Capítulo 16
O resto da interrupção letiva passou-se em absoluto e abençoado silêncio. Érica ainda gastou mais uns dias lá no sótão, à espera de ver se a reencarnada voltava, mas parecia mesmo que ela tinha razão e que a miúda estava demasiado assustada para o fazer. Por isso, ela optou por voltar para a salinha secreta para estar com Harlan e aproveitar as semanas que restavam para acabar o resto do feitiço e o rever um milhar de vezes.
Daí a nada, o resto dos alunos haviam de voltar à escola. Chegavam às pinguinhas, nos últimos dias, porque os pais ocupados precisavam de voltar ao trabalho e não conseguiam esperar até ao primeiro dia de aulas para se livrarem da canalha que lá tinham em casa.
–O que fizeram sem mim? –perguntou Eduardo, quando os amigos o foram ajudar a trazer a bagagem de volta ao quarto. Era mais e maior do que quando tinha saído.
–Nada, –disse Márcio, indiferente.
O loirinho ergueu uma sobrancelha. –Porque é que não acredito nisso?
Anastácia riu-se. –Não é por tu seres um mentiroso que toda a gente o é, Edu.
–Não o chames de mentiroso!
Eduardo riu-se, pondo uma mão no braço do amigo. –Não, não, ela tem razão. Não quanto ao facto de eu mentir, claro, mas ao facto de ela ser incapaz de o fazer.
No seu estado invisível, Érica acenou com a cabeça. A reencarnada era demasiado betinha para isso, achava ela. Ou estaria a subestimá-la?
Alma, por sua vez, só chegou uns dias mais tarde, no último momento possível. Nem sequer veio com o maior fluxo de pessoas, na manhã anterior ao primeiro dia de aulas, não. Quando ela chegou, era quase de noite, mas isso não a salvou do abraço atacante que Anastácia lhe lançou assim que a viu.
–Voltaste!
Alma ter-se-ia rido se os seus pulmões não estivessem a ser esmagados com tanta força. –Claro que voltei, –disse, assim que se conseguiu libertar o suficiente para falar. –Não estavas à espera que eu desaparecesse, pois não? Sou mais resistente que isso.
Márcio, que estava agora a chegar à cena de mão dada com Eduardo, sorriu ao ver a amiga. –Acho que estávamos com medo de que os teus pais não te deixassem voltar. Sabes, por causa do que aconteceu...
Alma libertou-se de Anastácia e, em resposta ou que ele disse, fez uma careta. –Pois, pois pois. Eles bem queriam! Mas foi só um acidente, e eu prometi que nunca na vida voltaria a fazer algo de tão estúpido, e eles deixaram-se convencer. Mas claro que me agarraram com tanta força que mal chegávamos à escola a tempo! Ainda devem estar algures à beira dos portões.
Eduardo riu-se. –Imagino. E também imagino que vás voltar a fazer algo tão estúpido quanto.
–Não! –garantiu ela. Depois inclinou-se mais para os amigos e sussurrou. –Está claro. Quer dizer, nada tão estúpido quanto fazer um projeto tão complicado quanto aquele sozinha, mas isso não me vai fazer desistir do resto. Se for para ver o passado, mais vale fazermo-lo todos juntos, não?
Márcio riu-se. –Desde que eu possa estar por perto a supervisionar, porque estes dois também não me inspiram muita confiança.
Alma pegou na própria mala —só uma, desta vez— e começou a subir as escadas para ir para o seu dormitório. Os outros tentaram segui-la, mas ela queixou-se.
–Já é tarde, gente. Nem pensem que vou deixar dois rapazes virem para os dormitórios femininos quando está toda gente de pijama.
–Vá lá? –pediu Eduardo, sorrindo de lado.
–Eu nem gosto de moças, posso-te ajudar com a mala, –ofereceu-se Márcio.
–Xauzinho! –respondeu Alma, e recomeçou a fazer o caminho de volta para o quarto, seguida apenas por Anastácia.
A reencarnada parecia relaxada, ali à beira da amiga. Bem, pelo menos, menos tensa do que tinha estado durante todo o tempo da paragem letiva. Já fazia mais de um minuto desde a última vez que tinha olhado sobre o ombro, o que devia ser um recorde pessoal.
–Oh, pois é, a Érica volta da suspensão amanhã! –disse Alma.
Pois, era definitivamente um recorde que não ia ser batido tão cedo. Anastácia voltou a olhar freneticamente em volta, à procura de algo.
Isso não era nada bom sinal.
–Sim, suponho que sim, ‑respondeu ela, depois do que foi um período desconfortavelmente longo de silêncio.
–Achas que ela vai querer continuar a trabalhar connosco no projeto? Quer dizer, depois do que eu fiz. Ela se calhar acha que é culpa dela por nos ter mostrado os feitiços, não sei, e foi ela que sugeriu que parássemos de fazer magia por um bocadinho...
E, com uma confiança que em nada lhe era característica, Anastácia respondeu– Eu não tenho a mínima dúvida de que ela vai continuar o projeto.
Érica não as seguiu para os quartos. A reencarnada tinha toda a razão: ela não iria parar de trabalhar no feitiço que a libertaria dali. A magia já estava tratada, as palavras escolhidas e relidas um milhar de vezes —Érica releu-as ainda mais uma centena ou duas, essa noite, só para ter a certeza de que estava tudo perfeito— as calculações calculadas e os diagramas diagramados. Agora só faltava mesmo uma coisa e, infelizmente para ela, era provavelmente a coisa mais difícil: o fator humano.
Na manhã seguinte, entrou na escola como si mesma, física e tudo, com a mochila às costas e um caderno na mão.
Foi bom voltar. Havia algo em ter os seus pés a tocar o chão, o sol que atravessava os grandes vitrais a bater-lhe nas costas, em ouvir os próprios passos e carregar o próprio peso que tornava aquela experiência infinitamente diferente da muitas vezes que tinha flutuado por ali, invisível. Tão diferente e tão melhor.
Teria sido melhor ainda se, assim que deu dois passos para o interior do salão, não tivesse sido logo interpelada pela diretora e obrigada a passar cada momento daquela manhã no seu escritório a levar com sermões em cima de sermões.
–Não consegui contactar os teus pais, Érica. Sabes que eles vão ter de cá vir para falar sobre isto, certo? Se não os teus pais, um outro responsável por ti. Se te tivesse acontecido alguma coisa enquanto estavas fora, a escola podia ser tomada como responsável, e...
Pronto, talvez tenham sido mais apelos e demonstrações da preocupação da professora pelo seu bem-estar, mas havia mesmo metidos, lá pelo meio, montões de sermões.
–Vais ter de ter cuidado, este semestre. O que tu fizeste foi muito perigoso, Érica.
Foi preciso todo o seu autocontrolo para não revirar os olhos àquilo. –Eu sei, senhora. Sei-o agora. Garanto-lhe que nada do tipo voltará a acontecer.
A diretora suspirou. –Eu sei, Érica. Espero que estejas a dizer a verdade. Já foste punida o suficiente, penso eu.
Mas quando ela se ia a levantar, a diretora impediu-a.
–Tens a certeza de que estás bem, Érica?
Isso, sim, tomou-a de surpresa. –Professora?
–Não chegamos a falar do porquê de teres feito aquilo; eu estava preocupada com Alma e tu foste-te embora assim que pudeste, mas... –A mulher abanou a cabeça, sem saber bem o que dizer. –Esta escola é um sítio seguro. Se estiveres com algum problema em casa, ou mesmo fora dela, sabes que podes vir falar comigo, certo? Ou com qualquer um dos professores. Estamos cá para isso.
Problemas era algo que não faltava a Érica. Estava com esperança que fossem lentamente reduzindo em número ao longo dos próximos meses mas, conhecendo-se, era bem provável que acabasse por arranjar outros tantos pelo caminho. Mas a esperança era a última a morrer, e a verdade é que Érica tinha chegado à morte muito antes dela!
Mas a expressão da diretora era uma de preocupação, um olhar escuro e pesado que analisava toda. Sabendo que não se livraria daquela mulher sem lhe dar razão, ela suspirou.
–Está tudo bem com a família, professora, prometo. E não, não é normal eu agir assim com tão pouca cabeça: as minhas notas falam por si mesmas... –Érica aproveitou isso para se voltar a sentar. Ah, sim, as notas, o melhor argumento de sempre para fazer os adultos, especialmente os professores, relaxarem. Porque bons alunos nunca seriam traquinas, certo? –É só... Digamos que estou de luto.
–Aconteceu alguma coisa?
Érica não demorou muito a ponderar quanto da verdade contar, deixou logo que os olhos se enchessem de humidade que fingia não poder conter.
–Foi o ano passado. Uma amiga minha, da escola antiga, sabe? Morreu num acidente.
–Oh, –disse a diretora, levantando-se do lugar.
O que é que acontecia quando Érica chorava —ou, melhor, fingia chorar— que fazia os adultos entrarem naquele modo protetor? Ela não se chateava com isso, claro. Era-lhe muito útil.
–Está tudo bem, –disse, enxugando os olhos em vão. –Vai ficar tudo bem.
A diretora entregou-lhe um lenço, e ela aceitou-o avidamente.
–Compreendo, –disse a diretora, com a voz mais calma e mais doce que conseguiu arranjar. –Isso não justifica o que fizeste, claro. Porque é que convenceste a Alma a fazer aquilo contigo?
Bem, para isso teria de pensar numa justificação. –Não queria fazê-lo sozinha, –segredou, já mais capaz de segurar as lágrimas.
A diretora abanou a cabeça, em clara reprovação.
–Eu já estou melhor, –admitiu Érica, limpando os olhos com o que restava do lenço que, de tão húmido, já se começava a desfazer. –Ver a Alma magoada assustou-me tanto! Eu juro que nunca farei nada assim, juro!
A diretora suspirou. –Eu sei, Érica, eu sei. Acredito em ti.
Ela abanou veementemente com a cabeça. –Obrigada.
–Tu devias ir para a aula, –disse a adulta, com pouca convicção. –Não quero ser a razão para tu faltares logo no primeiro dia.
Érica fungou. –Posso... Posso ter uns minutinhos lá fora para me recompor?
A diretora hesitou, mas acabou por assentir. –Vai lavar a cara, relaxa, e tenta não chegar muito atrasada.
Quando Érica saiu daquele escritório, a aula estava mesmo a começar. Parou as lágrimas e limpou a face sem hesitar, feliz por ter aquele tempinho para si mesma no físico do mundo.
A verdade era aquela. Umas palavras bem escolhidas, umas lagriminhas de crocodilo e uma história triste davam-lhe tudo o que precisava. A diretora podia ter sido um grande problema na sua volta à escola mas, depois daquele tempo que Érica que passou a justificar, a probabilidade de voltar a ser importunada era bem baixa mesmo.
Cheque-mate.
Quem lhe dera que fosse tão fácil assim lidar com os colegas...
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