Capítulo 22
–O que é que estás a fazer aqui?– perguntou Márcio à reencarnada.
O grupo estava de volta ao sótão, como já era costume. O último mês tinha passado assim, devagar e aos poucos, com Anastácia a evitá-los e eles a evitar Anastácia, cuja única companhia tinha passado a ser Harlan. O sol do fim de tarde brilhava por entre as telhas, o ar cheirava a mofo e a húmido, e os sofás e almofadas eram tão confortáveis quanto sempre tinham sido. Perdidos numa discussão acesa sobre o teste do dia anterior, nem sequer tinham ouvido Anastácia a subir as escadas e, a medo, se aproximar deles. Harlan estava um pouco atrás, provavelmente tido sido ele a encorajá-la a fazer aquilo.
–Desculpem, –disse ela. – Desculpa, Érica. Não era suposto magoar-te. Não tenho provas nenhumas da estupidez que disse e, por isso, prometo que não volto a falar sobre isso.
Érica hesitou. Olhou a reencarnada e, atrás dela, viu Harlan dar um pequeno aceno encorajador.
Suspirou. –Só... Estás desculpada, mas eu não ficaria chateada se te sentasses mais longe de mim, desta vez.
Alma riu. –Pois, Taci.
–Quem é que disse que ela era bem-vinda de volta? –acusou Eduardo.
A reencarnada deu um passo atrás, hesitando. –Oh. Pois. Então...
O loirinho riu. –Senta o teu cu aqui. Desde que prometas que não vens mais com histórias.
Anastácia hesitou antes de prometer.
Aquilo parecia demasiado fácil. Enquanto a reencarnada se acomodava entre os colegas, cuja conversa já tinha voltado para a discussão sobre se a resposta certa era 3 ou -3, Harlan sentou-se sobre as almofadas que adornavam o chão, à beira de Érica.
–Como é que fizeste isso? –sussurrou-lhe ela.
–Com aquilo que tu fazes melhor. Convencendo-a.
Ela balançou a cabeça. Eduardo já tinha pegado numa folha de papel para fazer um diagrama sobre as ordens das operações, como se aquilo fosse esclarecer tudo. Anastácia olhava para ele, mas não parecia focada.
–Não me parecia que ela fosse muito fácil de convencer.
Harlan encolheu os ombros, um sorriso a brincar-lhe no canto dos lábios. –Se calhar até sou melhor que tu. O que é que achas que passei o último mês a fazer?
Ela sorriu com ele. Se calhar, até não era assim tão difícil que as coisas voltassem ao normal. A conversa seguiu de tópico em tópico, dos testes para os exames que se aproximavam para fazer cábulas com magia para os feitiços que o grupo queria experimentar.
–Que tal este? –sugeriu Anastácia, sem quaisquer segundas intenções.
Alma pareceu ofendida. –Se calhar ainda não recuperaste totalmente do teu acesso de loucura. Foi por causa desse feitiço que eu fui parar à enfermaria e a Érica acabou suspensa.
–Tecnicamente não foi por causa do feitiço, foi por o tentares fazer sozinha.
–Pois, mas seja como for, eu não me quero arriscar. Há tantos outros mais divertidos. Porque é que quereria ver o passado quando posso fazer com que todo livro de matemática caiba na folha das fórmulas?
E, com isso, o momento passou. Ou, pelo menos, assim o parecia. Tanto que quando, nem sequer dez minutos mais tarde, Anastácia saiu para ir à casa de banho, ninguém sequer o questionou.
Até ser quase hora de jantar, e ela ainda não ter voltado.
–Acham que se arrependeu? –perguntou Eduardo, já a descer as escadas.
–Talvez. Honestamente, nem sequer quero saber, –respondeu Alma.
–Com um bocado de azar, foi estúpida o suficiente para ir fazer o feitiço sozinha!
Harlan e Érica trocaram olhares preocupados.
–Acho que ela não seria tão aventureira assim, –disse Eduardo. –Deve só ter medo de nós.
–Eu vou procurá-la. Não preciso de ir jantar, e espero que não demore muito.
O loirinho encolheu os ombros. –Vocês façam o que quiserem, nós vamos jantar.
E, sem dizer mais nada, Érica e Harlan separaram-se do grupo. Só depois de ouvirem as vozes deles lentamente desaparecer corredor abaixo é que se arriscaram a sussurrar entre eles.
–Em que estás a pensar? –perguntou Érica.
–Que se calhar eles têm razão, e ela simplesmente ficou desconfortável com agora, depois de tudo o que aconteceu, voltar ao grupo. Paranoica como é, se calhar achou-o uma armadilha.
Ela só abanou os ombros em resposta. –Se assim for, se calhar até já voltou para o refeitório. Procuras tu lá em baixo, e eu procuro cá em cima? É mais rápido assim.
Harlan hesitou. –Só espero que saibas o que estás a fazer.
Realmente, ela não fazia ideia.
Desceu, sozinha, pelos corredores ainda iluminados pelo pôr-do-sol, à procura de algum barulho que lhe dissesse onde a reencarnada podia estar. Espreitou para dentro das salas destrancadas, em arrecadações, por cantos e recantos daquela velha escola.
Estacou assim que a viu.
Ela estava sentada no chão, com as costas contra a parede, olhando a antiga entrada da sala onde Érica e Harlan passavam as noites. Tinha as mangas da camisa puxadas para trás, mostrando todos os cortes que tinha feito sobre si. Ainda pingava, lento, em gotas gordas que soavam ao bater no chão, mas pelo menos não corria constante.
Tinha-o usado para fazer o feitiço.
À sua volta, havia símbolos, indicações, riscadas sobre o chão naquela cor nojenta do que coagulava. Tinha-os marcados sobre a face, também; sobre a testa, sobre as pálpebras, sobre a boca. A camisa estava entreaberta, a marca de nascença perfeitamente visível, e marcada também; não por um símbolo, mas como se ela apenas a tivesse tocado com cuidado, no meio de uma visão qualquer que pudesse estar a ter.
Pousado, descartado a seu lado, estava um dos jornais que o tempo apagou.
Não. Oh não. Se aquele feitiço a deixava ver o passado...
–Anastácia? –chamou Érica, de mansinho, com medo de a assustar.
Os olhos da outra não se despegaram da parede à sua frente. O que estaria ela a ver?
–Taci! –repetiu ela, mais alto. Aproximou-se dela. –Estás a sangrar, precisas de ajuda!
Ela tocou-lhe na mão, e foi só aí que a reencarnada se reparou nela, ou só aí que a soube real e não parte de mais uma visão.
O grito lançou foi sobrehumano. Érica saltou para trás, surpreendida.
–O que é que estás a fazer?
–Eu disse que ia encontrar provas! –guinchou Anastácia. –Olha!
O jornal que ela lhe estendia estava tão gasto que parecia perfeitamente branco, quase nem tinha texto. Mas Érica sabia exatamente o que a reencarnada estava a ver ali, e não o conseguiu esconder dela.
–Isso não importa agora. Continuas a sangrar. Podes pelo menos tratar as feridas e podemos falar disto depois?
–Já chegam três pessoas mortas nesta escola, não é?
–Tu não fazes ideia do que estás a falar. –Érica tentou agarrar-lhe o braço para a fazer pôr-se a pé, mas a outra evitou-a e rastejou para trás, para mais longe dela, guinchando.
–Eras tu que aparecias nos meus sonhos? Estiveste-me a mentir desde o início? Quando viste a marca... Quando...
–Não sei do que estás a falar.
–Sabes sim! –gritou ela, com cada vez mais pânico na voz.
Érica não fazia ideia do que fazer. Não era como se a outra se fosse esvair em sangue, mas também não era como os pingos vermelhos que se lhe escapavam fossem parar assim tão cedo, não sem ajuda. Mas, ao mesmo tempo que ela se apercebia que estava genuinamente preocupada com a colega, Érica pensava que estavam num corredor da escola onde ninguém iria àquela hora, e que, se a outra não queria ajuda, talvez ela a devesse deixar ficar sem ajuda. Não havia ninguém a ouvi-las.
–Tu não eras assim antes, pois não? Antes... Tu és muito pior agora, Érica!
–Tu não percebes! –gritou ela, um passo mais perto, de pé sobre a reencarnada esbardalhada no chão.
–Não, tu é que não percebes! –chorou a outra, mais alto ainda. –Era como se eu estivesse lá a cada momento. Era como se...
–Pois, mas eu estive mesmo lá a cada momento!
–Arabela não tirou a mão! –gritou ela. –Estava demasiado fraca, cortou demasiado fundo, e não teve força para a segurar!
Seria... Seria isso possível?
–Não me mintas. –Érica inclinou-se para baixo, agarrando um dos braços da reencarnada, e forçou-a a olhá-la diretamente nos olhos irados.
–Se tu me tivesses dito logo, eu ajudava de certeza! –chorou ela.
Isso, sim, era uma mentira óbvia.
–Precisas de ajuda, Anastácia, –pediu ela, na voz mais suave que foi capaz de usar no estado emocional em que estava.
–Afasta-te de mim!
Isso era perfeitamente justo. Érica soltou-a, e Taci demorou a levantar-se, deixando marcas vermelhas na parede onde se apoiava —seria divertido tentar explicá-las— antes de cambalear corredor abaixo. Érica seguiu-a pouco atrás. Tentava alcançá-la, mas de cada vez que se aproximava nem sequer um pouquinho, a reencarnada ganhava velocidade. Ela ultrapassou-a, e a outra voltou a guinchar, como com medo de sequer a ter perto. Parou de andar, até deu dois passos para trás para se lhe afastar. Érica começou a andar de costas para a poder ver. Os símbolos de sangue estavam a ficar consumidos, agora que ela não os estava a reforçar, mas as marcas amorfas continuavam .
–Precisas de ajuda! –insistiu Érica, com pânico na voz. Não sabia se por si se por ela.
–Preciso é que me deixes em paz! –gritou a outra, tentando avançar em direção à entrada e ao mesmo tempo manter a sua distância de Érica.
Ela deixou-a.
Quando chegou perto das escadas, Anastácia começou a correr por elas abaixo, tropeçando e gritando por ajuda.
Érica congelou. Olhou para o sangue nas próprias mãos e para a rapariguinha que, lá em baixo, chorava alto. Não sabia o que fazer.
A primeira pessoa a vir acorrer tinha de ser logo a diretora da escola. A reencarnada deitou-se logo para os seus braços, sangrando, chorando baba e ranho, balbuciando alguma coisa impercetível enquanto apontava na direção de Érica, no topo das escadas.
Quando ela conseguiu ter força para se mover, os colegas já estavam a sair atrás, para ver a comoção, e os professores já estavam a ter dificuldade em controlar a multidão que se formava. As pernas dela tremiam-lhe com cada passo que ela dava, e ela teve que se parar uma quantidade absurda de vezes por medo de cair dali abaixo. Só queria desaparecer.
Mas... Não era suposto estar tudo a ficar bem?
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro