Capítulo Único
Minha história foi cômica, para não dizer que foi trágica. Morei minha vida inteira em uma cidade pequena, em um bairro menor ainda. Onde todos se conhecem, todos sabem de sua vida: o que você fez ou faz, com quem você saiu ou não, até assuntos particulares, que você gostaria de guardar para si, é impossível. Mas tirando a falta de privacidade, é bom morar em um lugar assim. Você não precisa se preocupar muito se você sair e esquecer de trancar a porta, pois os vizinhos são ótimos quando se trata de segurança da vizinhança, ou seja, a fofoca rola solto e todos cuidam da vida de todos. Coisas assim...
Minha casa, tirado meu pai, só tem calcinhas, somos em três mulheres, eu, a caçula e minha mãe. Meu pai sofre. Imagina três mulheres na TPM? Se uma já é ruim de aguentar, imagina ter que aguentar três!
Foram três tentativas de dar um "herdeiro" para meu pai. Uma delas quase levou nossa mãe para o outro mundo. Foi sofrido, foi triste, principalmente quando o médico informou que ela não poderia mais engravidar.
No começo foi difícil, ela entrou em uma depressão forte e levou nosso pai junto. Mas no caso dele não foi tão forte, o que fez com que ele voltasse ao normal e nos ajudasse a trazer ela para nossa vida, o que demorou anos e muita força de vontade nossa e dela, claro. Não adiantaria nós nos esforçarmos a algo que ela não quisesse, não aceitasse. Imaginem vocês, tentando salvar alguém de se afogar, mas além de lutar contra a correnteza, tivessem que lutar contra a pessoa que ao invés de acompanhar o seu esforço, nadasse a favor da correnteza... seria uma luta dupla por alguém que não queria ser salvo.
E foi sabendo das tentativas e esforço de ter um filho homem, que eu cresci fazendo de tudo para "mascarar" essa vontade deles. Vou explicar: Eu cresci jogando futebol, soltando pipa, ganhando bonecas quando queria ganhar carrinhos, o que fez com que meu pai sempre trocasse elas por eles, ...
Que quando estava no ginásio, sempre que tinha tempo, jogava na quadra com os garotos. Além de competir para ver quem conseguia subir em árvores e pular, e não é para me gabar, mas eu era melhor que muitos. E foi com o incentivo dos garotos que fui tentar uma vaga nas forças armadas.
Infelizmente nossa cidade não tinha um pelotão feminino, mas também, com as garotas que temos por aqui, mais fácil ter um time de pintura facial, por que o que elas usavam de maquiagem, esmalte, era brilho para dar e vender. Desperdício de tempo e dinheiro. E adivinhem? Minha irmã era quase a "chefe" desse time de desocupadas. Como eu disse.... Um desperdício!
Não sei como é nos outros lugares, mas aqui era assim: Nós participávamos do time de "atletismo", e os melhores eram escolhidos para ir direto para as FA (Forças Armadas). Não me pergunte o porquê ou desde quando era assim, mas era. Acho que por ser cidade pequena e com poucos recursos em todas as áreas, só escolhiam alguns para encaminhar ao distrito militar mais próximo. E quando eu falo time de atletismo, era o nome que usavam, pois o que fazíamos ali era mais que isso, pois era um treinamento básico do que teríamos que enfrentar se passássemos.
Fui até o treinador e informei que queria tentar uma vaga no time, e tanto ele quanto os demais que não jogavam comigo caíram na risada, como se eu estivesse dando uma de Krusty, o palhaço de Os Simpsons. Depois de esperar todos voltarem ao normal, eu esperei, e esperei, e esperei, até que o técnico se ligou que eu estava falando sério e me disse que eu tentaria uma vaga no dia que nascer uma "terceira perna". O que fez com que todos voltassem a rir.
Aquilo me irritou muito mais do que imaginava. Essa diferença de chances, vagas, e tudo o mais entre meninas e meninos. Quem disse que mulher não pode fazer o que os homens fazem? Só por que tem essa "terceira perna" como o técnico falou? Vou mostrar que isso não quer dizer nada! Vou mostrar que meninas também podem fazer o que eles fazem. Fui para casa aquele dia já formulando formas e maneiras para colocar meu plano em prática, e aproveitaria a falta de orçamento para exames médicos com os participantes. Caso contrário, não daria certo.
Avisei minha mãe que iria cortar curto meu cabelo e que iria pintar, o que deixou ela desconfiada, mas depois ela achou que eu estava mudando, ficando mais parecida com a caçula. Ledo engano...
Usei uma parte da mesada e comprei algumas peças de roupa masculina, o que me espantei pelo valor inferior ao que gastava quando comprava roupas para mim. E guardei dentro de uma caixa de madeira que tinha no meu quarto dentro do guarda roupa. No quarto, tranquei a porta e aproveitando que minha irmã não voltaria para casa tão cedo, comecei a provar as roupas e dando um jeito para esconder os sinais que poderiam me colocar em maus lençóis.
Enrolei as faixas ao redor do busto um pouco apertado para disfarçar os seios, o que no momento fiquei feliz de não ter puxado minha mãe quanto minha irmã. Não que tivessem seios muito pequenos, mas eram do tamanho adequado: nem muito pequeno e nem muito grande. Coloquei a camisa de banda e uma calça. Mesmo com o calor que faz, não poderei usar bermudas, pois, o que não consegui na parte de cima, consegui na parte de baixo, e coloquei um boné para disfarçar um pouco mais e gostei do resultado. Se não ficasse muito perto tempo demais de outras pessoas, conseguiria colocar meu plano em prática.
Passei dia após dia fazendo exercícios escondido de todos, para ter um pouco mais de condicionamento físico. Semanas depois de ter feito o papel de palhaça na frente do time, fui até lá e tentei de novo a mesma tática, mas agora disfarçada. Depois de inventar uma história para lá de maluca, consegui um teste ali mesmo e dei o meu melhor. O que deixou todos impressionados. Consegui passar por quase todos os aparelhos, somente um não deu para terminar, por não ter tanta força quanto eles teriam para finalizar, mas o técnico me avisou que eu havia conseguido. E que era normal os novatos não conseguirem nem metade do que eu fiz, por não estarem acostumado com o treinamento.
Os meses foram passando e eu conseguia aprovação em quase todos os exercícios. Mas eu conseguia ver que eu estava na lista dos melhores. O que sempre dava problema era o momento depois dos treinos: o chuveiro.
Sempre enrolava, ou arranjava alguma desculpa para não precisar fazer isso na frente de todos. E ao contrário das garotas, eles levavam na zoação o fato de nunca terem me visto sem roupa, falavam que era vergonha da minha "ferramentinha". Homens! Dã.
Mas tinha algo acontecendo, e não era muito bom. Eu acho que estava ficando doente ou algo assim. Era estranho mas tinha sensações estranhas perto do capitão. Algumas vezes o técnico me colocou de lado para ver se voltava a ser homem (se ele soubesse...). Eu sentia algumas coisas estranhas, um mal-estar, as vezes me dava umas tremedeiras, sentia minhas bochechas corarem, e o meus estomago? Parecia até que tinham borbole.... Não! Não pode ser! Eu estava me apaixonando pelo capitão! Só o que me faltava mesmo. Logo agora que estávamos perto de saber quem iria ou não. Não. Eu não poderia sentir nada por ninguém. Não agora. Quem sabe mais para frente. Mas não agora!
Uma semana para terminar o treino, eu sempre dava um jeito de ficar o mais longe possível do capitão Liu. E só falava com ele quando era extremamente necessário. Não iria colocar tudo a perder, não depois de tudo que passei.
Minha mãe achou até que eu estava nas drogas. Com o treino, acabei criando alguns músculos, pequenos, mas estavam lá, como as atletas das olimpíadas. As desculpas que dava tanto para não entrar no chuveiro quanto para conseguir ir para os treinos estavam cada vez melhores, acho que quando falam que a prática leva a perfeição, estavam certos. O que me deixava cada vez pior. Não gostava de mentir para minha família, e nem para os meus amigos (se é que posso chamar assim).
No último dia de treino, eu resolvi dar ainda mais o meu melhor, só que não contava que seria em dupla. E adivinhem qual foi minha surpresa quando vi o capitão Li ao meu lado, do nada? Pior ainda, quando estava me preparando para descer a parede de escalada. Claro, que o susto foi tanto que empurrei ele e nos desequilibramos e ao tentar ajuda-lo, não consegui me segurar na corda direito.
O que me levou ao chão com tudo. Senti as piores dores já imaginadas, vi não só estrelas como as constelações completas, e a última coisa que lembro é da voz do capitão Liu me chamando.
Acordei no hospital com o braço direito e o peito todo enfaixado, e sentindo uma pontada levantei a mão e senti uma faixa enrolada ao redor da cabeça. Olhei ao redor e vi minha mãe conversando com alguém que estava de costa para mim, mas eu reconheceria em qualquer lugar. Tentei levantar chamando o capitão, mas senti uma dor muito forte do lado o que me fez fechar os olhos e respirar fundo. Ao abrir, minha mãe estava ao meu lado, preocupada e o capitão estava na porta, de braços cruzados e não parecia estar feliz de me ver bem. E ao prestar atenção ao que ele olhava, vi que a faixa que estava ao meu redor, não era a mesma que eu colocava todos os dias, mas uma nova e não tão apertada, o que evidenciava minha verdadeira face, claro que ele já devia saber, mas acho que ao ver, a ficha cairia mais rápido. Ele me olhou uma última vez e saiu sem dizer nada.
Minha recuperação foi razoável, mas os médicos falaram que meu novo condicionamento físico facilitou para a recuperação ser mais rápida do que o esperado. Minha mãe ficou sem falar comigo por um tempo, somente falava quando era preciso. Meu pai me deu uma bela bronca, mas depois de conversarmos, ele disse que entendia meu lado, pediu desculpas por ter sido um incentivador indireto para eu ser assim, e disse que independente do que eu escolher, ele estaria orgulhoso de mim. Minha irmã ficou horrorizada, não entendia como uma mulher fabulosa ao natural (palavras dela), iria querer se meter no meio de um bando de porcos desleixados como os garotos.
Perto de acabar meu período de repouso, alguns arrotos foram me visitar. Aquela zoação que estava acostumada a ter no meio deles, foi sendo reconquistada aos poucos e eles zoarão tanto por agora saberem o motivo de nunca ter ido para o chuveiro, alguns fingiram estarem tristes por não ter me feito entrar lá. Minha família ficou espantada por me ver entrando na onda daquele bando de grosseiros, mas aos poucos eles se acostumaram. Até o treinador apareceu dias depois, me dizendo que eu fui uma das melhores que já pisaram naquele lugar.
Mas o único que eu queria não apareceu. Nem deu notícias, e eu não queria perguntar para o pessoal. Mas volta e meia eles davam algumas informações sobre os dias de treino, sobre sua "paciência e simpatia" diária. E pediram para eu voltar e tentar tirar o capitão Liu de lá um pouco, antes que eles decidissem por ele.
Decidi aparecer. Era tudo ou nada, e como meu pai falou, o não eu já tinha. Eu teria que ir e saber se o "não" continuaria. Aos poucos fui me aproximando e escutava uma voz esbravejando, gritando ordens e não acreditei quando reconheci o dono da voz. Todos pararam e vieram até mim. O que o deixou ainda mais irado. Ordens foram dadas e todos foram se dissipando, ele fingia não me ver, mas eu sentia sua tensão. E eu fiz isso mais vezes, aparecia e volta e meia dava algumas ajudas para melhorar o desempenho deles, e não dava a menor atenção a tensão que estava criando ao nosso redor.
Um dia qualquer eu cheguei e todos eles me chamaram para treinar junto. Tentei escapar alegando que fazia tempo que não fazia mais nada depois da recuperação e que além de ser errado, por não fazer mais parte, o capitão não iria gostar. Vendo que não adiantaria dizer não, acabei aceitando, e me senti muito bem. O que não esperava era que naquele dia estaria lá não só o técnico, mas também alguém da FA. Que ficou interessado ao ver meu empenho e agilidade, mesmo depois de meses sem treino. Ao terminar o treino, senti alguém m observando e olhei na direção oposta à que estava. Nossos olhos se conectaram e ficaram assim por segundos, minutos, eu nem saberia dizer. Decidi sair dali, não conseguiria aguentar ficar no mesmo local que ele, não depois de da sensação que tive agora.
No mesmo dia o treinador me ligou informando que eu poderia fazer a prova para a FA, mas que teria que passar por um treinamento intensivo, já que estava muito enferrujada. A felicidade que senti ultrapassou qualquer outra, e me esqueci de qualquer outro sentimento ou pessoa. E como o técnico disse, o treinamento foi realmente intensivo. Mas eu dei o meu melhor, como sempre e estava quase tão boa quanto a época dos treinos.
Consegui minha vaga nas FA e com muito esforço, fazia parte da equipe de atletismos (agora de verdade), junto com todas as responsabilidades que qualquer um tem ao fazer parte das Foças Armadas. Depois de contar minha trajetória até chegar ali, e como todo lugar a zoação impera, recebi um apelido... Mulan do Ocidente.
Mas o que eu não esperava, muito menos imaginava aconteceu. Tempos depois, me especializei em outra área e já era oficial, e mais do que isso, eu era capitã, do meu capitão. Nenhum de nós acreditou nesta ironia que o destino resolveu nos pregar. Mas eu estava mais madura, e consegui colocar meu lado profissional acima de qualquer coisa do passado, mas internamente quem mandava era outra área...
O coração...
FIM
Final? Mas... E eles?
Use a sua imaginação...
Você decide.
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