Capítulo 8
O Halloween demorou a chegar e, depois das semanas que Érica tinha tido, ela estava ansiosa por poder passar uma noite no descanso e na diversão. Por isso, estava sentada numa das poltronas na sala de estar improvisada, com uma lanterna acesa apontada para o teto para garantir que os colegas encontravam o sítio, à espera.
O som mal abafado de passos chegou-lhe aos ouvidos, e ela sorriu. Estavam a chegar.
A lanterna dos rapazes verteu a sua luz sobre as velhas estantes e os montes de caixas ali armazenadas. Eles andavam em bicos de pés como se aquilo os fosse fazer fazer menos barulho, ignorantes, de propósito ou não, do ranger que a madeira velha fazia sob o seu peso. Estavam ambos de pijama, Eduardo tendo-o suplementado com um roupão de banho preto e umas pantufas castanhas. Márcio tinha calçado um par de sapatilhas.
Ela revirou os olhos, pouco impressionada.
–Chegamos, –disse Márcio ao virar a esquina. Mesmo na baixa luz foi facílimo ver o preciso momento em que os olhos dele se abriram em surpresa e em medo.
–Bem, parece que fomos os primeiros a chegar, –disse Eduardo, atirando-se para o sofá cor de salmão sem qualquer tipo de preocupação.
–Quem é que montou isto? –perguntou Márcio, olhando em volta com terror nos olhos. Aproximou-se devagar, como se temesse que a carpete voasse de debaixo dos seus pés como uma qualquer armadilha. Aproximou-se da caixa que fazia de mesa de centro e pegou na lanterna. –E quem é que deixou isto ligado, se eles não estão aqui?
Eduardo riu, encolhendo os ombros. Ele ficava tão diferente sem o cabelo loiro penteado para trás e sem a farda vestida! –Se calhar elas vieram e deixaram isso aí? Ou iam ser apanhadas e fugiram? Ou então é uma partida?
–Não sei, não, –respondeu Márcio, pousando a lanterna no sítio e afastando-se. –Livros de magia, sítios assombrados, salas que parecem ter saído diretas do século passado? –Afastou-se, saindo de cima da carpete, de dentro da salinha improvisada. –Não há um único greirinho de pó aqui, Edu. Parece que está tudo congelado no tempo.
Eduardo virou-se para ele, ainda deitado no sofá, agora com a cabeça apoiada no apoio de braços. Sorria. –Ou então alguém limpou tudo? Se calhar as raparigas estiveram aqui hoje à tarde e esqueceram-se de desligar a lanterna.
Érica segurou o riso. Tecnicamente estavam ambos certos!
–Ou então este sítio é mesmo assombrado.
–Se for, só torna tudo mais divertido ainda! –respondeu Eduardo, voltando-se a virar para o teto. –Eu protejo-te. Agora vais ficar aí em pé ou és corajoso o suficiente para te sentares?
Márcio olhou em volta, e depois ganhou coragem para voltar a pisar a carpete. Ao ver que aquilo ainda não o tinha matado, avançou até ao sofá, levantou os pés de Eduardo e depois sentou-se com eles apoiados no colo.
–Tens razão, devem ter sido as miúdas a montar isto.
–Wow, vocês esmeraram-se! –disse Alma, que agora virava a esquina. –O sítio está tão giro!
A forma como todo o sangue drenou da face do mini-militar foi plenamente hilariante mas, entre os vivos, só Eduardo o pareceu notar. Alma atirou o livrinho para cima da mesa com um baque satisfatório, e Anastácia aproximou-se de mansinho, olhando em volta.
Mais de uma vez, Érica achava ter sido vista. Para seu alívio, isso parecia não ser o caso.
–Bora fazer isto, malta? –disse Alma, abrindo o livro de magia e sentando-se numa das muitas almofadas para lhe ficar mais perto.
–Assim que nos explicares o que isto é, –respondeu Eduardo, endireitando-se para se sentar direito no sofá, deixando o lugar do meio livre. Anastácia escolheu uma das velhas poltronas, e depois começou a tirar uma saquinha com comida e bebidas.
–Isto é extremamente proibido, –respondeu Alma, pegando num saco de batatas fritas para o abrir. Continuou a falar por entre a boca cheia. –Agora que estamos todos a quebrar as regras e que temos todo o tempo do mundo, já vos posso explicar o que é que este livro é. Ou, melhor ainda! –disse ela, pegando num alfinete de dentro de um dos bolsos do pijama. Aquilo parecia ser uma coisa muito fácil de esquecer e muito dolorosa de redescobrir. –Demonstrar.
Picou a ponta do dedo até puxar sangue, deixando uma grossa gota ali se acumular.
–Queres apanhar tétano ou quê? –perguntou Eduardo. Mas era inegável que estava interessado, vendo a forma como se inclinava para se ver aquilo mais de perto. Márcio estava assustado e Anastácia parecia só... preocupada? Como se soubesse que aquilo ia acontecer, e receasse o resultado, era isso.
Será que sabia?
Alma sorria. Pousou o alfinete, e depois virou a gota de sangue sobre a palma da outra mão, pressionando com força.
–Que arda, –pediu.
Quando levantou o dedo ferido, segurava uma pequena chama. Dançando, benzendo-lhe a pele escura de tons de laranja, o pequeno fogo ia reduzindo aos poucos, alimentado apenas pela pequena gota de vida que Alma tinha vertido na palma da mão. Com uma quantidade tão pequena, não demorou até que todo o sangue fosse consumido e que, em resposta, o feitiço fosse quebrado.
Há quanto tempo a não via, e que saudades! Érica tinha todo o direito de odiar magia, aliás, tinha até o dever, mas a verdade nua e crua era que ainda gostava tanto dela quanto da primeira vez que a tinha descoberto. Vê-la ali, ver aquele simples feitiço domado nas mãos de Alma, enchia-a de tanta esperança quanto de inveja por já não a poder ter, por não a poder dominar assim.
Os colegas também não ficaram impávidos com aquilo. Alma tinha o maior de todos os sorrisos marotos estampados na cara, pelo menos até pôr o dedo ferido à boca para tentar parar o sangue. Eduardo estava interessado, parado no lugar a olhar para a mão que a bruxa ainda tinha estendida, como que à procura de explicação para aquilo.
–O que acharam? –perguntou ela.
–Não, não não não, –disse Márcio. –Magia? Olhem, eu estou bem com os snacks e com histórias de terror, e é muito óbvio que quebrar as regras não me incomodam, mas magia? Feitiços?
–Isto é uma terrível ideia, –concordou Anastácia. –É perigoso. Por favor, Alma, não continues com isso...
Mas Alma riu-se. –Isso parece um desafio! –Abriu o caderno, procurando um outro feitiço pequeno e simples que pudesse fazer.
Mas Anastácia levantou-se, séria, e fechou-lho mesmo à frente dela.
–Agora que já mostraste isso, eu tenho algo para contar, –disse. Olhou diretamente para onde Érica estava e, mesmo que o olhar dela apenas a estivesse a atravessar e não a focar-se na sua forma etérea, a fantasma não pôde deixar de sentir medo. –Algo sério. Se depois quiseres continuar a fazer magia, eu não te vou impedir.
Ninguém disse nada quando Anastácia pegou no caderno, nem quando o atirou para a poltrona e se sentou sobre ele para que ninguém o pudesse roubar, nem quando suspirou profundamente ao começar a narrar.
–Tens a certeza que é boa ideia?
–Shiu! –riu-se Arabela, destrancando a porta da arrecadação com a chave roubada. –Desde que ninguém te ouça a falar, ninguém vai saber que estamos aqui. A arrecadação já não é usada há sabe-se lá bem quanto tempo. Relaxa!
Entrou na pequena sala, borbulhando de excitação, não dando atenção às preocupações da colega. Às vezes dava jeito ter no grupo alguém com receio de quebrar as regras, mas outras vezes era só irritante. Harlan seguiu-a lá para dentro, e ela virou-se para trancar a porta assim que Érica o seguiu.
Acendeu uma pequena lamparilha a óleo. O pequeno espaço não tinha janelas, só quatro paredes repletas de estantes que o tornavam ainda mais exíguo e um par de poltronas que tinham sido empurradas ali para dentro provavelmente quando o arquivo deixou de ser usado. O ar cheirava a pó, ao papel dos muitos livros comidos pelos bichinhos de prata, e fedia a mofo. O brilho dourado da lamparina não chegava para iluminar tudo, e por isso Harlan já tinha pegado nela para melhor examinar as estantes cheias de ficheiros de ex-alunos, de manuais obsoletos e de outros livros. Ele sorria, muito focado atrás das lentes dos óculos, e ela sorria em resposta, mesmo sem ele ver. Sabia que ele ia gostar.
–O que é isto? –Érica sussurrava, ainda receando que alguém os encontrasse, mas já tinha ido para a beira de uma das estantes de metal, organizadas alfabeticamente pelo nome dos alunos. Ainda não tinha tido coragem de lhes tocar, mas isso não demoraria. A betinha era tão traquinas quanto ela, só o sabia esconder melhor.
–Isso aí são ficheiros, –respondeu Arabela, aproximando-se. Pegou num deles ao calhas, sacudiu-o e entregou-o à colega. –De ex-alunos da escola.
Arabela ergueu uma sobrancelha, e Érica suspirou mas aceitou o ficheiro em mãos na mesma. Demorou ainda menos a abri-lo e a ler sobre aquela pessoa aleatória. Harlan passava as mãos pelas lombadas de couro dos livros de ficção, aliciado pelas muitas palavras agora à sua disposição.
Arabela atirou-se sobre uma das poltronas. –Bem-vindos ao nosso novo esconderijo secreto!
.
Aquela sala serviu-os bem. Era num canto isolado da escola, num corredor onde ninguém passava, e ela tinha tido boas razões para dizer que não iam ser encontrados. Arabela e Harlan trocavam a chave entre eles, pendurada num fio ao pescoço escondida sob os uniformes, porque Érica que recusava a aceitá-la por medo de ser apanhada. Não havia uma única semana em que não se encontrassem ali os três, escondidos dos deveres, passando horas e horas à conversa, ou a ler ou bordar ou desenhar, simplesmente na presença uns dos outros enquanto que cada um fazia a sua própria atividade. A falta de janelas tornava facílimo perderem a conta às horas, o que até era agradável de se fazer, de vez em quando. Ela sentava-se numa das poltronas —sentar seria um bocado de um eufemismo, mesmo, porque havia mais vezes em que se deitava nas costas, ou nos braços, ou até completamente de pernas para o ar sobre a cadeira do que vezes em que se sentava direito— Harlan sentava-se na outra, a ler, e Érica passava o tempo a andar para trás e para a frente ou pousada em pernas à chinês sobre a secretária que tinham descoberto oculta dentro de uma das estantes, daquelas que se puxavam para fora e não pareciam absolutamente nada seguras.
Foi um dia, quando Harlan acabou de ler um livro e se pôs a procurar entre os muitos ali escondidos, que descobriram a magia. Num livro de mosteiro, pesadíssimo e cheio de folhas iluminadas e escritas à mão, que Harlan encontrou encostado atrás de outros dois numa das estantes do espaço.
Érica bordava, sentada no sítio de sempre, e Arabela estava sentada nas costas da poltrona, com os pés no assento, a fazer crochet.
–O que é isto? –perguntou Harlan, quebrando o silêncio que enchia a sala.
–É um livro, acho eu, –respondeu Érica, seca.
Harlan revirou os olhos, pegando nele para o ver melhor. –Quantos livros é que tu conheces que sejam assim? –perguntou, pousando-o na secretária,no pouco espaço que Érica deixava livre.
Arabela não podia mentir: estava interessada. Espetou a agulha no novelo e levantou-se para melhor ver aquilo.
Era um livro velho, tão mas tão idoso que usar essa palavra seria um eufemismo. Também não estava particularmente bem tratado. A capa de madeira esculpida tinha feito o seu serviço para o proteger, mas aquilo tinha claramente sido feito para ficar aberto, pousado sobre uma mesa, e estava-se todo a quebrar à volta da lombada de couro. Harlan passava as páginas devagar e, lá dentro, era mais fácil ainda ver o desgaste do uso. As marcas amareladas de dedos pela borda de todas as páginas, o descolorar das cores, mais nuns sítios que noutros e dependente do pigmento, o desgaste na tinta e nas palavras ainda perfeitamente legíveis.
–Não parece um daqueles medievais? –sugeriu Arabela, aproximando-se mais para tocar no papel. E claro que não era papel, era vellum, aquela pele tratada de animais onde monges escreviam antes da introdução do papel. –E não é que é mesmo?
–Tem um título? –perguntou Érica.
Harlan fechou-o com cuidado. –"Dæmonia, et sanitates magicae nigrae", –leu.
–Demónios e magia negra? –traduziu Érica, inclinando-se para o ler, duvidando da pronúncia de Harlan, que nunca tinha estudado Latim. –Temos a certeza de que isto veio de um mosteiro?
Arabela sentiu um arrepio a percorrer-lhe o corpo todo, nesse momento.
–Só que é medieval, ou por aí, –respondeu Harlan, voltando a passar as velhas páginas de vagar.
–Fechem isso e guardem-no, que me está a dar arrepios! –disse Arabela, afastando-se. Benzeu-se, amedrontada por o que aquilo podia ser. Coisa boa não era, de certeza.
–Não tenhas medo, Bela, é só um livro! –brincou Harlan.
Érica virou-o para si, lendo as páginas por alto. Era curiosa, e era bem visível a forma como estava a ficar entusiasmada com aquilo.
–São feitiços. Encantações? Algo do género, –disse, depois de ter lido umas quantas páginas. Voltou atrás e apontou para um dos títulos. –Isto aqui é uma receita para a febre e para excesso de humor amarelo. E isto... –passou os dedos para a página seguinte. –...é um encantamento para salvar a vida de um bebé que nasce sem respirar.
–Feitiços? –perguntou Arabela, voltando para o seu crochet. –Nós agora temos ciência, não precisamos dessas coisas.
–São orações ao Senhor, não? –perguntou Harlan, perdendo o interesse. Mas Érica, que continuara a ler, abanou com a cabeça.
–Fala de outras coisas. Olha, aqui diz que o bebé é "dado como prenda em morte àquela que lhe salvou a vida". E, em Latim, o Senhor é sempre referido no masculino.
–Isso, sim, é interessante, –disse Harlan. –Há algo aqui que possamos tentar? Como é que isto funciona?
–Não me digas que acreditas nessas coisas, Harlan, –disse Arabela. Aquelas distrações já a tinham feito perder a conta ao crochet pelo menos três vezes, e ela estava a começar a ficar irritada de ter que voltar a contar tudo.
–Se tu não acreditasses, não estarias com tanto medinho! –respondeu-lhe Érica.
Infelizmente, Arabela não podia dizer que a amiga não tinha razão. Bem, pelo menos não sem mentir.
–Há aqui um que acho que conseguimos fazer, –continuou Érica. –Diz que é para curar cicatrizes de doença, acho eu? É preciso tirar umas gotinhas de sangue e depois fazer uma encantação.
Harlan procurou nos bolsos pelo seu canivete, uma coisa que era definitivamente proibida de ter dentro da escola mas que já lhes tinha sido útil muitas vezes. Abriu-o e segurou a lâmina sobre a palma da mão.
–O que é que tenho de fazer? –perguntou ele.
–Parar com isso, –respondeu Arabela, desistindo do projeto em que trabalhava para dar toda a sua atenção aos amigos. –Não há nada mais interessante em que se focarem?
–Não, –responderam os outros dois, em uníssono.
Ela suspirou profundamente, aproximando-se mais deles no pequeno espaço. Se eles o diziam, se estavam a fazer aquilo, talvez não fosse assim tão má ideia ela dar uma espreitadela no livro, pois não? Só uma.
–Agora cortas-te. –Foi Érica que falou, instruindo Harlan do que fazer. –Não é preciso muito, só umas gotinhas, para tapar completamente a cicatriz.
–Tipo aquelas de varicela?
–Suponho que funcione, –disse a outra.
Mas Harlan não se mexeu. Olhou para Érica, para o livro, e depois para a palma da mão ainda intacta, sem coragem de se cortar. Érica revirou os olhos, tirando-lhe o canivete da mão e, antes que ele pudesse reagir, cortando-se a ela mesma.
–Estás doida? –perguntou ele, tirando o canivete de volta.
Ela só encolheu os ombros. –Que foi? Se tu não tens coragem, eu tenho. –Tomou o sangue nos dedos da mão intacta e, com cuidado, espalhou o pouco sangue sobre uma pequena cicatriz que tinha na cara, debaixo do olho esquerdo.
–Será boa ideia pôr logo aí? –perguntou Arabela. –Se correr mal.
Érica encolheu os ombros. –Das duas uma: ou corre bem ou não acontece nada. –E, sem mais demoras, disse a encantação.
Depois desse dia, depois de descobrirem que aquilo realmente funcionava com milhentos testes diferentes, começaram a fazer magia mais e mais vezes. Encontraram outros livros, uns mais como aquele e outros mais simples, e aprenderam o que podiam. Primeiro, coisinhas pequenas, como fazer pequenas chamas ou mover objetos à distância. Não demorou até começarem a incluir aquilo nas partidas que faziam, e que as tornava ainda melhores e dificultava em muito a tarefa dos pobres professores que tentavam apanhá-los. Também não era como se Arabela tivesse pena deles!
Não demoraram até descobrir que o custo de cada feitiço era sempre proporcional à sua dificuldade. Arranhões nos braços serviam para tirar as poucas gotas de que precisavam para criar luzinhas ou mover pequenos objetos. Cortes mais fundos, cada vez mais fundos para rituais cada vez mais complexos. Eles gostavam particularmente de criar ilusões e encantamentos permanentes, espalhando-os por vários sítios da escola durante as partidas que pregavam aos colegas e aos cada vez mais exasperados professores. Descobriram que o custo dos feitiços podia não ser sempre pago com pequenas gotas de sangue que arrancavam de si, mas ainda não sabiam exatamente o que neles gastavam quando decidiam não abrir a pele para alimentar os pequenos feitiços que continuavam a fazer. Sentiam na alma que o custo tinha sempre que ser pago, e que algo lhes era tirado com cada vez que evitavam pagá-lo em sangue.
Nenhum deles pensou que aquilo podia ser má ideia.
E, quanto mais experimentavam, quanto mais esticavam os limites do possível, mais corajosos e despreocupados ficavam com aquilo. Arabela parecia ser a única entre os três a ainda ter a mínima das preocupações, e mesmo ela começava a esquecê-las e a ignorá-las.
—Se calhar devíamos parar de mexer com isso, —sugeriu ela um dia, ainda a trabalhar numa qualquer toalha de crochet.
–Não,–respondeu Érica, arrancada do foco que precisava para conseguir fazer as traduções.
Essa resposta era o suficiente para a convencer.
Harlan encolheu os ombros. –Estamos a descobrir coisas novas, a fazer ciência!
–Ciência? –Arabela pousou a agulha. –Eu chamo a isto magia, e magia negra, por acaso. Não sabemos nada disto, e eu cá acho que tivemos sorte de não nos termos magoado até agora. Quer dizer, exceto...–puxou a manga para cima, mostrando os pulsos arranhados de onde tirava o sangue para fazer os truques que aprendera.
–Se não gostas disto, podes sempre não participar, sabes? Não te vai acontecer nada se não fizeres parte, –disse Harlan.
Ela deitou a língua de fora, a cara franzida numa careta. –Nem penses que vos deixo ficar com a diversão toda!
O ritual estava pronto. Não era o primeiro que tinham feito, trancados na pequena sala mal iluminada durante as horas em que ninguém repararia na sua ausência, escondidos atrás de uma ilusão que escondia a porta de entrada da salinha, só pelo sim pelo não. Começaram com coisas simples, como ajudar uma planta a crescer fora de estação ou encantar objetos para serem melhores nos seus propósitos. Harlan tinha conseguido, de alguma forma obscura, encantar um lápis para lhe recitar as fórmulas matemáticas ao ouvido durante os testes.
Mas hoje iam tentar uma coisa mais complicada.
–Tens a certeza que isto vai funcionar? , perguntou Arabela, sentada no chão enquanto Érica acabava de marcar as velhas runas à sua frente.
–Para aí uns 75% de certeza, sim, –riu-se. –Vamos fazer tudo direitinho com cuidado, para correr tudo bem.
–E qual é a probabilidade de isto sair desastrosamente? –perguntou Harlan, sentando-se à beira delas, quase encostado ao círculo que Érica acabava de desenhar no chão.
–15%, acho eu? Mas acho que já aprendemos a lidar com incêndios das outras vezes! E há sempre a probabilidade de não acontecer nada, já não seria a primeira vez.
Harlan riu-se, mas Arabela só hesitou, nervosa.
–Se calhar não devíamos fazer isto.
–Porque não? –disse Harlan, limpando os óculos mais uma vez. –Como é que vamos descobrir se funciona se não tentarmos?
–E se funcionar? –retorquiu. –Não sei se quero que isto funcione. Não devíamos estar a brincar com estas coisas! Imortalidade, gente? Eu tenho a certeza que isso vai correr mal!
Érica ergueu uma sobrancelha. –Ainda podes sair, se quiseres. Mas se funcionar e tu ficares de fora, não te venhas queixar.
Relutante, ela acenou com a cabeça. Érica tinha razão. E, aliás, qual era o pior que podia acontecer?
Foi preciso tanto sangue para aquilo, oh, tanto sangue. Não era por acaso que eram preciso três pessoas: se fossem menos, cada um teria de dar mais de si, a ponto de tornar aquilo genuinamente perigoso. Mas eles já estavam tão habituados àquilo que nem pensaram nisso, nem achavam perturbador ou nojento ter de o fazer assim, ter de usar o próprio sangue para desenhar os símbolos no chão, para desenharem outros símbolos em si mesmos, unindo o coração e o pescoço.
Cruzou os olhos com os dos outros dois. Érica tinha um misto de receio e de excitação na expressão, e Harlan estava simplesmente determinado. Arabela não sabia bem o que sentia, naquele momento.
–Estão prontos? –perguntou Érica. Seria ela a recitar o feitiço.
Acenou com a cabeça, e viu Harlan a fazer o mesmo. Ele pousou a sua mão no centro do círculo mais pequeno desenhado no chão, Érica pôs a sua sobre a dele e Anastácia ficou no topo.
–Estou a falar a sério, –sussurrou Érica. –Quando eu começar a fazer o encantamento, é tudo ou nada. Prometem que não tirem as mãos?
–Prometo, –respondeu Harlan, sem qualquer tipo de hesitação.
Arabela acenou com a cabeça.
Fortitudo furatus ad mortem, começou Érica. Arabela sentiu o coração a bater mais forte, lutando para a manter acordada depois do sangue que tinha perdido. Estava fraca, e os cortes doíam-lhe e, por alguma razão, o símbolo que tinha desenhado no seu pescoço estava a doer-lhe também. Resultado do feitiço?
Victus morte, continuou ela, e Arabela sentiu-se a ficar ainda mais fraca. Era como se a própria alma lhe estivesse a ser arrancada do corpo, estivesse a ser drenada pelo símbolo que desenhou em si e pelos cortes e pelas palavras que a amiga recitava.
Vis ante mortem
A última coisa de que se lembrava era de deixar de sentir a mão sob a dela e de depois ouvir alguém a gritar o seu nome. Depois disso, mais nada.
Érica estava congelada no lugar. Não podia crer. Não, não podia mesmo acreditar que Anastácia tivesse descoberto aquilo, quanto menos que o tivesse contado assim, em voz alta, como se não passasse de um conto de terror qualquer. Aquela não era uma história que ela pudesse contar, não era a história dela! Por mais que a reencarnada só tivesse acertado no nome de Arabela —ou que tivesse escolhido ocultar os outros dois?— mas aquilo era inegável. Era quase um ano da vida dela, o último ano da sua vida, um que tinha acontecido há décadas e décadas atrás... e Anastácia tinha, de alguma forma, descoberto aquilo tudo? Érica jurava que não o tinha contado a ninguém, Harlan com ninguém falava e Arabela, por razões óbvias, também não o podia ter feito.
–Não era ainda hora de trocar histórias de terror! –queixou-se Alma, fazendo beicinho. –Se me queres assustar para eu não fazer magia, isso não me vai convencer. Devolve-me o livro.
Mas Anastácia só abanou a cabeça. –Isto não é uma história de terror, eu juro. É... um bocado mais complicado que isso.
Ela puxou para baixo a gola do pijama, mostrando a marca de nascença. Eduardo sobressaltou-se audivelmente, como que quem via um twist numa telenovela, e Márcio parecia ter perdido todo o sangue que lhe corria nas veias, do tão pálido que estava. Mas Alma só mofou.
–E quê? Inspiraste-te numa marca para inventares isso, parabéns. –Estendou a mão. –O meu caderno?
–Não inventei nada! –disse ela, perturbada. –Têm acontecido coisas estranhas desde que vim para esta escola. O pior são estes pesadelos, os pesadelos constantes que não me deixam dormir. Todas as noites, sonho com a vida de outra pessoa, daquela menina que morreu aqui ao fazer magia. Quando tu me mostraste este livrinho... –ela desviou-se um pouco para o poder pegar e, assim que o fez, Alma roubou-lho da mão. Anastácia suspirou. –Eu soube logo que isso ia dar errado. Se correu tão mal para eles, porque havia de correr bem para nós?
Alma correu Anastácia com o olhar, desde o topo da cabeça, à expressão preocupada, aos pés bem assentes no chão. Depois soltou uma risada.
–Mesmo se estiveres a dizer a verdade, Taci, o que eu acho que não estás... isso só significa que não podemos fazer esse ritual em específico. Eles passaram tanto tempo a fazer coisas tão fixes, porque é que eu desistiria antes de sequer experimentar?
–Porque é perigoso!
–Ela é capaz de ter razão, Alma, –disse Márcio. Agora estava sentado à beira de Eduardo, com a pele mal iluminada pela lanterna lentamente a reganhar a cor.
–A razão não é para aqui chamada, –disse Eduardo, com um sorriso matreiro na cara. –Tu não és obrigado a fazer nada, se não quiseres, –disse, suavemente. –Mas eu concordo com a Alma. Porque não experimentar?
–Bem dito.
Anastácia enterrou a cabeça nas mãos. –Vocês é que sabem. Mas podem não fazer nada disso hoje? Se alguém se magoar, convém termos a quem pedir ajuda.
A isso, os outros aquiesceram.
A conversa demorou imenso a mudar de assunto. Acabaram por trocar histórias de terror, sim, mas a verdade é que nenhuma delas conseguiria competir com as memórias de Anastácia/Arabela.
E Érica? Érica ainda não se tinha mexido do seu lugar, de onde observava o grupo. Estava sentada, flutuando no meio do ar, com os olhos fitos na reencarnada e os pensamentos a prendê-la. A mente voava alto com teorias, soluções hipotéticas, tudo aquilo para a distrair daquilo em que realmente queria pensar. Porque aquela história tinha-a lembrado de um outro tempo, do tempo em que o coração ainda lhe batia no peito, em que vivia, em que Arabela era sua amiga e não a sua assassina. Lembrado de todos os falhanços, de todos os momentos em que podia ter escolhido parar antes de aquela desgraça lhe levar a alma.
Nem percebeu como é que a conversa se virou para Ouija, só reparou que eles estavam a falar disso depois de Alma já ter posto um tabuleiro em cima da mesa de centro.
–Se a escola está assombrada, como tu dizes, porque não comprová-lo?
–Talvez porque não é assim que Ouija funciona, –disse Eduardo, revirando os olhos. –Aliás, Ouija nem sequer funciona! É tudo uma questão psicológica em que...
–Tu acabaste de me ver a fazer um feitiço a partir do meu próprio sangue, –disse Alma. –E não acreditas que isto possa funcionar?
–Eu não estava a dizer para fazeres isso! –disse Anastácia, roubando a prancheta que Alma montava sobre o tabuleiro. Alma agarrou-a, e o que se seguiu foi uma luta por aquele pequeno objeto de madeira, puxado para um lado e para o outro à medida que as raparigas tentavam ambas ficar com ele. A prancheta conseguiu ficar miraculosamente intacta, mesmo depois de arrancada à força das mãos de Anastácia, de voar pelo ar e de se estatelar no chão antes de Alma a conseguir agarrar.
–Da forma que eu vejo, podem acontecer duas coisas, –disse Eduardo. –Ou não acontece nada, e ficamos todos na mesma, ou conseguimos mesmo falar com um espírito e provamos se o que Anastácia diz é verdade. –Virou-se para ela e disse –não vejo como qualquer um desses resultados possa ser mau para ti.
–Eu então somos todos possuídos por fantasmas por estarmos a brincar com isto na véspera de Todos os Santos, –sussurrou Márcio.
Alma fez uma careta. –Isso não vai acontecer. Mas, se fores medricas, podes sempre não o fazer!
Márcio pareceu irado com isso. Desceu do sofá e sentou-se no chão, para ficar mais perto do tabuleiro. –'Bora, então.
–Com uma condição, –disse Eduardo, sorrindo. –Primeiro fazemos sem ninguém tocar na prancheta. Assim, se ela se mover, temos a certeza de que não foi nenhum de nós. E temos a vantagem extra de nenhum de nós poder ficar possuído.
Márcio riu-se. –Por mim, tudo bem. Alma?
–Não vejo porque não. –Olhou para Anastácia com nojo na expressão. –E eu também não te ia deixar tocar na prancheta, fosse como fosse. Assim podias tu mentir e fabricar provas.
–Por mim, funciona, –respondeu a reencarnada.
Alma pousou a prancheta sobre o tabuleiro, olhando Anastácia com desconfiança, mas a outra não fez nada. Márcio levantou-se e pôs-se atrás do sofá, atrás de Eduardo, com muito menos coragem do que há nem um momento, amedrontado do que estava para acontecer.
Érica ainda hesitou. Ficou parada no ar, olhando a pequena prancheta que seria tão fácil de mover, ouvindo a encantação inventada que Alma usava para a chamar.
Será que queria comprovar que Anastácia estava certa? Porque, se fizesse aquilo, seria inegável para todas as testemunhas que a escola estava assombrada e, depois da história que a reencarnada tinha contado, era bem provável que acreditassem mais nela. E, além disso, Érica não gostava assim muito de Anastácia e não queria dar-lhe essa vitória.
Mas toda a lógica foi aos infernos, simplesmente porque lhe apetecia fazê-lo. Já há muito tempo que não tinha tido a oportunidade de fazer uma coisa daquelas, e tinha saudades disso.
Alma já estava a virar-se para Anastácia para se queixar de nada estar a acontecer quando Érica finalmente moveu a prancheta.
Todos reagiram. A cabeça de Alma virou-se tão rápido que parecia que lhe ia saltar do pescoço, os olhos de Anastácia abriram-se em choque. Eduardo estava calmo, e inclinou-se mais para a frente para ver melhor. Márcio encolheu-se, tentando —e falhando— fazer-se pequeno atrás do colega.
–Vocês... viram isto? –perguntou Alma, a sua voz não mais de um sussurro.
Anastácia acenou com a cabeça.
–Estás aí?
Sim, respondeu Érica, movendo a prancheta.
Silêncio. Nenhum dos colegas sabia o que fazer agora, parecia, pela forma como olhavam uns para os outros, à procura de respostas nos olhos uns dos outros.
Foi Anastácia a primeira a ter coragem de falar. –Como te chamas?
Érica teria que escolher aquela mentira com cuidado. Moveu a prancheta devagar, letra a letra, analisando as reações dos colegas ao que ela fazia.
Arabela
Entre todos, apenas Eduardo parecia despreocupado com aquilo. Era o único que não tinha empalidecido, que, diferente dos outros três, não ia cair para o lado a qualquer momento.
–Então o que Anastácia contou foi verdade?
Érica olhou entre eles, entre o medo na face de Márcio e entre o receio nas das miúdas, e só depois decidiu responder.
Sim
Eduardo pousou o queixo nas mãos, pensativo. Nem ele sabia o que dizer, depois daquilo. O grupo entreolhou-se, à procura de conforto uns nos outros. Foi Alma quem teve coragem de falar, desta vez, mesmo que fosse apenas num sussurro hesitante.
–Estes livros de magia, como este caderno que eu encontrei...
Era meu, soletrou. Sim
–Eu não sabia! –Alma saltou do lugar, deixando o caderno cair ao chão. –Eu não sabia que era teu, eu juro! Eu nunca teria pegado nele se soubesse!
Érica riu-se. Pois, servia-lhe bem, depois de ter roubado algo que não lhe pertencia! Mas não queria dar um ataque cardíaco à miúda e, além disso, ela seria muito mais útil se continuasse a praticar magia.
Não faz mal
–Como assim, não faz mal? –Foi Márcio que falou. Sussurrava mas, no silêncio que tinha quebrado, era fácil ouvi-lo. –Roubaste a um fantasma, Alma; independentemente do que ela diga, isso não vai acabar bem para ti.
Uma condição
Se fosse possível, isso fez a negra empalidecer ainda mais. –Qual? –gaguejou.
Continua a estudar magia
–Mesmo depois de sabermos o quão perigosa pode ser? –perguntou Anastácia. Olhava entre Alma, que agora sorria, e o sítio onde Érica estava, à beira do tabuleiro. Depois abanou a cabeça com força. –Por favor, Alma, não faças isso.
–Estás-me a dizer que tenho de escolher entre... fazer magia ou ser assassinada por um fantasma? Qual é que achas que eu vou escolher!
Tem cuidado. Aproveita as notas. Toma conta delas.
–Podemos discutir isso noutra altura, Alma, mas por favor não decidas já.
–Eu tomo conta delas, –respondeu ela, ignorando completamente o que Anastácia dizia. –Prometo.
–O que há de errado contigo? Viste o que aconteceu com o feitiço, tens a confirmação aqui de que alguém morreu por causa disso, e decidiste que a melhor opção é continuar a fazer magia? Que fazer uma promessa a um fantasma é boa ideia?
Érica revirou os olhos. Seria possível que Anastácia fosse mais irritante? Com azar, convencia Alma a desistir daquilo, e Érica não podia deixar que isso acontecesse.
Desceu até às escadas que eram a saída do sótão, as que as raparigas tinham deixado abertas por serem impossíveis de destrancar por dentro, e fechou-as.
A discussão entre os colegas parou imediatamente.
–O que foi aquilo? –perguntou Márcio, assustado.
Alma pegou na sua lanterna, ligou-a e começou a andar para onde tinha ouvido o som. Saiu sozinha de junto do grupo e, menos de um minuto depois, voltou a correr.
–Oh, não. Alguém fechou as escadas do nosso lado. Estamos trancados aqui em cima.
–Acho que sabemos quem foi o alguém, não é, Arabela? –disse Eduardo.
Alma apontou o dedo para Anastácia. –Se tu não tu não a tivesses insultado, isto não teria acontecido! Eu já tinha dito que ia fazer o que ela pediu. Eu ia experimentar com a magia fosse como fosse, e não tinha nada a perder. Mas não, tu tinhas de te meter, não é, sua...
Silêncio, quando as atenções do grupo se viraram para o tabuleiro de Ouija onde, novamente, a prancheta se mexia.
Foi um só feitiço que correu mal. Tenham cuidado, e ficam seguros.
–Ótimo, agora estamos todos a ser ameaçados!
Alma revirou os olhos, irritada, e Anastácia encolheu-se sob o seu olhar.
–O que aconteceu àquele livro da história? Ao feitiço que correu mal? –foi Eduardo que perguntou, surpreendentemente calmo.
Destruído
–Pronto, –disse ele, olhando entre Anastácia e Alma. –Não podemos fazer o feitiço que a matou, nem sequer se quiséssemos.
–Podemos?
Ele riu-se. –Se achas que eu vou ficar de fora disto, estás muito enganada!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro