Capítulo 14
–Ela quer-te... ajudar? –perguntou Harlan, tão confuso quanto ela. Desta vez estavam a conversar no sótão, entre o silêncio da noite, enquanto Érica voltava a desesconder os livros que tinha escondido para os vetar antes de os devolver à reencarnada.
Acenou com a cabeça. –Quer-se ver livre de mim, acho. Pensava que estava a enlouquecer, ao ver as coisas desaparecer e mudar de sítio, mas depois lembrou-se que a escola estava assombrada e que ela preferira que não estivesse.
Ele riu. –Imagino! O que eu não percebo é porque é que não disseste que não. Não era suposto nenhum deles se envolver, lembras-te?
Érica parou. Já tinha formado três bons montinhos de livros: um para os que deixaria à mostra para Anastácia, um para os que esconderia por serem demasiado perigosos na sua integridade, e um para os que ainda teria de censurar. Érica já os tinha lido a todos pelo menos uma vez, e a maioria tinha sido passado a pente fino quase tantas vezes quanto ela tinha anos de morte, mas podia sempre haver alguma coisa ali, entre as suas centenas de páginas e milhões de palavras que ela não tivesse ainda visto. Dava sempre jeito ter mais um par de olhos.
–Iam ter de ficar envolvidos de uma forma ou de outra. Nós não conseguimos fazer magia, lembras-te? Precisam de ser eles a fazer o ritual. Já tenho quase tudo calculado, pronto para que possa ser exatamente invertido, e agora só me falta desenhar os diagramas... e faltava-me convencer alguém a ajudar-me, mas parece que isso também já está tratado.
–Ainda é demasiado cedo para te esqueceres o que aconteceu com Alma. É demasiado sangue! Se Anastácia tentar fazer aquilo sozinha...
–Já tivemos esta conversa para aí quarenta vezes, e não me está nada a apetecer repetir tudo!
Ele revirou os olhos. Sentou-se no meio do ar, como era tão raro ele fazer, e esfregou os olhos sob os óculos. –Pois. Mas...
Érica olhou para ele, dando o seu melhor para mostrar o quão irritada estava, mas ele não se deixou dissuadir.
–Eu não gosto de falar disto, –começou ele, –mas acho que temos mesmo. Agora que estás tão perto de... de...
Érica pôs as mãos nas ancas. –Aha! Afinal acreditas que eu vou conseguir! Eu sabia!
Harlan sorriu, mas o gesto não lhe chegou aos olhos. –Talvez.
–Talvez, –gozou ela, antes de mudar mais um livro para o seu respetivo monte.
–Vamos, por um segundo, esquecer a falta de ética de tudo o que tu andas a fazer, o facto de não te importares com ninguém que não sejas tu, e o facto de que isto ainda poder falhar e, além de a matar a ela, destruir-te a ti também. Vamos fingir que já está tudo calculado, tudo perfeitamente pronto, que não há sequer uma única inconsistência no feitiço todo nem qualquer contraindicação que possas encontrar nessa enorme resma de papel que tens aí. –Ele indicou os montes de livros à frente dela que, aos poucos, cresciam. –Vamos esquecer isso tudo.
Érica parou o que estava a fazer para o olhar com mais cuidado. O humor tinha, aos poucos, abandonado o seu tom de voz, e agora ele estava ainda mais sério do que já era costume.
Ficou a olhá-la por um longo momento, analisando-a, deixando os pensamentos nadarem-lhe na mente, perfeitamente visível detrás daqueles olhos profundos. Inclinou-se mais para ela, mais ainda, e depois disse –De certeza que queres fazer isto?
–Sim.
Ela nem hesitou, nem um milissegundo, e ele parecia desapontado com isso.
–Tu vais morrer, Érica. Tipo, é isso mesmo que estás a fazer, a passar para o "outro lado", queira isso dizer o que quiser.
Ela abanou veementemente a cabeça. –Não, não. Eu vou voltar a viver! Vou reverter o ritual, vai ser como se o último século não tivesse acontecido.
–E o que é que achas que vai acontecer quando o fizeres? O teu corpo vai voltar do éter para apanhar a tua alma?
–Não sabes se não será assim, –retorquiu ela. –Isto não é propriamente uma ciência exata. Os nossos corpos deixaram de existir quando aquilo aconteceu, porque é que não haviam de voltar ao normal quando eu o reverter?
Ele balançou a cabeça de um lado ao outro. –Dás-me o feitiço em que estás a trabalhar?
–Se prometeres que não o destróis, claro, –respondeu ela, procurando entre as páginas para se tentar lembrar de onde tinha posto aqueles papéis escritos à mão. –Espero que queiras ajudar, –disse, mais agressiva do que queria.
A verdade, a verdade mesmo, é que queria a ajuda dele. Aquilo seria muito mais fácil se estivessem juntos, se trabalhassem para o mesmo fim. Havia dias em que não podia aturar Harlan, em que as suas idiossincrasias e maneirismos a levavam à loucura, em que a forma de ser dele a incomodava tanto que quase lhe apetecia deitar-se escola fora só para não ter de o ouvir por uns minutinhos. Honestamente, ele achava o mesmo dela; Érica sabia que não era propriamente uma pessoa fácil com quem se estar. Mas, no final de contas, só se tinham um ao outro. Depois de tanto que tinham passado, queria ter o amigo a seu lado.
Suspirou. Harlan ergueu uma sobrancelha questionante, mas ela deitou a língua de fora e conseguiu fazê-lo rir e, com sorte, esquecer-se do que lhe ia perguntar. Ele aceitou as páginas e páginas de notas e apontamentos. –Vou encontrar alguma inconsistência aqui.
–Não duvido! –riu ela. –Ainda não está perfeito. E não, antes que perguntes, eu não vou arriscar fazer nada até que esteja.
Ele sorriu, mas não disse nada.
Ficaram em silêncio sabe-se lá quanto tempo, Harlan lendo aquilo e fazendo pequenas anotações nas margens, e Érica a acabar de organizar os livros de magia. Ela já tinha preparado aquilo tudo quando ele decidiu voltar a falar.
–Não tens medo? –sussurrou.
–Medo de quê?
Ele revirou os olhos, levando aquilo muito mais a sério que ela. –Esquece.
Érica voltou a parar o que estava a fazer —a sério, era completamente impossível trabalhar quando ele estava por perto!— e decidiu-se a dar-lhe toda a sua atenção. Isso pareceu encorajá-lo um pouco. Harlan desceu de onde flutuava, tocando o chão com os pés antes de se voltar a tornar totalmente físico. Deu dois passos, apenas o suficiente para ficar mesmo ao lado de Érica, virado para o mesmo sítio que ela. Não a queria olhar nos olhos, talvez, ou talvez estivesse só a fazer tempo antes de ter de admitir aquilo em que pensava.
Suspirou.
–Não tens medo do que vai acontecer depois? –sussurrou.
Érica examinou-o de cima a baixo, tentando ler-lhe a expressão, mas ele recusava-se a olhá-la de volta. Empurrava os óculos para cima repetidamente, e era óbvio que estava nervoso.
Ela não sabia o que responder. Se fosse honesta, admitiria que nunca tinha pensado nisso.
–Se funcionar na perfeição, isso não muda o facto de que não há nada lá fora para nós. Nem família, nem amigos, nem sequer um sítio onde viver, –explicou ele. –E, se não for perfeito a cem porcento...
Ele hesitou, abanando a cabeça como que para apagar aquele pensamento da face da terra.
–Vais mesmo fazer isto, Érica?
Ela baixou os olhos para o chão, para os montes organizados de livros à sua frente, para as próprias mãos pousadas sobre o colo que se remexiam mutuamente.
–Sim, –respondeu.
Harlan não gostou daquela resposta. Érica podia vê-lo a arrefecer, a congelar, a afastar-se daquele tema difícil.
–Tu sabes que sim, não é? –tentou remediar, procurando contacto visual com ele, que a continuava a evitar. –Eu não sei o que vai acontecer depois, nem o que me espera, nem... Mas, bem, ninguém sabe. E a verdade é que eu acho que vale a pena o risco.
–Tu é que sabes, –retorquiu ele, tentando levantar-se. Érica pousou-lhe uma mão sobre o ombro, e ele virou-se finalmente para ela.
–Vou ficar sozinho, –sussurrou ele, a voz quebrando.
Oh. Então era isso.
–Tu não precisas de mim para nada! E sabes bem que, se quiseres, podes sempre vir também.
–Não estou pronto, –admitiu ele, mais baixo ainda, como se nem sequer quisesse dizer aquilo em voz alta. –Para nenhuma das opções.
–Ainda não está nada feito, –garantiu ela. –Sabe-se lá quando é que vamos conseguir resolver isto. Ainda vais ter de me aturar por um bom tempo!
Ele sorriu, mas isso não durou muito. Desenvencilhou-se da mão de Érica e levantou-se para sacudir o uniforme. –Pois, –disse, como se não quisesse mais pensar naquilo e aquela palavra conseguisse, por si só apagar o tópico.
–Harlan.
Ele não se voltou a virar para a olhar.
–Isto não é um adeus. Sabes disso, não sabes? Mesmo que o feitiço faça com que eu desapareça para sempre... Isso é a pior das hipóteses, e mesmo essa ainda está a meses de distância, pelo menos meses! Eu não vou a lado nenhum. E definitivamente sem saber que ficas bem.
Harlan lançou um riso de escárnio mas, quando falou, a voz tremia-lhe. Era por isso que não se virava para a olhar. Não queria que ela soubesse que estava prestes a chorar. Mas Érica conhecia-o demasiado bem para que isso funcionasse.
–Quantas vezes é que te tenho de dizer que conheço os teus tiques todos e sei quando estás a mentir? Só há uma coisa com que tu te importas, Érica, e é contigo mesma, –atacou ele, com todo o desprezo que conseguiu arranjar. –E eu... eu vou ter de fazer a minha paz com isso, acho eu. Claro que ia chegar um dia em que isso tinha de acontecer.
–Isso?
Ele suspirou. –Com o facto de que as coisas mudam, mas as pessoas não.
Érica mal pensou antes de se levantar para o envolver num abraço, apanhando-lhe as costas e apertando-as contra si. Harlan ficou tenso por um momento, mas isso foi um momento apenas antes de ele se deixar sentir reconfortado com aquilo.
Não era como se fosse durar muito, não é, e ele desenvencilhou-se dos braços dela logo de seguida. Enxugou os olhos antes de se virar.
–Não te vou mesmo convencer a ficar, pois não?
Érica abanou a cabeça, e ele voltou a suspirar.
–Eu também não te consigo convencer a vir?
Harlan hesitou. Depois abanou a cabeça, bem mais gentilmente que ela. –Não. Ainda não, pelo menos. –Sorriu, um pouco apenas. –Faz lá o que quer que seja que estavas a fazer. Garante que está tudo certo, que tem de correr tudo bem. Eu vou... para outro sítio qualquer.
Érica sorriu-lhe de volta. –Obrigada por não me tentares dissuadir.
Ele hesitou, mas não disse mais nada antes de sair dali. E Érica? Érica voltou ao trabalho. Toda aquela conversa não significaria nada se ela não conseguisse resolver o problema que tinha em mãos, certo? Organizar os livros era só uma parte muito pequena de tudo aquilo. Fazer os cálculos e teorias e testes demoraria muito mais tempo, e ela não tinha a certeza se o havia de conseguir fazer sozinha.
Demorou dias até ela descobrir o que se estava realmente a passar com os colegas.
A primeira pista parecia inócua por si só. Ao voltar a vasculhar o quarto de Anastácia à procura de algo suspeito, Érica encontrou, entre um montão de anotações sobre feitiços e a teoria de como o ritual tinha corrido mal, um velho jornal a falar sobre a morte de Arabela. Parecia só parte das pesquisas, uma confirmação de que as coisas tinham acontecido exatamente como ela achava que tinham. A data estava rodeada a lápis.
Anastácia voltou-se a encontrar com Eduardo uma e outra vez, visto que ele não tinha problema nenhum em ensinar-lhe alguma da magia que sabia. Até Márcio se lhes juntava, às vezes, e a salinha que tinha dado tanto trabalho a guardar e esconder voltava a ser construída aos poucos. Uma cadeira num dia, uma poltrona noutro e, daí a pouco, já estava quase tudo de volta ao sítio. E estava a correr tudo bem para o grupinho! Ninguém sabia do que faziam ali, os professores tinham relaxado desde o último incidente, e estavam a aproveitar os pequenos encontros para estudar para os testes além de magia. Estava tudo a correr bem!
Pelo menos até Alma decidir, sem avisar ninguém, vir dar um pulinho ao sótão, e os encontrar ali todos reunidos... sem ela.
Palavrões foras as primeiras coisas que saíram da boca dela. Seguidos de uma cambada de "como se atrevem" e "pensava que estávamos a parar com isto por enquanto" e "wow até tu, Anastácia?"
–Então era para aqui que vocês andavam a desaparecer? –exclamou. –Primeiro tomam a decisão de deixar de fazer magia —sem mim, acrescente-se!— e depois fazem-na na mesma?
–Estamos só a estudar, Alma, calma, –disse Márcio, mostrando o caderno de história. –Só decidimos voltar para o sótão porque era o melhor sítio onde o fazer.
Alma só pôs uma mão na anca e apontou para os livros de magia claramente empilhados à beira do sofá. Eduardo riu-se.
–Não leves a mal, –disse Anastácia. –Era só que tu não estavas bem, e nenhum de nós queria que te magoasses mais.
–E tendo em conta de que não fizeste mais magia desde então, eu diria que funcionou! –acrescentou Eduardo, o que só a fez ficar mais zangada. Baixou-se, pegou num dos livros do chão e atirou-o à cabeça do loirinho, que se conseguiu desviar no último momento, deixando Márcio apanhar aquilo do meio do ar.
–Podes-te juntar, se quiseres, –disse Anastácia, numa tentativa fútil de tentar difundir a situação.
–Podes apostar que posso!
–Mas o Márcio estava a dizer a verdade. Agora estamos mesmo só a estudar história.
Eduardo conseguiu, desta vez, segurar o riso, mas isso não foi o suficiente para conseguir evitar o olhar assassino que a colega lhe lançou.
–Queres explicar à Alma o que se tem passado? –sugeriu ele, para se livrar da atenção da negra. Funcionou, pelo menos temporariamente.
Anastácia não ficou nada feliz com o facto de ter de falar. Olhou sobre o ombro, depois sobre o outro, e a toda a volta do espaço mal iluminado do sótão. Isso pôs o resto do grupo ligeiramente tenso.
–Estamos a tentar ajudar Arabela, –disse ela, devagar.
Alma inclinou a cabeça para o lado, confusa. –A fantasma? –A colega acenou a cabeça em confirmação. –A dos teus sonhos?
Aí, Anastácia hesitou. –Sim.
–A ajudá-la a fazer o quê?
–A sair da escola, –respondeu Eduardo. –É uma fantasma, não consegue fazer magia, e está presa aqui dentro por um feitiço que não tem forma de cancelar.
Anastácia baixou os olhos ao caderno, talvez apercebendo-se que o seu plano de estudar para o teste não tinha mais maneira de funcionar. Provavelmente era isso.
–Foi por isso que ela nos disse para aprender magia? –Alma sentou-se, finalmente, à beira do grupo. –Para a podermos ajudar?
Eduardo encolheu os ombros. –Supomos que sim. Ela não pareceu ficar chateada quando tu paraste de fazer magia, pois não?
–Pois, acho que não?
Ele acenou com a cabeça. –Provavelmente porque Anastácia prometeu ajudá-la.
–Eu teria aprendido magia na mesma, mas não sei se a ajudaria. Nem sequer sei se seria capaz! Se esse era o plano dela, é um plano muito estúpido. Aliás, nós somos estudantes do último ano; se a Érica não soubesse já disto, quiçá se íamos aprender tudo a tempo? –exclamou. –Aliás, a Érica sequer sabe o que estamos a tentar fazer? Nem tenho o contacto dela nem nada, nem sequer lhe cheguei a agradecer...
–A Érica não precisa de saber, –respondeu Anastácia, ligeiramente irritada. –Primeiro não está cá, segundo é "externa" e não tem que lidar com isto quando as coisas correrem mal, –justificou-se, olhando a toda à volta como se estivesse à procura de alguma coisa. Do fantasma de Arabela, provavelmente.
–Está tudo bem, Taci? –perguntou Márcio, inclinando-se para ela. Anastácia suspirou.
–Só stressada com tudo isto, acho eu. Tenho muita coisa em que pensar. Agora podemos voltar ao estudo? Quando os testes acabarem, tenho tempo para pensar no resto.
–Se há alguém que tem isto no papo, és tu, nerd de história, –comentou Eduardo.
–Olha quem fala, média-de-noventa-e-cinco!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro