♪Perfeito Arranjo
"O que você me disse não passa de um romance, um romance artístico, se preferir, e o pior é que, quando se vive um romance, de qualquer espécie que seja, acaba-se completamente sem romantismo."
— Oscar Wilde.
♪♪♪
Acordei mais tarde do que gostaria.
Tomei um banho para tirar todo o sono que ainda restara e fui para a cozinha. Coloquei uma panela no fogo e a enchi de água, na esperança de, milagrosamente, fazer um bom café.
Coisa que não consegui, porém o bebi mesmo assim.
Depois de terminar meu péssimo café, sentei-me ao piano e tirei as partituras...
As partituras de Edward...
Suspirei, não queria pensar nele, mas o universo parecia conspirar para que o fizesse.
Perguntava-me como o escritor estaria. A decisão que tivera ontem a noite não era como ele agia, pelo menos, não mais. Era como se tivéssemos voltado no tempo e eu insistia em ficar ao seu lado.
Talvez as coisas não tenham mudado tanto assim. Talvez ele não tenha mudado tanto quanto pensei que tivesse.
Bati a mão nas teclas do piano, o ruído fazendo-me mudar de foco, e comecei a praticar.
Fiquei horas tocando, sem parar, a música melancólica era a única coisa que tinha na cabeça.
Precisava praticar.
Precisava que tudo estivesse certo na competição.
Sem falhas. Perfeito.
Precisava provar que conseguia ganhar algo sozinha.
Que eu era capaz.
Queria calar a boca de todos que duvidaram das minhas capacidades, queria vê-los me aplaudir e que não conseguissem negar meu talento, minha perfeição.
Talvez fosse algo impossível, talvez eu apenas quisesse me focar em uma coisa que era capaz de fazer.
Talvez eu só quisesse escapar de Edward.
Almocei em casa, aproveitando minha própria companhia e pensando, desta vez não em Edward, mas em meus pais. A saudade apertava meu peito, principalmente durante o natal.
Minha vontade era de aparecer subitamente na casa dos Scherzo, porém não sabia se tinha coragem para bater na porta.
Nenhum pai gosta de ficar longe dos filhos.
Quanto mais vezes repetia as palavras de Abelardo, mais minha esperança crescia.
E então, decidi fazer o que julgava impossível.
Fiquei um tempo parada em frente à casa de meus pais, estava intimidadora como nunca antes. Por um momento pensei em ir embora, mas não tive tempo de decidir, pois uma voz que não ouvia há tanto tempo me chamou a atenção.
— Lyra? — A senhora Isabel parecia a mesma de sempre, apenas com algumas rugas a mais, mas mantinha o mesmo olhar bondoso que eu lembrava com carinho. Carregava uma cesta cheia de rosas, provavelmente para substituir as que murchavam dentro da casa. — É você?
— Boa tarde, Isabel. — Sorri educadamente, minha voz soava uma mistura de formalidade e melancolia. — Presumo que meus pais estejam em casa?
— Estão, senhorita. Quer que eu vá avisá-los?
— Não, obrigada. Prefiro fazer isso sozinha, já que estou aqui.
— Como desejar. — Isabel entrou pela porta dos fundos.
Respirei fundo e toquei a campainha, não demorou muito para uma empregada abrir a porta e, quando o fez, exclamou em surpresa.
— Senhores... — Ela se virou para as pessoas que estavam na sala de estar. — Há uma pessoa na porta...
— Quem poderia ser em um dia como este? — Era a voz de minha mãe.
Ouvi passos se aproximando e tentei me preparar psicologicamente para o que poderia acontecer, mas não tive tempo.
— Lyra...? — Adelaide me encarou, um pouco atônita.
— Olá, mãe — respondi, sem saber ao certo o que dizer.
Dominik andou até a entrada e parou, a expressão em seu rosto idêntica a de sua esposa.
— Ágata, faça-nos um chá, por favor — disse meu pai. A empregada saiu rapidamente.
Fomos até a sala de estar em absoluto silêncio. Não sei o que mais eu esperava que acontecesse, só sei que meus ombros tensos temiam por mim.
A sala não havia mudado desde que fui embora, com exceção do piano que estava comigo.
Minha mãe se sentou em uma poltrona e meu pai ficara em pé ao seu lado, enquanto eu não sabia o que fazer.
— Poderia ter nos mandado ao menos uma carta ao longo desses anos. — Meu pai foi o primeiro a dizer algo, não conseguia decifrar seu tom de voz ou seu olhar.
— Você sequer se despediu — continuou Adelaide.
— Pediu para aquela criança ingrata fazer isso no seu lugar. — Dominik andava de um lado para o outro, massageando as têmporas. — O que estava pensando?!
— Desculpe. — Finalmente criei coragem de falar, mas acabou soando mais um sussurro. Encarei o chão, sem coragem de ver o olhar que os dois tinham.
— Não estamos bravos, querida. — A voz de minha mãe era dócil. — Mas gostaríamos que tivesse nos contado.
— Eu iria contar, mas... — comecei. — Mas James me impediu. — Finalmente olhei para meus pais. — Ele me fez crer que vocês não aceitariam a escolha que fiz...
— Nós nunca faríamos isso — interrompeu meu pai, mais calmo. — Deveria ter conversado conosco, teríamos te ajudado a estudar música.
— Eu... — Não encontrei palavras.
— Está tudo bem — respondeu Adelaide. — Estamos felizes que você decidiu nos visitar, mesmo depois de tanto tempo.
— Uma pessoa me fez perceber que precisava resolver as coisas. — Sorri.
Isabel apareceu segurando um jogo de chá, tinha um sorriso no rosto enquanto nos servia.
— Vejo que estão se entendendo — comentou.
— Já estava na hora, não acha? — falei.
— De fato — Dominik concordou.
Isabel saiu logo em seguida.
— O que você andou fazendo durante todo esse tempo? — perguntou meu pai após beber um pouco de chá.
Contei tudo que acontecera durante esse tempo. Parecia que, quanto mais conversávamos, mais as coisas melhoravam e eu relaxava.
Eles ouviram minhas histórias durante toda a tarde, porém uma empregada, a mesma que me atendera na porta, entrou na sala e disse:
— Está na hora de se arrumarem para o jantar, senhores.
— Já vamos, Ágata. Obrigada — respondeu Adelaide.
— Não vou mantê-los aqui por mais tempo — falei ao me levantar. — Sei que precisam ir.
— Você pode vir também, se quiser — disse meu pai.
— Vou recusar o convite. — Sorri educadamente.
— Outra vez, quem sabe? — comentou minha mãe, que também se levantou.
— Espero que venha nos visitar logo. — Dominik sorriu e, ao passar por mim, tocou meu ombro.
Vindo de meu pai, isso era o mais próximo de um abraço que teria. Afinal, ele não era muito do tipo afetuoso.
— Com certeza irei. — Retribui o sorriso.
Minha mãe me abraçou e nos despedimos.
Quando sai, demorei um pouco para processar tudo que acontecera.
Ainda parecia surreal que tinha dado tudo certo e que minha relação com meus pais estava melhor. Sabia que não voltaria ao normal, mas gostaria de chegar o mais próximo possível.
Decidi fazer uma caminhada pelo bairro, o céu estava pintado das cores do crepúsculo e ainda havia resquícios do sol.
Continuei andando, mas parei ao ver a casa de Edward. As luzes do térreo estavam acesas, mas nenhuma luz saia do andar de cima. Um carro saiu da garagem em uma velocidade absurda, mas abruptamente parou e deu ré até parar ao meu lado.
— Lyra?! — exclamou Edward. — O que você...
— O que aconteceu? — o interrompi. — Para onde vai com tanta pressa?
Havia algo estranho nele, uma urgência em tudo, seus olhos corriam de um lado para outro, seus dedos batiam no volante.
— Hospital. — O escritor sequer parecia raciocinar. — Elisa, ela... — Ele demorou a organizar uma frase, que sequer conseguiu terminar.
Entrei no carro, já não me importando com o que acontecera ontem entre nós dois. Estava preocupada com Elisa, mesmo não a conhecendo há muito tempo.
Edward acelerou o carro e correu para o hospital, no caminho deve ter recebido meia dúzia de multas.
— Edward tome cuidado... — falei, mas não mudou nada. Ele não diminuiu a velocidade.
Assim que chegamos ao hospital, Edward foi em direção a Edgar, que estava sentado na sala de espera, olhava para baixo e suas mãos pareciam tremer.
— O que aconteceu? — perguntou o escritor ao sentar ao lado de seu colega.
— Ela piorou — Edgar demorou a responder. — Ela não vai... — Ele deu uma pausa, incapaz de aceitar a ideia. — Ela não vai aguentar...
— Os pais dela estão lá dentro — continuou.
Um silêncio se instalou entre nós. Eu era incapaz de dizer qualquer coisa, pois sabia que nada ajudaria.
Segurei a mão de Edward, mas ele estava tão preso em pensamentos que sequer percebeu.
Os pais de Elisa apareceram na sala, com lágrimas nos olhos.
— Edward, ela quer te ver — disse Amélia ao se sentar.
O escritor soltou minha mão com delicadeza e foi para a direção que o casal saíra.
— Edgar, você ficou esse tempo todo aqui e não comeu ou bebeu nada... — Amélia o olhou com compaixão.
— Não estou com fome — respondeu.
Olhei para ele, preocupada.
— Tem certeza? — perguntei. — Se quiser, vou comprar algo para você.
— Não precisa, Lyra. Não estou com fome — disse. Em seguida, olhou para mim e Amélia. — Mas obrigado.
— Mesmo assim, vou comprar algo — falei. — Você pode não estar com fome, mas seu corpo precisa de comida.
— Que se dane meu corpo... — murmurou.
— Edgar. — Diminui meu tom de voz e o encarei. — Eu sei que você está passando por um momento difícil, mas não pode negligenciar sua saúde. — Levantei. — E você não vai me fazer mudar de ideia, então apenas aceite minha gentileza.
Sai do hospital. Na mesma rua havia uma padaria. Encontraria algo para comerem.
Comprei chá para os quatro e, mesmo sabendo que Edgar não comeria nada, comprei algumas frutas.
Quando voltei, Edgar não estava mais lá, em seu lugar, havia um escritor que observava atentamente a sala de espera.
Edward estava quieto, e duvidava que quisesse compartilhar o que sentia naquele momento. Então, sentei ao seu lado em silêncio.
— Me surpreende que você não tenha perguntado nada até agora — comentou e olhou para a sacola em minhas mãos. — O que é isso?
Havia me esquecido de dar aos outros seus chás.
— Um pouco de chá — expliquei enquanto entregava um copo para cada um.
Depois voltei a me sentar e olhei para o escritor:
— Não sou tão insensível — respondi ao seu comentário anterior, minha voz soava mais dura do que imaginei. — Não vou te perguntar nada. Se quiser, e quando quiser, dizer algo, saiba que estou aqui.
— Você está brava? — perguntou em um tom parecido com o meu. — Me refiro a ontem.
Demorei a abrir a boca, pensando no que diria. Optei por não mentir.
— Sim.
— Imaginei. — Suspirou.
— Não vamos entrar no assunto agora. — Dei uma pausa. — Só saiba que estou aqui por você e que te ajudarei no que for preciso. — Segurei sua mão
Edward entrelaçou nossos dedos, mas não parecia igual à antes. O carinho que existia talvez ainda estivesse lá, mas não era a mesma coisa, algo estava... diferente.
Não demorou muito para um médico aparecer e chamar os pais de Elisa, Edward, acabou acompanhando-os e eu permaneci sentada.
Surpreendentemente, Edgar chegou assim que os outros saíram.
Eu não tinha a ousadia de perguntar como ele estava. A resposta era óbvia e certeza que Edgar sequer seria sarcástico.
Não é todo dia que se perde um amor.
Claro que há outras formas de se perder alguém, porém a morte sempre foi a pior delas. Mesmo que um casal se separe por algum motivo, ambos conseguem seguir em frente com mais facilidade do que alguém que perdeu seu amado para a morte.
E Edgar não a perdera apenas uma vez.
Gostaria de conhecer mais a história dos dois, entretanto, nunca foi algo que me dizia respeito e talvez fosse melhor assim.
Minha curiosidade sempre ia longe demais, esse sempre foi o meu maior erro.
Os três voltaram depois de alguns minutos, todos com semblantes tristes. Edward e Edgar se comunicaram com o olhar e parecem ter decidido algo.
— Vá, Edgar — disse o seu colega.
O pianista assentiu e logo foi embora.
No fim, sou eu que comerei o que comprei para ele...
Edward conversou um pouco com Amélia e Klaude, e depois fomos todos para o carro, ele levou os dois para o hotel e assim que saíram me virei para o escritor.
— Quer que eu fique com você? — Toquei levemente seu braço.
Edward não disse nada e continuou a dirigir. Quando chegou em sua casa pediu para que eu ficasse no carro e o esperasse, ao voltar, tinha uma mochila em mãos. Ele a jogou no banco de trás quando entrou e me olhou por alguns segundos.
— Lyra, posso dormir na sua casa hoje? — perguntou. — Quero dar espaço a Edgar, sei que ele precisa.
— Está bem, mas... Será que ele não precisa de alguém ao lado dele agora que... — Parei a frase no ar.
— As pessoas lidam com o luto de maneiras diferentes — respondeu e voltou a dirigir.
Ao chegarmos em casa, Edward se arrumou para dormir primeiro do que eu, mesmo que suspeitasse que ele não fosse pregar o olho esta noite. O tempo que passamos no hospital foi maior do que imaginei e já estava tarde, porém nenhum de nós parecia perceber isso.
— Vou fazer um chá — ele disse ao sair do banheiro.
Edward beijou minha testa e foi para a cozinha enquanto eu me arrumava. Quando voltei, o observei terminar nossa bebida.
— Edward, o que posso fazer para te ajudar? — perguntei ao me aproximar.
— Não há nada que possa fazer, Lyra, além de ficar ao meu lado.
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