, colocando a mão livre no bolso.
— Ele veio... Meu Deus, Chung. Ele é mesmo bonito, hein — Min-Ji disse nenhum pouco preocupada em disfarçar o quão impressionada ela estava com a presença de Taehyung, e isso era por que ela não tinha visto-o no palco ainda.
— Claro que ele veio, foi você que marcou o encontro. — impliquei com minha amiga tentando conter a excitação em vê-lo mesmo que o frio na barriga e o coração palpitante já denunciassem.
— Ela é toda sua. — Min-Ji me empurrou fraquinho de brincadeira, depois que trocamos cumprimentos e apresentações.
— Pode deixar que vou cuidar bem dela. — apertei os olhos para não revirá-los na frente do saxofonista, pois era o que tinha vontade de fazer toda ver que ele decidia falar dessa forma piegas como se fosse um protagonista de dorama. Já era perigoso o suficiente ele ser tão bonito, eu não precisava que ele realizasse minhas fantasias de dorameira.
— Se possível, esconda a mochila dela, quem sabe ela consegue relaxar pelo menos durante uma tarde completa. — Min-Ji, para não perder o costume, implicou comigo antes que eu pudesse fugir com o Taehyung para bem longe.
— Hm, boa ideia... Chung-Hee, eu levo isso. — em um ato absolutamente inadvertido, ele pegou a mochila que pendia em um dos meus ombros, me deixando irritada e desconcertada ao mesmo tempo.
— Bonito e simpático. Já gostei dele. — minha amiga cochichou no meu ouvido antes de nos afastarmos, e eu revirei os olhos discretamente por mais que não houvesse muito o que discordar. — Aproveitem!
— Sua amiga é divertida. — ele comentou enquanto caminhávamos lado a lado pela longa entrada cimentada da universidade.
— Você não faz ideia. — respondi bem humorada, mas eu já estava muito acostumada com o jeito brincalhão de Min-Ji. Ela, inclusive, era responsável por minhas doses diárias necessárias de descontração e risadas. "Ser tão séria não vai te levar a nada", ela sempre dizia sacudindo meus ombros, tentando me ajudar a controlar minha ansiedade.
— Se conhecem há muito tempo? — Taehyung indicou com as mãos o caminho até o metrô como se eu não usasse o transporte coletivo todos os dias, e eu apenas o segui.
— Desde de o início da faculdade. Nós fugimos do trote juntas. — disse recuperando memórias que mesclavam ansiedade e felicidade, sobre meu medo inicial de não me encaixar que, por fim, me levaram a conhecer Min-Ji. Ela, assim como eu, se escondeu na cantina para dispostas os veteranos ávidos para pregar peças e se divertir às custas dos calouros. Naquela manhã, não só fugimos no trote, como passamos a tarde conversando em um café nas proximidades da universidade para descobrir que tínhamos muito mais em comum do que cursarmos Sociologia na Nacional de Seul. — Hoje dividimos um apartamento em Itaewon.
Ele demonstrou empolgação com a localização do meu apartamento e engatou algumas perguntas no caminho do metrô. Taehyung parecia ter tudo planejado para aquele segundo encontro. Ele sabia exatamente onde encontraríamos o mercado mais próximo ao Parque Yeouido, com quem alugaríamos a toalha de piquenique e onde a estenderíamos. Diferente de como achara que me sentiria, alheia e ansiosa, eu fiquei tranquila em sua companhia e o nervosismo do início se diluiu enquanto conversávamos no metrô e, especialmente, durante ida ao mercado. Nos divertimos bastante passeando entre as prateleiras, falando sobre nossas comidas favoritas, enquanto enchíamos uma cestinha de salgadinhos, doces, frutas e bebida alcoólica.
Taehyung decidiu levar, para além das latinhas de cerveja, uma garrafa de champanhe e um suco de laranja. Logo que estendemos a toalha de piquenique alugada no parque, ele misturou os dois e me estendeu uma taça de plástico com tal drink chamado Mimosa. Aceitei com um sorriso e brindamos olhando para a extensão das margens do rio, pouco movimentada se comparada com os finais de semanas, em que tanto a parte cimentada quanto o gramado ficavam tomados por grupos de amigos e, principalmente, casais.
— Eu estou tão cansado hoje... — Taehyung confessou dando um gole generoso na sua cerveja, com as bochechas discretamente avermelhadas, pois àquela altura já havíamos comido boa parte do que compramos e a garrafa de champanhe estava vazia.
— Você tocou ontem? — ele assentiu com a cabeça e, curiosa como estava, perguntei — Como você faz pra dormir? Consegue ter noites de sono regulares?
— Mais ou menos... — ele se espreguiçou tentando aparentemente espantar o sono e esticou os braços apoiados na toalha posicionando uma de suas mãos a poucos centímetros de mim. — É difícil dormir depois que o show acaba, mesmo que seu corpo esteja muito cansado, a adrenalina do momento te deixa agitado. E, para piorar, sempre nos oferecem algo para beber depois. Eu tive que aprender a recusar... Mas ontem não foi só isso, eu estava um pouco ansioso, não consegui pegar no sono...
— Hmm, entendo... — senti minhas bochechas um pouco quentes quando ele me olhou ao terminar de falar, parecendo querer deixar algo subentendido. — Tem que ter muita disciplina, penso... E você precisa cuidar bem da sua saúde, não faz bem beber sempre.
— São hábitos ruins, mas tão fáceis de se acostumar... — ele soou reflexivo. — Mas pode deixar, vou me cuidar, prometo que depois de hoje vou beber menos.
Ambos achamos graça, pois ironicamente estávamos segurando nossas cervejas. Em instantes, porém, tudo pareceu mudar. O seu sorriso amplo se fechou em uma expressão quase séria e tudo que fluía naturalmente como as águas do rio à nossa frente pareceu simplesmente congelar. E o tempo definitivamente parou no momento em que ele esticou um pouco mais o braço para colocar sua mão sobre a minha. Estremeci e achei muito estranho a forma que meu corpo reagiu a um simples toque seu. Eu estava constrangida, mas quis procurar seus olhos para tentar confirmar se a mesma coisa também o afligia. Não tive sucesso, porém, pois ele encarava fixamente o horizonte como se estivesse distante.
Decidi afundar minha insegurança na mesma paisagem que seus olhos fitavam e minha mão descansou coberta pela sua, me transferindo um calor discreto naquela tarde ensolarada de outono. Tudo ficou silencioso pelo que pareceu ser uma eternidade, enquanto eu tentava administrar minha respiração, efetivamente me forçando a respirar, enquanto sentia o vento fraquinho em minha face bagunçando discretamente meus cabelos. Talvez eu estivesse muito absorta nas sensações esquisitas que ele me fazia sentir, que mal notei que ele não só removera a mão, como também se ajeitou na toalha para ficar mais próximo. E bastou somente um instante em que virei meu rosto em sua direção para que ele colasse nossos lábios repentinamente.
Seu movimento inesperado me fez prender o ar e o susto não me deixou efetivamente sentir o toque delicado dos seus lábios sobre o meu. Por essa razão, quando ele se afastou, fui eu que me aproximei, mesmo que reticente, encostando mais uma vez nossos lábios. Senti sua mão tocar novamente a minha sobre a toalha enquanto o selar se partiu para que nossos lábios voltassem a se encontrar, agora sem choque ou susto. Bocas e línguas brincando, em um primeiro momento, de forma um pouco descoordenada para que, depois, os movimentos se tornassem tão naturais e fluídos quanto o rio que seguia seu curso à nossa frente.
Quando nos separamos, a primeira coisa que vi foi o seu sorriso misterioso dar espaço para um que parecia ser somente de felicidade. Se esta se equiparasse à minha, a felicidade que estava transcrita nos seus lábios finos e dentes bem alinhados seria genuína. Enquanto isso, meu rosto quente indicava que meu coração estava bombeando mais sangue que o necessário para sobreviver àquilo tudo que eu nunca havia sentido antes.
— Sabe, Chung-Hee... — me virei para encará-lo, ainda que timidamente, e ele levou a latinha esquecida na toalha à boca antes de completar. — Ontem não consegui dormir porque estava ansioso pra te ver... Isso é bobo, não é?
Não soube como responder e depois de um meio sorriso sem graça procurei por minha cerveja, quando queria mesmo é voltar aos seus lábios. "Não é bobo", tive vontade de dizer, "e você me deixa ansiosa também", mas não consegui. Um silêncio se instalou entre nós mais uma vez e senti que ele não só cobrira minha mão novamente, mas como também a segurou de forma carinhosa.
— Esse aqui pode ser o nosso rio, o que acha? — ele disse e antes de soltar minha mão, depositou um beijo que me deixou tão ou mais desconcertada do que quando nos beijamos na boca. Inicialmente, assenti com a cabeça em resposta a sua proposta de fazer do rio Han nosso, mas lembrei-me de que não era incomum encontrar casais à beira do rio, assim como aparentávamos ser naquela tarde e decidi acrescentar algo.
— Nosso rio... e o de mais 10 milhões de pessoas. — seu rosto que expressava uma interrogação logo desabrochou em um sorriso acompanhado de uma risada sonora, instantes antes de estalar um beijo na minha bochecha, repetindo minha fala com humor, sem que soubéssemos que essa seria uma das nossas infinitas piadas internas.
Quando, finalmente, o ônibus atravessou o que já foi o "nosso rio e o de mais 10 milhões de pessoas", conclui definitivamente ser tarde para "me jogar", ou, quem sabe, cedo demais. Tentei me desligar, ao menos por enquanto, daquelas memórias do nosso segundo encontro, e decidi prestar atenção no caminho, pois em breve deveria saltar na frente da minha universidade e, independente de estar pronta para esse outro passo, eu não tinha escolha. Se tudo já não estivesse ruim o suficiente, eu não precisava perder o ponto de ônibus e, de quebra, me atrasar para meu agendamento na secretaria acadêmica da universidade. Agendamento que SeokJin não só havia marcado para mim, como também havia me expulsado de casa alegando que eu só estaria autorizada a voltar se trouxesse o formulário preenchido. Era sua forma, menos sutil e nada metafórica, de me empurrar em direção ao tal "abismo" do esquecimento.
"As coisas podem voltar para o caminho delas", é o que me disse SeokJin algumas horas antes de bater lindamente a porta na minha cara, "mas você tem que querer."
Eu deixei o prédio à contragosto e chateada com o meu irmão, mesmo ciente de que ele só estava pensando no meu bem. Afinal, se eu mesma estava cansada do meu humor autodepreciativo e dos meus resmungos, imagine ele tendo que abrir mão da sua privacidade e da tão sonhada vida a dois para lidar com uma velha rabugenta presa no corpo de uma jovem de 25 anos.
Respirei fundo e permiti que os raios fracos de sol mudassem aos poucos o meu ânimo, tanto que quando cheguei à universidade quase pensei que estivesse mesmo pronta. Meus pés, porém, travaram antes de cruzar a porta da secretaria e uma sequência de questionamento vieram em avalanche: será que eu já estava mesmo pronta? Será que eu seria capaz de voltar a estudar? Será que eu daria conta de fazer o meu TCC?
Ao menos por enquanto, as decisões sobre a minha vida estavam todas sendo tomadas com base no "empurrão", mais especificamente, do meu irmão. E só me provando que Chung-Hee efetivamente precisava era de um empurrão, alguém pediu licença atrás de mim me forçando a entrar na secretaria acadêmica, cuja porta eu estava barrando. Me desculpei por travar a entrada, mas quase pedi para que o universo anulasse o empurrão quando notei que quem tinha dado-o era Jeon Jungkook. Sim, ele mesmo. Um dos melhores amigos de Taehyung e baterista do quarteto de jazz.
Já fazia quase um ano que não nos víamos e eu estava torcendo fortemente para que ele não me reconhecesse, ainda mais que eu havia cortado recentemente o cabelo muito mais curto do que costumava usar, na altura do queixo, e já não havia mais sinal da minha franja de outrora, dando espaço para pontas mais compridas na frente.
— Chung-Hee noona... — apertei os olhos notando que, infelizmente, minhas preces não haviam sido atendidas. — Quase que não te reconheço, você está diferente...
Uma pena você ter me reconhecido, guardei para os meus pensamentos antes de me virar exibindo meu melhor sorriso que buscava, na verdade, ocultar que eu estava à beira de ter uma crise e sair correndo, mas decidi segurar firme. Afinal, a última coisa que eu precisava era de um totem do Taehyung bem diante de mim, algo, ou melhor, alguém que trouxesse à tona todas aquelas memórias que eu estava lutando para abandonar.
Depois de conseguir superar o obstáculo mental que me impedia de passar pela porta, após o empurrãozinho do Jungkook, nós integramos uma pequena fila para sermos atendidos pelo único funcionário trabalhando na secretaria acadêmica do Centro de Ciências Humanas durante o período de férias letivas.
— Ah, é o seu cabelo, noona... Está bonito... — ele disse gentil, coçou o queixo e, em seguida, colocou as mãos nos bolsos, me lembrando de como Jungkook era tímido, mas não era só isso. Ele tinha vários motivos para se sentir constrangido em minha presença e a razão deles começava com Kim e terminava com Taehyung. Afinal, se de um lado Min-Ji fora quem teve mais contato com Taehyung por parte das minhas amigas, Jungkook foi essa pessoa do lado de Taehyung. O baterista, inclusive, havia presenciado boa parte dos momentos que nos levaram às cinzas e que são o motivo pelo qual me encontrava nesse lugar em relação ao Taehyung, à beira do abismo do esquecimento, mas sem, contudo, conseguir me jogar.
— A noona também vai fazer a matrícula? — Jungkook estava longe de ser o cerne dos problemas e eu não tinha nenhum motivo, em especial, para tratá-lo mal, por isso sorri assentindo com a cabeça, mesmo que não fosse exatamente isso. Eu não precisava e nem queria entrar em detalhes.
— Jungkook-ssi, aqui é realmente a secretaria do seu curso? Achei que a dos cursos de artes fosse do outro lado do campus... — comentei estranhando a sua presença, afinal, eu sequer sabia que ele cursava música.
— Bem... Meus pais descobriram que eu tranquei Direito e não ficaram muito felizes com isso... Aparentemente, a ideia de ter um baterista de jazz na família não agrada tanto quanto a de ter um juiz... — ainda que ele tentasse parecer descontraído sobre o assunto, eu sabia que ele estava magoado. Jungkook era muito dedicado à bateria e era, efetivamente, muito bom. Visivelmente sua vocação passava longe de um trabalho burocrático dentro de um tribunal.
— Eu sinto muito, Jungkook-ssi... Mas não desista da bateria, você é muito talentoso... Torço para que tudo dê certo. — sorri compassiva e recebi de volta um também sorriso sincero.
— Muito obrigada, noona. É difícil conciliar a universidade com os shows, você sabe... Mas prometo que vou me esforçar mais!
Jungkook era um bom garoto, pena que para mim sempre estaria vinculado ao Taehyung, uma espécie de totem que tinha o poder de reviver memórias e sentimentos os quais eu estava ansiosa por conseguir esquecer. Ele estava lá no dia em que vi o Vante pela primeira vez e em vários dos nossos encontros. Afinal, depois do dia em que ganhamos um Rio para chamar de nosso, notamos que conseguiríamos nos ver com mais frequência se eu acompanhasse o Trane Quartet em suas apresentações. E mesmo que efetivamente não nos sobrasse muito tempo depois das longas setlists, era melhor comer em lanchonetes 24h e caminhar com Taehyung por Seul de madrugada do que não vê-lo. Com o passar das semanas, diversificamos os nossos encontros para jantares na casa de Taehyung e Jungkook, ou mesmo almoços aos domingos, deixando meu irmão um tanto enciumado de início por trocar o banquete feito por ele no apartamento de Hanan por um delivery barato.
Em pouco tempo, qualquer ocasião já era motivo para que eu e Taehyung nos víssemos. Se não conseguíssemos durante o fim de semana, eu fazia um esforço, que não raramente era compensado em madrugadas viradas em véspera de prova, para que nos encontrássemos. Eu já não conseguia abrir mão da sua companhia e havia ficado cada vez mais difícil dizer não para as sensações ambíguas que ele me causava, uma mistura paradoxal de incerteza e segurança, em especial, quando eu estava em volta do seus braços como naquele dia, enquanto passeávamos às margens do Nosso rio.
— Bem que você podia ir hoje, ensaiei uma música que queria tocar para você... — Taehyung lamentou fitando o céu, especialmente azul naquele domingo. Ele estava elegante vestido com calça e camisa social, coberto por um sobretudo de lã longo preto. Era novembro e o outono abria espaço para o frio invernal.
14 de novembro.
— Ah, poxa... Qual é a música? — eu estava realmente considerando, ainda mais após saber sobre a música, mas eu não podia. No dia seguinte eu teria uma bateria de aulas me esperando e, muito em breve, o período de exames começaria. Tudo que eu não precisava era perder mais uma noite de sono, portanto, tinha que tentar me manter firme na minha decisão de ir pra casa na sequência.
— Every time we say goodbye. — ele, então, aperta minha mão que está escondida junto com a sua dentro do bolso lateral do seu casaco e eu olho para cima para encará-lo.
— Hm, o que a música diz? — perguntei, mas poderia supor algumas coisas pelo título.
— Vamos tocar a versão que o Coltrane gravou, aquele saxofonista que te falei... Então não tem letra... — ele explicou com os olhos focados no horizonte, o céu se desfazendo em lindos tons de azul, lilás e rosa, recepcionando a noite que se aproximava. — Mas tem uma gravação bonita da Ella Fitzgerald, você pode ouvir quando chegar em casa já que você não vai me ver hoje. — ele juntou os lábios em um bico parecendo aborrecido e deu de ombros.
— Não seja dramático, Tae. — me coloquei na ponta dos pés para estalar um beijo em sua bochecha, fazendo com que ele tivesse que resistir para abrir o sorriso que substituiu gradativamente o bico. — Você sabe que eu quero...
— Não estou sendo dramático, eu só não gosto de me despedir. — ele, de repente, parou de caminhar e se virou para mim. — Eu, realmente, odeio quando você tem que ir, pois tenho medo que você não volte... Queria que a Chunnie fosse minha namorada, aí eu poderia ficar mais tranquilo sobre isso... Sobre você sempre voltar para mim.
Sua fala foi entrecortada por suspiros fundos e eu senti que seu tom continha certo nervosismo, enquanto eu ouvia tentando administrar meu coração que dava sinais de que poderia explodir a qualquer momento.
— Isso foi? — eu estava boquiaberta e cheguei a apertar meus olhos para tentar entender se ele tinha mesmo dito o que eu acreditava ter escutado, quando vi que ele balançava a cabeça em confirmação.
— Você quer namorar comigo, Chung-Hee?
Minha expressão de espanto se desfez em um sorriso amplo, dizendo sim da forma mais vocal que poderia, enquanto pulei para cercar seu pescoço em um abraço. E antes de fechar os olhos, quando senti que ele respondeu ao meu abraço apertando minha cintura, eu vi tudo fluindo como o nosso rio e o de mais 10 milhões de pessoas que estava à minha frente.
— Senhorita Kim. — a voz do funcionário me resgatou das profundezas das minhas memórias, e eu cheguei a arregalar os olhos com o susto.
— O hyung está bem. — Jungkook disparou antes que eu atendesse ao chamado, dando tempo somente de me despedir com um aceno. Ninguém perguntou e eu não quero saber, quis dizer, mas me forcei a sorrir, tentando disfarçar o baque que uma simples menção ao seu nome em voz alta me causava.
Um formulário e um termo de compromisso foram colocados diante de mim e senti minhas mãos trêmulas quando peguei a caneta. Me resumi a agradecer e respirei fundo antes de começar a escrever devagar, como se quisesse me certificar de eu estava realmente ciente do que significava cada campo em branco, como se eu já não soubesse. Conferi mais uma vez meus dados, o nome da minha orientadora, tema e título provisório. Por último, o termo me comprometendo a seguir os prazos de entrega do projeto e, posteriormente, da minha Tese de Conclusão de Curso nos próximos seis meses, sob pena de ter que pagar novamente a matéria ou não me formar.
É hora de ir no automático Chung-Hee, feche os olhos e vamos nos jogar.
Respirei fundo antes de entregar a folha de volta no balcão.
Ela também nunca gostou de dizer adeus, mas já passou da hora de fazê-lo. Ela sou eu, a um passo mais próxima do abismo do esquecimento.
🎵
Ev'ry time we say goodbye (toda vez que dizemos adeus) é um standard do jazz. A música e a letra foram compostos pelo Cole Porter (1891-1964), compositor norte-americano que escreveu vários standards de jazz conhecidos. Essa música foi gravada por muitas pessoas, incluindo Chet Baker, Nina Simone, Ella Fitzgerald... A letra é lindinha, mas eu preferi pro capítulo uma versão instrumental gravado pelo John Coltrane, saxofonista que eu já panfletei em capítulos anteriores haha
🎵
Hello lovers!
O que acharam do capítulo? Quem está acompanhando deve ter notado que eu estou procurando detalhar mais o "antes" e todo esse mundo das memórias da Chung, inclusive com personagens novos!
Queria um feedback sincero sobre o que estão achando do desenvolvimento da história!
Obrigada por estarem aqui!
✨Conto acom vocês para me apoiarem com o voto e com muito muitos comentários nessa versão My Only and Only 2.0. O apoio de vocês é essencial✨
Já aviso que o próximo capítulo é inédito😉
Beijos da Maria ❤️
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