♪Noturnos de Chopin
"Da imensidão do meu nada, desejo-lhe tudo."
— W. A. Mozart
♪♪♪
Toquei a campainha uma vez, mas ninguém atendeu. Toquei uma segunda vez e esperei.
Cinco, dez, quinze, trinta minutos.
Mas ninguém atendeu.
Verifiquei se a porta estava aberta, mas James havia trancado-a.
Não conseguia ver uma luz do apartamento, ou ele não estava ou havia apagado todas para fingir que tinha saído.
Cansei de tentar e voltei para casa.
Tive uma noite muito mal dormida.
A preocupação me matava e fizera-me rolar de um lado para o outro na cama, virar o travesseiro cerca de oitenta e cinco vezes e criar teorias mirabolantes sobre o que acontecia com James, não que eu levasse qualquer uma delas a sério, afinal eram histórias fantasiosas demais para se tornarem reais.
Os primeiros raios de sol apareciam e acabei desistindo de cochilar.
Fui até a cozinha e preparei um chocolate quente e algumas torradas que comeria com o resto da geleia de morango que tinha na geladeira.
Estava frio, mesmo com a ajuda do aquecedor ainda estava frio e meus pés não esquentavam de jeito nenhum, pareciam duas pedras de gelo.
Voltei para baixo do cobertor e deixei minha xícara e prato em um canto seguro da mesa de cabeceira.
Estava com preguiça de sair, tanto da cama quanto de casa, um dos efeitos colaterais do frio. Até sentia vontade de praticar piano, porém ele estava desafinado e ainda não chamei nenhum afinador para solucionar o problema. E não queria caminhar até o Conservatório para tocar apenas algumas sonatas e voltar.
Também queria visitar James, porém em um horário como aquele ele estava trabalhando, e não seria bom incomodá-lo durante uma cirurgia. Ligaria para sua clínica depois de algumas horas para perguntar que horas meu irmão voltaria para casa ou se eu poderia visitá-lo por lá mesmo.
Fiquei cerca de uma hora na cama, terminei o livro que estava ali e fiquei sem nada para fazer. Então decidi dar uma volta, tomar café em algum lugar e talvez passar na livraria.
Fui para a região central da cidade e passei na cafeteria próxima ao Conservatório, o café de Henri estava fechado por motivos desconhecidos, supus que o dono estivesse com algum problema pessoal ou tinha algum compromisso e não poderia abrir, Fernando só abria o café se estivesse lá para supervisionar tudo, não queria mais ninguém dando ordens além dele. Um pouco possessivo em minha opinião.
Sentei-me no mesmo lugar que da última vez e Frida veio me atender:
— Bom dia, Lyra! — Cumprimentou-me. — Como vai?
— Vou bem e você?
— Tirando este frio insuportável, estou ótima! O que vai pedir hoje?
— Um expresso e um pedaço de torta, por favor.
— É para já, senhorita! — Frida exclamou e foi para próximo da cafeteira.
— Quer dizer que você não gosta do frio? — Perguntei na tentativa de puxar assunto, não estava muito interessada em ficar sozinha com meus pensamentos e ideias malucas.
— Digamos que eu prefira mais o calor. Podemos ir para a praia, usar roupas mais confortáveis, nossas mãos não ficam doloridas e as pessoas são mais simpáticas no verão.
— Não esqueça que nessa época do ano as pessoas suam feito porcos — disse Edgar que acabara de se sentar ao meu lado.
— Melhor do que congelar! — Revidou Frida.
— Tenho minhas dúvidas — comentou.
— Vai pedir o que, Edgar? — ela soou um pouco rude.
— Só um chocolate quente, sem açúcar de preferência — Frida anotou o pedido e voltou para o lado da máquina. — Olá, Lyra.
— Bom dia, Edgar.
O encarei por um tempo, ele estava com olheiras e uma expressão cansada no rosto, não dormira bem noite passada, e talvez até outras anteriores.
— Eu visitei meu irmão ontem — falei enquanto bebia um pouco de café. — Não havia ninguém, ou ele não queria me atender. Fiquei cerca de quarenta minutos esperando, mas depois desisti. — Suspirei.
— Imaginei... Pergunto-me se aconteceu algo grave... — Edgar parecia distante, perdido nos próprios pensamentos. — ou se ele está apenas sendo um tremendo desgraçado e fazendo gracinhas.
— Edgar, ele é meu irmão. Mais respeito. — Lancei-lhe um olhar de severo.
— Isso não vai me impedir de xingá-lo quando for necessário.
— Que dócil. — Fui sarcástica. — Mesmo que essa atitude não me surpreenda sempre, achei que você tivesse mais classe, senhor Adagietto.
— Eu tenho classe até falando palavrões, Lyra. É outro nível de classe, um que você nunca terá. — Sorriu.
Revirei os olhos e continuei a apreciar meu bolo, o café já havia acabado como era de se imaginar.
Frida trouxe o pedido de Edgar e foi para o outro lado.
— É impressão minha ou Frida não gosta muito de você? — Perguntei.
— Por incrível que pareça, sim. Não sei como alguém pode me detestar...
Quase engasguei quando ouvi aquilo.
— Você não sabe? Tem certeza?
— Sim. — Ele parecia indiferente e prestava mais atenção em sua xícara cheia.
— Sério? Se quiser posso te passar uma lista em ordem alfabética ou cronológica sobre os motivos, tenho o arquivo salvo em PDF então posso te enviar rapidinho.
— Que engraçado, Lyra. Muito mesmo! Onde aprendeu a fazer piadas assim tão hilárias?
— Na Academia Para Leigos de James Hersenen. — Brinquei, mas logo fiquei séria novamente.
— Isso foi péssimo, senhorita Scherzo. Péssimo. — Sua expressão rígida logo deu as caras. — Enfim, o que a traz para este lado da cidade, Lyra? Afinal, você está de férias e essa região é bem longe da sua casa.
— Meu piano está desafinado. — Dei de ombros. — E o Conservatório permite seus alunos a utilizarem algumas salas para ensaio. — Acrescentei. — E você, Edgar? Existem ótimas cafeterias próximas a sua casa, por que viria para cá?
— Visitei uma amiga que mora por aqui e decidi parar para beber alguma coisa. — Deu uma pausa. — Está esfriando com o decorrer dos dias, não acha?
Que bela tática de mudar de assunto Edgar. E muito discreta por sinal.
— O inverno está chegando, Edgar. É óbvio que a temperatura vai cair.
— Mas continuamos no outono, senhorita Scherzo. Falta cerca de um mês para o inverno propriamente dito aparecer.
— E você é a personificação do inverno. — Murmurei, reclamando de seu jeito frio.
— Eu não teria tanta certeza, Lyra...
— Por acaso existe alguém mais rude, frio, carrancudo do que Edgar Adagietto?
— Você já conversou com Edward? Ele ganha o primeiro lugar fácil!
Pensei por um tempo, entre os dois, quem seria o pior? Era uma pergunta difícil. Até porque não conhecia muito o escritor e minhas únicas conversas foram... Estranhas, para dizer o mínimo.
— Ele é muito esquisito, mas não sei se é pior do que você...
— Tem certeza? Ele xingou os músicos, coisas que para você, foi o fim do mundo! Deveria repensar seus conceitos de frieza, senhorita Scherzo! — Exclamou.
— Eu não o conheço bem o suficiente para fazer uma comparação justa! — Revidei. — Eu o encontrei no máximo três vezes na vida!
— Três é um número suficiente para julgá-lo, Lyra. Não sei como aguentou vê-lo tantas vezes.
Havia algo estranho, pelo que Edgar contara, ambos eram amigos de longa data, mas não pareciam gostar da companhia um do outro,
— E como você o aguenta? Não sou eu que o vejo todo dia em casa há anos...
— A gente se acostuma a ver o demônio com o passar do tempo. — Brincou.
— Realmente, deve ter sido difícil para Edward no começo, ver a cópia do diabo todos os dias...
Ele riu levemente.
— Às vezes a piada funciona. — Comentei.
— Uma a cada quinze mil. — Completou. — Preciso ir, Lyra. Edward precisa de minha ajuda para algo que eu ainda não sei.
— Está bem. Tenha um bom dia, Edgar.
— Você também, senhorita Scherzo.
Edgar deixou um dinheiro ao lado da xícara e foi embora. E logo depois, eu também.
Entrei no Conservatório, encontrei alguns professores no corredor, mas nenhum aluno. Acho que a maioria estava curtindo as férias viajando ou ficando de bobeira em casa.
Enfiei-me na primeira sala que vi e tirei uma partitura de Debussy da bolsa, na hora que a tirei da prateleira não prestei muita atenção em qual peça seria, apenas a joguei junto com todas as outras coisas e sai de casa.
Clair de Lune era uma composição que me trazia boas lembranças. Era uma música calma, relaxante, era tudo que eu precisava naquele momento.
Debussy, no geral, tinha esse efeito sob mim. Em apenas poucos acordes, fazia-me emergir em momentos preciosos que eu sempre esquecia a existência.
Conseguia me imaginar na sala de estar da casa de meus pais, sentada no mesmo piano que neste momento estava desafinado. Uma quase adolescente que caminhava de encontro à música.
Era possível ver minha mãe conversando com a senhora Isabel a respeito dos pratos que serviriam no jantar daquela noite. Meu pai estaria no consultório em um horário como aquele ou dando palestras a respeito de seu sucesso muito bem construído e estabelecido.
E a senhora Adelaide logo pediria para que sua filha parasse de tocar e fosse se arrumar, afinal um uniforme escolar não era a roupa adequada para se usar em momentos como aquele.
Em seguida o doutor Dominik entrou pela porta e cumprimentou a todos do jeito de sempre, beijou o meu rosto e o de sua esposa e acenou para a cozinheira. Ele subiria as escadas e iria para o escritório.
Minha mãe diria que eu precisava tomar banho imediatamente para que não me atrasasse e me fazia fechar o piano e andar até meu quarto.
Era a rotina de toda quinta-feira.
Era uma lembrança, mas nunca pude dizer se era boa ou ruim.
♪♪♪
Liguei para o consultório que James trabalhava e a recepcionista me dissera que ele já havia voltado para casa.
Mas ninguém me atendera de novo.
Bati diversas vezes na porta, com mais força do que deveria para ser sincera, e o nó dos meus dedos doía bastante.
— Pare com essa brincadeira sem graça e abre a porta, James! — Soquei mais uma vez a maldita porta.
Não importava quantas vezes eu fizesse isso, não obtia nenhuma resposta.
Virei as costas e apertei o botão para chamar o elevador, mas quando ele chegou vi um conhecido lá dentro.
— Atenda a merda do telefone, desgraçado! Que inferno!
Edgar quase jogou o celular na parede, mas decidiu que não era a atitude mais sensata e o guardou no bolso, suspirando.
— Olá, Edgar.
Ele finalmente olhou para quem estava em sua frente e disse:
— Olá, Lyra.
Um silêncio estranho começou a pairar, não sei se algum de nós queria falar alguma coisa neste momento. Acho que estávamos preocupados com o mesmo motivo e não sabíamos como ajudar um ao outro.
— Pela sua expressão, parece que não deu certo...
— Exatamente... — Suspirei. — Será que ele está mesmo em casa?
— É uma boa pergunta. — Por um instante parecia que a mente de Edgar trabalhava em algo que não conseguia entender. — Tive uma ideia.
Ele saiu do elevador e foi até a porta, não tocou a campainha ou bateu, simplesmente arrombou a fechadura e forçou sua entrada.
Acendi a luz da sala, estava uma bagunça. Era estranho ver aquele apartamento que sempre estava impecável em uma desordem total.
Procuramos em todos os cômodos por algum sinal de vida, mas não havia ninguém no apartamento.
— Só pode ser brincadeira! — Edgar estava irritado e preocupado ao mesmo tempo, seu rosto estampava uma expressão diferente que eu nunca havia visto. — Onde diabos esse merda foi se enfiar?! — Ele discou o número de James novamente. — Depois de duas semanas o senhor decide me atender?! — Pausa. — Mas me diga em que ruela você foi parar e por que decidiu bancar o fantasma por tanto tempo?! — Outra pausa. Como eu gostaria de ouvir o que meu irmão estava dizendo... — Está bem, chego em quinze minutos. E vou levar sua irmã junto.
Ele desligou.
— E então...? — A curiosidade sempre falava mais alto.
— James disse que estava no orfanato e que poderíamos nos encontrar lá.
— Só isso?! Foi só isso que ele disse?!
— Você quer ouvir as desculpas esfarrapadas que ele deu no telefone ou quer ouvir ao vivo o que ele realmente tem a dizer? — falou saindo do apartamento.
— Eu gostaria de ouvir os dois de preferência. — Murmurei.
Ele encostou a porta danificada.
— Acho que ninguém assaltaria o décimo terceiro andar, certo? — falou pensativo.
— Você ainda não me contou o que ele disse!
— Vamos logo, garota. — Revirou os olhos. — Contarei no caminho se quer tanto saber.
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