3. Cadê o Boi Tolo? | Jung Hoseok
{todas as músicas citadas no capítulo estão na playlist "Muitos Carnavais - BTS" no meu perfil do Spotify @mclarah }
(arte por: poemarei)
3. Cadê o Boi Tolo?
Jung Hoseok
📍 Rio de Janeiro, RJ
Deve ser péssimo ser carioca e não gostar de carnaval. Afinal, são poucos os lugares que conseguem se esconder das folias, ou melhor, dos foliões que já nas primeiras horas do dia estão prontos para sitiar a Cidade Maravilhosa de festa e caos. Era domingo e eles estavam por todos os lados. Em qualquer rua apertadinha do Centro à Barra da Tijuca, do Leblon ao Grajaú, havia alguém, no caso, muitos 'alguéns', cobertos de glitter, fantasiados, de tule, de meia arrastão, chapéu panamá, ou todas as alternativas anteriores combinadas. Afinal, senso de estética e bom gosto se tornava tão elásticos, quanto dispensáveis nessa época. E no carnaval de rua do Rio tinha espaço para todos os tipos de foliões, dos mais extravagantes aos low profiles que fingiam que uma salpicada de glitter pelo rosto já era o suficiente para entrar no clima. No caso, não era preciso entrar, pois o clima estava por toda a cidade — de forma quase literal, às vezes irritantemente literal, nas ruas, no metrô e nas filas quilométricas dos supermercados. Esse clima, certamente, tirava o sono daqueles que preferiam tirar o feriado para efetivamente descansar. Felizmente, esse não era o caso de Rafael Hoseok Jung que, desde que se entendia por gente, já havia internalizado a euforia carnavalesca, e concordava em grau e gênero com Dorival Caymmi quando dizia que"quem não gosta de samba bom sujeito não é". E isso valia, especialmente, para o carnaval.
Hoseok vibrava pela Mangueira na Sapucaí da mesma forma que torcia para o Mengão domingo no Maraca e circulava pela cidade em tantos blocos quanto conseguisse agregar à agenda, pulando de bairro em bairro no carnaval. Para ele a festa só acaba quando termina. No caso, o segundo dia de carnaval estava só começando. Inclusive, bem mais cedo do que estava acostumado. Seus programas favoritos de carnaval, geralmente, incluíam rodar pela orla de Ipanema com seu grupo de amigos, aproveitando o que os bloquinhos da Zona Sul tinham para oferecer, e se pá rolaria de ir até Botafogo para o "Barbas" ou quem sabe dar uma esticadinha até a Pracinha do Pepê, na Barra. Assim tinham sido os anos anteriores e, mesmo que seus amigos tivessem proposto uma pequena mudança de circuito esse ano, também estava bom. Desde que estivesse garantida a curtição, para Hoseok estava tudo em casa.
Seus amigos decidiram que no domingo de carnaval eles iriam no tal do Boi Tolo. O bloco não fazia parte da lista de blocos "oficiais" divulgada pela prefeitura. Por outro lado, ele tinha consagrado sua fama no carnaval do último ano. Diziam que o bloco tinha saído do centro em um trajeto que durou quase 12 horas, interrompendo uma das maiores vias de trânsito rápido da cidade — o Aterro do Flamengo, além de fechar um túnel, sim um túnel, que liga os bairros de Botafogo e Copacabana. Boatos que o bloco só havia parado na praia do Leme por conta de uma temporal que inundou a cidade e, se não fosse por isso, era bem provável que o bloco só acabasse no próximo domingo no litoral do Espírito Santo.
Pelos feitos gloriosos, o Boi Tolo ganhou até menção em sketch do Porta dos Fundos e música de cantor da dita Nova MPB, de forma que todo jovem que pisou no carnaval carioca no próximo ano tinha que ir para o Boi Tolo. E era nessa onda que os amigos de Hoseok, e ele também, estavam doidos para surfar. O que eles ainda não sabiam é que existia sim uma diferença entre blocos oficiais e não-oficiais e que, definitivamente, não era a mesma coisa ir a um bloco parado ou seguir o "cordão", ainda mais de um bloco que parecia correr dos foliões. A verdade era que nem mesmo os foliões mais experientes estavam imunes de se perder algumas vezes, — antes, durante ou depois — do Boi Tolo.
E se Hoseok soubesse quanto tempo ele perderia nessa procura, ele nunca mais repetiria, nem como frase de incentivo ou força de expressão, que mais importante do que a chegada é o caminho. Mas ainda era cedo, dez da manhã, Hoseok acabou de deixar os amigos no meio da muvuca para fazer xixi no grande banheiro extra-oficial do carnaval carioca: a rua. Ele poderia até ser xingado ou multado, no caso, mas não há bexiga lotada de cerveja que aguente esperar pela disposição aleatória e raríssima dos banheiros químicos no centro do Rio de Janeiro. E foi ali mesmo, em uma das ruas próximas ao Largo da Carioca — nem tão próximo do bloco, para garantir sua privacidade, pois Hoseok sofria do que chamamos de complexo de bexiga tímida, que só funciona sem que haja muita movimentação por perto —, que Hoseok conseguiu urinar. E agora, aliviado e feliz, ele começaria todo o ciclo de encher novamente.
Cumprimentou animado o ambulante, chamando-o carinhosamente de meu rei, pois Hoseok havia aprendido com o pai que você deve tratar muito bem quem serve sua cerveja, e lançou logo 3 latinhas por 10, pois em breve encontraria os amigos e faria a devida distribuição das Antárticas. Na teoria, o bloco deveria estar logo ali. Na prática, porém, quando Hoseok se deu conta não havia nem sinal da batucada ou dos metais do bloco. Nem uma cornetinha entoando "A jardineira", nenhum trompete tocando "A luz de Tieta", nenhuma marchinha, nada. Estava ele no meio da Avenida Rio Branco, entre os trilhos do VLT, uns tantos vendedores ambulantes com seus isopores, e, é claro, foliões desgarrados procurando por seus respectivos blocos. Mas estava tudo bem, era só pegar o celular e mandar uma mensagem pro grupo do carnaval, ligar para o Gustavo, Felipe ou para a Mari e daria tudo certo.
Sem muito saber por qual direção ir, com uma mão segurando o telefone na orelha e a outra mão equilibrando as três latinhas contra o corpo, ele decidiu entrar por uma avenida transversal que, igual a todas as outras, estava fechada para carros. E, depois de umas três ligações sem sucesso e nenhuma resposta no grupo do Whatsapp, Hoseok decidiu tentar identificar perfis que poderiam também estar atrás do Boi Tolo. Foi quando ele tocou o braço de Carol.
Da mesma forma que ele, ela estava sozinha, parada na esquina da Avenida Graça Aranha com a Nilo Peçanha, mexendo no telefone. Ela com certeza estava indo para o Boi Tolo. Uma análise rápida do perfil garota, o seu cabelo cacheado bem curtinho, o body vermelho nem tão cavado, mas nem tão coberto, o corpo banhado nos mais diversos tons de purpurina, a meia arrastão, all star cano alto branco, o arquinho que mais parecia uma instalação de arte contemporânea com bolas coloridas e estrelas purpurinadas. Ela estava fantasiada de não-fantasia, era o conceito.
Hoseok não queria julgar, e não que ele pudesse, já que ele estava tão "fantasiado" quanto ela. Sua roupa se resumia a uma bermuda preta e uma camisa listrada de preto e branco que, se alguém perguntasse, ele poderia tentar dizer que aquilo era uma espécie de fantasia de presidiário, talvez? De qualquer forma, era quase certo que ela fazia parte do grupinho de pseudo-alternativos que bebiam durante a semana longnecks na Praça São Salvador e no carnaval fugiam do circuito "mainstream" para os blocos não-oficiais do centro da cidade. Nada contra, é claro, ele só precisava de uma informação básica e ele tinha certeza de que ela era a pessoa certa para perguntar.
— Oi, você tá indo pro Boi Tolo? — a garota desviou os olhos do celular para ele que exibia um sorriso simpático amplo. Em resposta, ela assentiu com a cabeça. — Você sabe onde tá? Acho que me perdi...
— Ah, normal... o Boi Tolo é foda. — ela foi categórica e os dois acabaram rindo discretamente com a sua fala. Em seguida, a garota guardou o celular na pochete prateada que completava a sua "fantasia". — Uma amiga disse que eles estavam indo em direção àquela praça atrás do Tribunal, sabe? — Hoseok não sabia, mas assentiu com a cabeça, e decidiu que seria mais seguro seguir a garota que parecia bem mais ambientada que ele nessa coisa de carnaval "alternativo" (entre muitas aspas), Boi Tolo e afins.
— Po, eu parei para comprar cerveja e perdi ele de vista, acredita? Inclusive... Você quer uma? Eu comprei pro pessoal, mas acho que vai acabar esquentando até a gente chegar lá... — ele disse bem humorado e ela o olhou um pouco em dúvida se aceitaria, mas seus ouvidos não a enganaram com todos os X's. Diferente dela, o garoto era carioca da gema. Ela achou o sotaque bonitinho, não que já não estivesse acostumada depois de todos esses anos morando no Rio, mas não era só o sotaque, era o sorriso amplo com dentes absurdamente alinhados e brilhantes, o corpo esguio e aquele desenho bonito dos olhos que indicava sua descendência asiática.
Carol aceitou a cerveja, mas somente porque a latinha estava fechada. Afinal, ela não tinha nascido ontem e já estava esperta pelos anos de Rio de Janeiro, não aceitaria uma bebida de um estranho, mesmo que esse estranho fosse uma gracinha. Depois de agradecer, ela estendeu a latinha para um brinde antes dar uma golada generosa, pois era bom aproveitar enquanto o calor que rachava na cabeça dos dois não esquentava a cerveja. Pois, se havia um tema perfeito para o carnaval carioca era "Alala-ô-ô, mas que calor", fazendo com que Hoseok não raramente duvidasse da localização geográfica do Rio de Janeiro, imaginando se a cidade não era, na verdade, uma parte desgarrada do Deserto do Saara.
Enquanto eles desciam a avenida larga, Hoseok perguntou despretensiosamente se ele podia acompanhá-la, como se já não o estivesse fazendo, e ela disse que tudo bem. Afinal, ele era só mais um filho desgarrado do Boi Tolo.
No caminho que, em tese, deveria levá-los ao bloco, Carol encontrou o seu grupo de amigas e a presença de Hoseok não passou despercebida. Como já era costume, todas ficaram olhando curiosas esperando que ela explicasse quem era. Foi quando ela notou que eles sequer tinham se apresentado. Ele teve que completá-la, dizendo com um sorriso no rosto que seu nome era Rafael. Hoseok não ia explicar que ele tinha dois nomes, que os pais o chamavam por seu nome coreano, as pessoas no trabalho o conheciam por Rafael e os amigos o chamavam de Hobi. Por ora, Rafael já estava bom. Afinal, em breve, ele encontraria os amigos no Boi Tolo e se despediria do grupinho.
— Amiga, ele é uma graça... Onde você encontrou? — uma das meninas pergunta analisando de longe o garoto que havia se afastado da rodinha para comprar mais uma cerveja, enquanto as demais procuravam no instagram perfis confiáveis para indicar o paradeiro do bloco. Inclusive, não era incomum postagens do gênero "Onde está o Boi Tolo?" para que as pessoas comentassem o último paradeiro do bloco, ajudando as almas perdidas.
— Na rua, acredita? — ela revirou os olhos, ignorando as insinuações, ainda que tivesse interrompido a sua busca pelo bloco para dar uma olhadinha no garoto que sorria simpático enquanto batia um papo com o vendedor ambulante. — Porra, o último comentário é de vinte minutos atrás! Essas horas o Boi Tolo tá em Niterói já. Mas, de qualquer forma, vamos em direção às Barcas.
Hoseok voltou bem animado, oferecendo cerveja para as meninas, sem saber, porém, que elas estavam tão perdidas quanto ele, que era um boi tolo de primeira viagem. Carol aceitou prometendo que pagaria a próxima rodada para Rafael e eles desceram a Avenida atrás do bloco. O sorriso de Hoseok dobrou quando eles passaram pela Praça XV e ele jurou que tinha encontrado o Boi Tolo e não conseguiu se conter, dançando animado com a proximidade da música.
Uma das meninas sugeriu que eles parassem para ir no banheiro, já que era uma raridade encontrá-los pelo centro, ainda mais sem fila, deixando apenas Carol e Hoseok curtindo o samba que vinha do palco no meio da praça lotada. A garota esticou os olhos focando nos pés de Rafael se movendo para concluir que ele, de fato, sabia sambar, o que era impressionante. Apesar do Rio ser a "capital do samba", Carol descobriu que poucos cariocas realmente sabiam sambar, e geralmente se limitavam a balançar o corpo e girar, em uma espécie de samba-fake, mas Rafael não, ele sambava com os pés, exibindo um sorriso fácil, enquanto mexia no telefone, tentando falar com os amigos. Hoseok estava animado e jurava que, finalmente, tinha encontrado o Boi Tolo. Ele, porém, só notou que estava no bloco "errado" quando as meninas voltaram, chamando os dois para "ir".
— Ir onde? — apertou os olhos, confuso, encarando Carol. — Mas a gente não tá no Boi Tolo?
— Ah não, esse aqui é o Boitatá. — a garota esclareceu, segurando o riso o máximo que conseguiu, pois viu a expressão claramente desapontada no rosto de Rafael, ainda mais porque Teresa Cristina havia acabado de subir no palco e estava prestes a cantar um samba enredo da Mangueira. — Os seus amigos estão aqui, então? Conseguiu falar com eles?
O garoto negou com a cabeça e talvez até ficasse puto, isso caso ele não estivesse tão ocupado apreciando a obra prima que era o samba enredo da Mangueira de 1994. E poderíamos dizer que Hoseok, de certa forma, era um filho do carnaval. Pois quando ele nasceu, em 18 de fevereiro de 1994, a Mangueira passava pela Sapucaí no Desfile das Campeãs. E, a depender de quando o carnaval caísse, ele poderia ter a sorte de comemorar o aniversário no meio da folia. No caso, esse ano o aniversário dele caiu na semana anterior e, aparentemente, ele não estava com tanta sorte.
— Eu achei que a gente tivesse encontrado o Boi Tolo. — comentou sem graça, coçando a nuca, enquanto seguia tentando entrar em contato com os amigos, ainda sem sucesso.
— Sabe que o Boi Tolo meio que surgiu do Boitatá? — Carol começou a explicar, despertando o interesse do garoto. — Há alguns anos o Boitatá era um cordão, não era parado aqui na Praça XV, sabe. Aí em um dos desfiles, uma parte de banda se desencontrou do bloco, aí esses perdidos se autodenominam Boi Tolo.
Hoseok soltou um "maneiro" sincero, acompanhado dos olhos arregalados, realmente interessado. E enquanto pensava na história, concluiu que agora eles eram o "boi tolo" da vez, perdidos do bloco, vagando pelo centro da cidade debaixo do sol infernal de fevereiro. Hoseok, porém, guardou sua sacada para si, e decidiu aceitar a cerveja que Carol havia acabado de comprar, trocando algumas palavras com ela, enquanto seguiam para as Barcas. Mais uma vez, porém, o bloco tinha evaporado mais rápido que dinheiro na mão de malandro, e Hoseok estava sentindo o álcool começando a bater, acreditando piamente que, na verdade, o Boi Tolo de mais cedo, não passava de uma miragem.
— Porra, esse bloco tá correndo ou o que? — Carol parou no meio da praça irritada, puta mesmo, e Hoseok se conteve, achando graça do jeito da moça. — Alguém olha aí nos stories do Segue o Bloco, não é possível que não tenha nada...
As amigas não deram muita bola para a irritação da garota, mas pegaram os celulares para conferir, enquanto procuravam por uma sombra na praça.
— Caralho, e teus amigos? Sumiram, hein! — agora o alvo da vez era Hoseok que também mexia no celular, mas se virou para encarar a garota, vulgo 'a estressadinha.' — E aí, Rafael, você já veio no Boi Tolo? — ele negou com a cabeça, se resumindo a dar um gole na cerveja. — Ah, primeira vez, que coisa hein...— ela quis dizer "que merda", mas se segurou, Carol estava visivelmente estressada. — Sabe que é super normal perder o Boi Tolo, esse bloco não desfila, ele se esconde...
— Tô notando... — ele disse descontraído, pois sabia que não adiantava muito se irritar. Não é como se tudo estivesse perdido, ele só estava há quase duas horas atrás do bloco, coisa pouca. Afinal, o que são duas horas para um bloco que dura quase dez horas não é mesmo? O melhor a fazer, no momento, era beber e não perder a cabeça. — Carol, vou comprar mais uma, tá afim?
Ele balançou a latinha vazia e em seguida amassou ela no chão, enquanto a garota o acompanhava com o olhar, tentando sem sucesso ser discreta. Tinha alguma coisa nele que a incomodava e só reparando bem, é que ela notou que Rafael tinha um defeito incorrigível, era carioca demais. E não só o sotaque, era o jeitinho marrento, a pulseirinha de corrente no braço, a correntinha fina enfeitando o pescoço por dentro da camisa listrada 100% algodão da Reserva, o jeito de falar com o ambulante como se ele comprasse todo dia na mesma barraquinha, e, da mesma forma, o jeito de falar com ela como se eles já fossem super amigos.
E a "irritação" dela só piorou quando eles se aproximaram de uma barraquinha com uma caixinha de som que juntou a galera dos "sem-bloco", provavelmente outros filhos desgarrados do Boi Tolo, e Hoseok mostrou que além de sambar, ele sabia bem o que era uma sarrada. Felizmente, a irritação de Carol foi diluída com uma cerveja gelada e um bom funk, rebolando ao som de "Ohhh Juliana" no meio das amigas e de Rafael. Se por um lado Hoseok era cheio de gingado e ele sabia, por isso que exibia um sorriso convencido enquanto rebolava esticando os fios escuros, Carol também não ficava para trás. E alguns dos vários sorrisos que Hoseok exibiu, certamente, mesclavam o seu jeito convencido com a satisfação em ver a garota rebolando com a mão na cintura.
E como se o bloco estivesse apenas esperando eles se distraírem para fazer sua mágica, um som de percussão se tornou audível ao fundo, fazendo com que eles só se abastecem de mais cerveja para ir literalmente correndo em direção ao bloco. Após desviarem de barraquinhas e foliões, finalmente, a grandiosidade do Boi Tolo se exibiu à frente, tomando toda a Praça Marechal Âncora e a Avenida que a cercava. O bloco era enorme, Hoseok nunca tinha visto nada como aquilo, e ele não estava se referindo a quantidade de pessoas, mas à energia que emanava dali. Ele só tinha presenciado algo parecido na Sapucaí, mas era totalmente diferente. Ali era tudo muito, muitos músicos espalhados de forma caótica dentro de um espaço criado por um cordão humano feito por pessoas de mãos dadas que separavam a multidão dos músicos; não havia suporte de nenhuma caixa de som sequer; além de uma quantidade sem fim de dançarinos de pernas de pau entre o pessoal, enquanto, no fundo, a banda de fanfarra entoava Aurora, clássica marchinha de carnaval, ecoando entre as vozes dos foliões.
Hoseok por alguns minutos esqueceu dos amigos perdidos e só acordou do transe provocado pelo bloco, quando uma das amigas de Carol ofereceu purpurina e ele aceitou de bom grado, deixando que ela espalhasse por seu rosto e braços.
— Vamos tentar nos aproximar do bloco? — outra amiga da Carol perguntou. Hoseok duvidava seriamente que aquela seria uma boa ideia, ainda que sua maior preocupação fosse como encontrar seus amigos naquele mar de gente, ou se realmente encontraria. E sem saber o que fazer, Hoseok seguiu as meninas que desbravaram a multidão para chegar mais perto do bloco.
No caminho, o bloco começou a tocar "Índio quer apito" e ele ainda não tinha entendido a euforia das meninas com a marchinha, até que todas as pessoas que estavam no bloco, todas mesmo, começaram gradativamente a baixar em uma espécie de aquecimento ou preparação. Hoseok não havia entendido, mas só obedeceu ao comando de Carol que, do seu lado, puxou o seu braço e agora agachada se apoiava no seu ombro. Tudo fez sentido quando a música voltou a crescer, tomando potência máxima e todo mundo levantou ao mesmo tempo pulando e dançando. O coração de Hoseok parecia estar prestes a sair pela boca de tão eufórico, e ele só tinha se sentido assim antes quando a bateria da Mangueira passava na frente da arquibancada da Sapucaí, sacudindo tudo nele. A sensação de tantas pessoas felizes e vibrando no mesmo lugar era inexplicável, e era por esse mistério que Hoseok saía de casa no carnaval.
Por um tempo, ele até esqueceu que procurava os amigos, dançando as marchinhas como se a multidão toda fosse um grupo só. Hoseok nem mesmo sentia falta de qualquer companhia, até sentir Carol puxando-o pelo braço, convidando-o para tomar uma cachaça de jambu. A forma que ela se afastou das amigas de forma quase irresponsável, mas apertou forte a mão de Hoseok deu um palpite para o garoto de que, talvez, ela não se importaria em se perder, mas não dele. Decidiu, porém, ignorar seus pensamentos quando eles chegaram, finalmente, à plaquinha que anunciava a tal cachaça. Ele ficou um pouco reticente com a a ideia de Carol, pois sabia que era meio fraco para esse tipo de bebida. A empolgação da garota, porém, o convenceu e, quando notou, sua língua já estava dormente na boca e Carol fazia uma careta pelo gosto da bebida e sorria ao mesmo tempo, exibindo covinhas iluminadas pelo sol do meio-dia e pela purpurina.
Hoseok não tinha notado, mas, na verdade, eles estavam há poucos metros das amigas de Carol e talvez ela realmente não tivesse considerado se perder com ele, nem em sentido literal, nem metafórico. E agora a garota já conversava animada com um moço fantasiado de pirata que estava em um grupinho ao lado das amigas. Hoseok, então, decidiu comprar uma água na barraquinha ao lado e tentar mais uma vez conferir o celular. E quando tirou o aparelho da pochete, se surpreendeu ao encontrar algumas chamadas perdidas e mensagens no grupo dos amigos.
— Onde vocês estão seus putos? — Hoseok berrou, tentando ser ouvido no meio da barulheira.
— No bloco, seu filho da puta. Você foi mijar e sumiu! – Felipe gritou de volta, mas acabou deixando uma risada escapar, afinal, era carnaval. Esse tipo de coisa era tão normal quanto cerveja e purpurina.
— Mas onde? Eu to aqui... — ele olhou ao seu redor, tentando achar um ponto de referência. — Eu to do lado do boneco do E.T. e de um estandarte de sacolé... Sei lá porra, vai ser foda se encontrar aqui...
— Tem duzentas plaquinhas de sacolé aqui... — o amigo riu bêbado e logo a namorada de Felipe tomou o telefone, assumindo a comunicação.
— Hobi, onde você tá? A gente tá na Praça XV, perto do Arco do Teles, é fácil de achar...
— Praça XV? Vocês estão no Boi Tolo? — ele perguntou confuso.
— Claro que a gente tá... — a garota disse, não tão certa quanto gostaria, e Hoseok passou a mão pelo rosto, só para sair toda melada de purpurina e suor.
— Tem um estandarte azul escrito Boi Tolo? — ele perguntou, encarando o estandarte que estava no meio do cordão, dançando ao ritmo, agora, da Banda Eva, um hit "intruso" baiano na sequência de marchinhas.
— Porra, acho que não... Daqui não dá pra ver.
— Mari, vocês estão no Boitatá e não no Boi Tolo... Puta que pariu hein... — Hoseok riu, um pouco puto, é verdade, mas preferia rir da situação.
— Como eu ia saber a diferença, Boi Tolo, Boitatá... — Mari disse bem humorada e era um fato. Se nem Carol e as amigas que já eram fiéis ao Boi Tolo conseguiram encontrar o bloco de cara, imagine os amigos de Hoseok.
— Suave, tô indo aí encontrar vocês... Daí a gente decide se quer voltar pro Boi Tolo, pelo que eu entendi, vai até de noite... A gente pode até almoçar e pegar o bloco depois.
Hoseok encerrou a ligação e voltou para a rodinha das amigas de Carol com o intuito de se despedir das meninas. O que ele não sabia é que, enquanto ele falava no telefone, Carol o encarava e conversava com a amiga sobre ele.
— Não tá super na cara? — a amiga assentiu com a cabeça rindo. — Achei que, sei lá, ele fosse chegar em mim quando a gente tava comprando a cachaça...
— Amiga, ele é aquariano, lerdo toda vida... — Carol não entendeu muito bem da onde vinha a informação que fazia a amiga rir bem humorada, por isso franziu as sobrancelhas em questionamento. — Ele me disse que o aniversário dele foi na semana passada, quando a gente tava falando sobre o samba da Mangueira de 1994, por isso que eu sei ué... Não me olha assim, o moço sabe bastante sobre escolas de samba.
— De qualquer forma, ele não deve estar afim... Faz parte. — Carol deu de ombros, simulando que se importava com a informação sobre Rafael ser um "conhecedor" de sambas enredo, ignorando ainda o fato dela querer saber outras coisas sobre ele, e decidiu fitar as pessoas à sua volta. Era carnaval e havia muitos peixes no mar para Carol mergulhar junto, não precisava ficar encanada só porque Rafael não tinha dado bola para ela.
E falando no moço, lá estava o próprio se aproximando das garotas, com um sorriso amplo bonito, desafiando a última conclusão de Carol sobre todos os outros peixes, já que ela estava fixada nele. Se Hoseok era um aquariano lerdo, segundo as amigas, Carol era uma ariana bem determinada e mesmo que tivesse expressado que "faz parte", no fundo, ela ainda não havia desistido. E, quem sabe, talvez Eva poderia ser uma boa deixa, já que a multidão ia a loucura com o hino baiano. Aquele era um fato realmente curioso sobre o carnaval carioca, pois eles enchiam a boca pra dizer que o carnaval do Rio era melhor do que o de Salvador, mas não se seguravam quando o primeiro axé começava a tocar.
Mas Hoseok não voltou para dançar, ele segurava uma garrafinha de água na mão e avisou para Carol que tinha finalmente encontrado os amigos. A garota fingiu empolgação com a notícia, quando na verdade estava totalmente desapontada.
— Mas Carol, me passa teu telefone... — ele pegou o celular na pochete vermelha que estava atravessada no corpo. — A gente deve almoçar por agora, mas eu quero voltar pro bloco, você disse que a melhor parte é a do túnel, né? — ela assentiu com a cabeça, digitando o seu número no celular sem muita energia, e forçou um sorriso ao se despedir. — Tá, então eu tô indo... Valeu.
Eles trocaram um abraço rápido, o mesmo que Hoseok deixou nas amigas de Carol, e acenou antes de se distanciar, vendo o sorriso da garota ficar pequeno, enquanto o bloco crescia ao som de "A luz de Tiêta". A batucada do Boi Tolo se confundiu com alguma coisa que Hoseok sentia dentro do peito e ele começou a ter a impressão de que tinha dado muito mole ao deixar a garota para trás. A cada passa dado, ele tentava ler os sinais trocados de Carol no seu sorriso, nas mãos pequenas apertando as suas, na cachaça de jambu que deixou sua língua dormente, no rebolado dela, na alegria autêntica quando pulava no meio da multidão se abanando e sorrindo, tudo ao mesmo tempo.
E, de repente, enquanto se afastava no sentido contrário, ele pensou na quantidade de pessoas que havia no Boi Tolo, no Rio de Janeiro, centenas, milhares de pessoas, cada uma um universo particular, com expectativas e planos para o carnaval. Os seus pensamentos, porém, não o levaram para a imensidão de alternativas à Carol, mas sim sobre as chances deles terem se esbarrado em outras circunstâncias. No caminho para o trabalho, no metrô, na praia, no Jardim Botânico, na Cinelândia pegando o VLT em um dia comum. A cidade era enorme, e se era fácil se perder no Boi Tolo, quanto tempo eles não levariam para tornar a se encontrar pelas ruas do Rio? Talvez nunca se encontrassem.
O último pensamento paralisou os pés de Hoseok e talvez só Vinícius de Moraes tenha, de fato, entendido quando escreveu sobre a arte do encontro e como estamos tão sujeitos aos desencontros da vida. E se Hoseok tinha encontrado o Boi Tolo, por que ele precisava ir embora agora?
Quando se deu conta, ele já corria de volta todo o trajeto, esbarrando em um tanto de pessoas até encontrar de novo a mesma garota que Hoseok tinha julgado mais cedo como pseudo-alterna, o seu cabelo cacheado bem curtinho, a sua fantasia de não-fantasia, segurando a sua cerveja, balançando o corpo devagar.
— Rafa- — ao notar a presença do garoto, Carol arregalou os olhos surpresa, mas não teve tempo de terminar a fala. Hoseok já tinha colado os seus lábios nos dela, fazendo com que o coração da garota parasse por um instante ao encontro inusitado, mas desejado. A latinha de cerveja que ela segurava foi de encontro ao chão, fazendo chover Antártica para tudo quanto é lado, dando liberdade para que ela cercasse o corpo dele com as suas mãos, como se quisesse ter certeza de que ele estava mesmo ali. E o movimento das línguas, um pouco apressado e ansioso de início, deu espaço para uma dança que casava com o ritmo do afoxé, tocado pelo bloco.
O bloco em coro entoava "Eta, eta, eta, eta, é a lua, é o sol é a luz de Tieta, eta, eta, eta...", mas entre eles, tudo ficou em silêncio, pois haviam acabado de compreender o valor do encontro e do caminho, na trajetória dos amantes. Sob o sol de quarenta graus, ao som do Boi Tolo, Hoseok e Carol estavam presenciando o melhor dos achados e perdidos do carnaval carioca, entre abraços apertados e beijos demorados que terminavam e começavam em sorrisos.
Carol e Hoseok não se perderam mais naquele carnaval. Decidiram almoçar juntos no Amarelinho da Cinelândia, uma mesa grande juntando os grupos de amigos, e pegar o Boi Tolo no meio da tarde quando o bloco já fazia festa dentro dos jardins do Museu de Arte Moderna (MAM). Quando, finalmente, o bloco tomou o Aterro do Flamengo, em direção ao túnel que ligava Botafogo a Copacabana, Carol segurou firme na mão de Hobi. E antes que entrassem no túnel, onde o som dos instrumentos e vozes era amplificado pela acústica, ele sentiu um aperto do peito, confundindo com ansiedade e empolgação aquilo que todos os poetas nomearam, mas nunca souberam definir. Ainda era cedo para queixas sobre essas coisas que metem medo pela sua grandeza, e Hoseok não estava falando do Boi Tolo.
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Notas:
Cidade Maravilhosa, referência à marchinha de carnaval de mesmo nome.
"quem não gosta de samba bom sujeito não é", trecho da música Samba da minha terra, Dorival Caymmi.
Estação Primeira da Mangueira: escola de samba carioca fundada em 1928.
Sambódromo da Marquês de Sapucaí: local onde acontecem os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro.
"Barbas": bloco de carnaval que, geralmente, sai na segunda-feira no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro.
Música "Boi tolo", Julio Secchin.
VLT - Veículo Leve sobre Trilhos. É um trem elétrico (tipo um bondinho) que atravessa uma das avenidas principais do centro do Rio, a Av. Rio Branco.
Teresa Cristina - cantora brasileira de samba e mpb.
Samba enredo da Mangueira de 1994: "Atrás da Verde e Rosa só não vai quem já morreu". Apesar de ser um dos sambas mais famosos da Mangueira, em 1994 ela ficou em 11o lugar. A campeã foi a escola Imperatriz Leopoldinense. Ou seja, a menção do Desfile das Campeãs é fictícia, mas é verdade que 18 de fevereiro de 1994 caiu numa sexta-feira pós-carnaval.
"vida é arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida", Vinícius de Moraes em Samba da Bênção.
Luz de Tieta, música de Caetano Veloso.
Referência à música Queixa do Caetano Veloso: "Dessa coisa que mete medo pela sua grandeza não sou o único culpado, disso eu tenho a certeza".
Obs: todas as referências a lugares e blocos (Boi Tolo e Boitatá) são reais, ficam no Rio de Janeiro e são lugares por onde o Boi Tolo, realmente, passou.
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Hello amores,
esse é o meu presentinho para o queridíssimo Rafael, quero dizer, Hoseok rs. Espero que tenham curtido passear pelo carnaval do Rio comigo... nossa, eu estou morrendo de saudade! Ansiosa pra saber o que acharam!
Aguardo os votos e comentários! ✨
Pelo planejamento o próximo será com o Jimin... alguma palpite para onde vamos?
Beijos da Maria
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