♪A Arte de Esquecer
"É muito melhor viver sem felicidade do que sem amor."
— William Shakespeare.
♪♪♪
Procurei, em vão, por um presente para Edward. Havia esfriado durante o fim da tarde e pequenos flocos de neve começavam a cair.
Por coincidência, passei em frente ao Conservatório, que inesperadamente estava aberto, conseguia-se ver algumas luzes acesas das salas do segundo andar, o que me deixou instigada a entrar.
Subi as escadas em direção à claridade e aproximei-me furtivamente. Logo de início consegui ouvir o som de um piano, mas não era um solo e sim uma música para quatro mãos, arriscaria dizer que pertencia à Debussy devido a sua delicadeza.
Cheguei ainda mais perto da porta para ver uma cena um pouco inesperada.
Edgar tocava ao lado de uma das mulheres mais lindas que já havia visto em toda a minha vida.
Ela tinha a postura impecável e seus dedos longos e finos moviam-se com agilidade e leveza, não era nenhuma iniciante. Seus cabelos cor de ferrugem lhe caiam nas costas, longos e ondulados. Traços finos e um olhar semelhante ao de Edward, porém havia mais azul em sua íris. Vestia um casaco azul-marinho e um cachecol vermelho. Entretanto, parecia-me muito pálida e cansada, como se tivesse vivido mais do que aparentava.
Sentia a sintonia dos dois enquanto tocavam, uma energia que me trouxe o sentimento de desconforto. Não deveria estar assistindo a um momento que parecia-me tão íntimo.
Virei-me para ir embora, porém a voz grave do meu professor me impediu.
— Bisbilhotando como sempre, senhorita Scherzo? — Edgar perguntou, sem sequer olhar para a minha direção.
A mulher ao seu lado me observou de relance antes de parar de tocar e Edgar fazer o mesmo, logo em seguida.
— Desculpe, não queria atrapalhá-los — disse, encarando meus sapatos levemente sujos pela neve. — Na verdade, já estou de saída...
— Antes de ir, sinto que devo me apresentar — respondeu a ruiva.
— Acho que já tenho uma noção de quem você pode ser — falei. — Elisa.
— Olhe só, Lyra sabe usar o cérebro quando quer! — Edgar sorriu de seu jeito irônico de sempre, porém senti que estava mais na defensiva do que o normal.
— Não me diga que ela é a Lyra...? — o questionamento parecia-me mais uma afirmação, mas Elisa esperou que Edgar confirmasse com a cabeça antes de prosseguir. — Edward me falou sobre você. — Aproximou-se de mim e surpreendi-me ao ver que não usava salto e que aquela altura era mesmo sua. — Não se preocupe, ele me disse apenas coisas boas.
— Como, por exemplo, a vez em que você leu os rascunhos dele sem permissão — disse Edgar.
Olhei para os lados, sem graça.
— Pare com isso, Ed! — Elisa deu um leve tapa em seu braço. — Desculpe, Lyra. Edgar adora irritar os outros, parece até uma criança de seis anos.
Ela apertou suas bochechas, fiquei espantada em ver que Edgar não a jogou pela janela, ele sequer gritou.
— Ele tem o dom de importunar os outros, eu diria. — Brinquei e sorri para a ruiva, que deu uma risadinha. Ambas recebemos um olhar ríspido em resposta.
— Por que não janta conosco, Lyra? — perguntou Elisa. — Quero te conhecer melhor, e tenho certeza que Edward ficará contente em vê-la.
— Elisa, eles passaram o dia inteiro juntos ontem, anteontem e no dia anterior também! — exclamou Edgar. — Não aguento mais vê-los juntos!
Elisa riu.
— Deixe de ser ranzinza! Até parece que nunca esteve apaixonado antes.
— Eu não era tão idiota e dependente assim. — Ele deu de ombros.
— É o que você acha — respondeu Elisa com ar brincalhão.
— Não é como se alguém se lembrasse para confirmar — murmurou.
Senti meu coração pesar um pouco e, outra vez, senti-me uma intrusa na conversa dos dois. Notei a mão de Elisa acariciando o braço de Edgar, mas não me parecia ser por pena. Devia ser difícil para ela não se lembrar e talvez, ainda mais difícil, machucar aquele que um dia foi seu amado, por ter esquecido de tudo isso.
Olhei para o lado e vi um buquê, estava em cima de uma cadeira, ao lado de uma bolsa. Era um buquê de narcisos que, ao mesmo tempo em que significava o renascer, também significava o amor não correspondido.
O que é um pouco irônico, afinal, ele havia sido correspondido e estaria feliz se não fosse o trágico acidente que gerou tudo isso... Talvez o narciso estivesse ali para simbolizar o recomeço e não seu lado negativo, porém era incapaz de entender o real motivo que levara Edgar àquela escolha.
— É melhor irmos — disse Edgar. — Edward já deve estar irritado com nossa demora.
— Consigo imaginá-lo nos dando bronca assim que chegarmos. — Elisa esboçou um dos mais breves sorrisos que já vi. — Não é possível! Parecem duas crianças irresponsáveis! Quantas vezes falei para vocês chegarem às sete horas porque Elisa precisa voltar ao hospital às onze? Sete vezes, exatamente sete! — Elisa imitou a voz e os trejeitos de Edward, o que me fez gargalhar.
Assim que chegamos, vimos Edward na entrada, esperando. Vestia um sobretudo marrom e um cachecol azul-marinho, mas não dera nenhum nó. Estava com óculos, provavelmente tinha esquecido de tirá-los antes de vir, e não poderia negar, que adorava vê-lo usando aquela armação redonda, acrescentava-lhe um charme que era incapaz de explicar.
— Desculpe o atraso, Schatz — disse Elisa antes de cumprimentá-lo com um abraço. — Mas para compensar, trouxemos uma surpresinha. — Ela se aproximou de mim e me levou até o lado de Edward, em seguida disse algo, possivelmente em alemão, pois tudo que pude entender foram espirros.
Edward respondeu ainda na mesma língua, deixando-me perdida, porém fiquei aliviada ao ver que Edgar estava na mesma situação.
— Podem falar a nossa língua? Ou é pedir demais? — resmungou o professor.
Os dois austríacos trocaram algumas palavras e em seguida sorriram.
— Desculpe, Edgar — falou Elisa. — Mas sentimos falta de conversar em alemão. É nossa língua materna, afinal.
— Eu entendo, mas é chato se sentir a par da conversa — retrucou.
— Já paramos, Edgar. Agora poderia parar de reclamar? — disse Edward. Em seguida, se virou para mim. — Olá, Lyra.
— Olá...
— Está tudo bem? — perguntou.
— Sim, por quê?
— Não é o que seus olhos dizem.
Edward beijou-me a testa.
— É por causa da briga entre você e seu irmão? — sussurrou. — Você sabe que pode me contar tudo, não sabe?
— Sim, e eu agradeço por isso, é que...
— É que...?
— Não quero falar sobre isso perto de outras pessoas. — Lancei um olhar para Edgar e Elisa que conversavam entre si.
— Não se preocupe, a última coisa que Edgar quer é prestar atenção em nós invés de Elisa. Cada segundo é precioso para ele.
— Consigo imaginar o porquê — respondi um pouco triste e até com um pouco de preocupação no tom.
— Ele ficará bem, um dia. Todos nós ficaremos. — Edward suspirou, seus olhos refletiam toda uma angustia.
Eu sempre pensava no sofrimento que Edgar teria quando ela o deixasse, mas não havia parado para pensar no estrago que isso também causaria em Edward.
Segurei sua mão com a melhor mistura de força e ternura que consegui.
— Desculpe.
— Está se desculpando pelo o quê? — perguntou, confuso.
— Eu me ceguei para coisas que precisava ver, fui negligente e... — Respirei fundo antes de murmurar. — Acho que James pode, no fundo, estar certo... E eu sou uma péssima pessoa...
— Lyra, o que diabos está dizendo?! — Edward exclamou. — Você está longe, e muito, de ser uma pessoa ruim. Que tipo de absurdos James vem pondo na sua cabeça, afinal?!
— Edward?! — Elisa voltou sua atenção para nós. — Está tudo bem?
Edward respirou profundamente três vezes, numa tentativa de se acalmar.
— Desculpe, me exaltei. — Fez uma pausa. — Você e Edgar podem entrar e fazer seus pedidos, preciso conversar com a Lyra. — Elisa o encarou. — Não se preocupe, Schatz.
Ela assentiu e levou seu antigo amante para dentro do restaurante.
Ficamos alguns instantes em um silencio absoluto, antes de Edward recomeçar a falar:
— Lyra, a sua relação com James é muito preocupante. A influência que ele causa em você... Como por isso em palavras...? — Pensou por um momento. — Tenho medo do que você acabe fazendo por coisas que ele lhe diz.
Fiquei em silêncio, sem saber o que responder.
— Por favor, Lyra. Deixe-me te ajudar. Não gosto de vê-la enfrentando este conflito interno sendo que, se você se abrir, podemos resolver isso. Juntos. — Edward segurou minhas duas mãos e as levou ao peito.
— Podemos conversar sobre esse assunto mais tarde? Não quero deixar ninguém esperando por muito mais tempo.
Edward suspirou e demorou a dizer algo, ponderando algo em sua cabeça.
— Tudo bem. — Ainda segurando minha mão, entrou no restaurante.
Um garçom nos levou até nossa mesa, onde Edgar e Elisa conversavam alegremente, ou o quão alegre Edgar conseguia ser. Já a ruiva sorria de modo deslumbrante, ela tentou pegar a taça de vinho ao lado, mas Edgar logo o tirou de suas mãos.
Ouvimos o professor reclamar quando nos aproximamos:
— Quantas vezes tenho que dizer que você não pode ingerir álcool? — Massageou as têmporas. — Não se mistura analgésicos com vinho, Elisa!
— Desculpe. — Ela pôs as mãos ao alto em sinal de redenção. — Isso não vai mais acontecer.
— Você sempre diz isso, nenhum de nós acredita em você.
— Que ultraje! Maldizendo-me na frente de Lyra! — A voz de Elisa estava repleta de drama e incredulidade. — Justo ela que precisa ter uma boa impressão sobre mim! Estou desapontada com você, Ed.
— Que seja — respondeu Edgar indiferente, em seguida bebeu um pouco de vinho.
— Enfim. — Elisa ignorou o comportamento de Edgar e se voltou para mim. — Lyra, ouvi dizer que você também é uma pianista.
Assenti.
— Parece que você estará sempre fadado a criar laços com músicos, não é mesmo, Edward? — Ela o observou de relance.
— De certo modo, sim. — Edward ergueu sua taça de vinho em um cumprimento irônico antes de beber seu conteúdo.
O jantar se iniciou tranquilo, com conversas triviais até que os pratos principais chegassem, foi então que Elisa perguntou:
— Mas me digam, por que não vejo James por aqui?
— Porque não o convidamos...? — respondeu Edgar com rispidez.
— Você sempre o convida, por que desta vez foi diferente? O que aconteceu entre vocês?
— Eles brigaram — esclareceu Edward. — E, no fim, James levou um soco.
— Não me diga que você...? — Elisa virou seu corpo na direção do pianista, espantada. — Edgar!
— Ele disse que eu precisava me acostumar com a ideia de você não estar mais aqui, Elisa — Edgar explodiu. — Você queria que eu fizesse o que depois de ouvir uma coisa dessas?! Concordado com ele enquanto tomava uma xícara de chá?! Claro que não! O que eu queria era jogar a xícara na cara dele!
— Que bom que os dois cavalheiros não estavam discutindo isso na hora do chá, teriam arruinado sua coleção de louças — sussurrei para Edward, brincando, porém só depois notei que não era a melhor hora para fazer piadas.
Um silêncio mortal se instalou, meus olhos estavam focados em Elisa, que permanecia calada.
— Não vai dizer nada?! — disse Edgar.
— O que você quer que eu diga? — respondeu Elisa com a voz controlada. — Que tudo ficará bem? Você sabe que não vai. E nenhum de nós está preparado para se despedir... — Olhou para baixo. — Eu não quero morrer.
Ela disse a última palavra quase como um sussurro, incapaz de pronunciá-la.
— Nenhum de nós quer, Schatz — disse Edward. — Mas nós estamos aqui, não precisa carregar tudo sozinha. — Seus olhos cinza focaram em minha direção por um instante.
— Não quero que vocês sofram... Eu me sinto responsável por suas dores... — Elisa escondeu o rosto com as mãos e Edgar gentilmente as tirou para encarar a ruiva.
— Pois não deveria. Você é responsável apenas pelas boas lembranças que temos, Elisa. Em todos os melhores momentos da minha vida você esteve presente.
— Mas te machuca saber que eu não me lembro de nada disso.
— Me escute, você não teve culpa do acidente — Edgar disse, os olhos focados nela. — Nós já falamos sobre isso, Elisa. Se quiser, contarei tudo que lembro, até dos momentos mais banais.
— Mas não é a mesma coisa... — murmurou.
Olhei para Edward e movi os lábios em uma pergunta:
— Não deveríamos deixá-los a sós?
Edward concordou, disse algo sobre precisar de ar, mas nenhum dos dois prestara atenção.
Fomos até o lado de fora do restaurante, onde o vento gélido acariciava-nos o rosto. A neve continuava a cair tímida, observei Edward, que parecia distraído com alguma lembrança.
— Está tudo bem? — perguntei, colocando um braço ao redor de suas costas.
— Estou preocupado — respondeu, depois de um tempo, enquanto observava ao longe os dois conversando. — Eles têm muito a dizer e pouco tempo.
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