Capítulo 10
O dia voou num instante e, em menos de nada, ela estava sentada no sofá do sótão, a ensinar a Alma e a Eduardo os básicos da magia. Anastácia estava ali, também, de pé encostada a uma estante e recusando-se a fazer aquilo com eles. Era mais como um pai ou professor a mantê-los sob olho e menos como uma colega.
–Resumidamente, –disse Érica, tentando sumarizar aquilo que tinha passado talvez demasiado tempo a explicar. –Cada feitiço tem duas partes: um pedido e um pagamento. O pagamento é fácil, é umas gotinhas de sangue, e a quantidade depende de quão grande é a magia. E o pedido em si pode ser um gesto, um comando verbal ou ambos.
–O que é que acontece quando não fazemos algo direito?
Ela encolheu os ombros. –Normalmente, absolutamente nada. Outras vezes a magia pode ser ligeiramente literal e fazer algo que nós não queremos. Por isso dá sempre jeito ter cuidado.
Anastácia abanou a cabeça, mas não disse nada. Alma revirou-lhe os olhos.
–E tu sabes fazer magia, mas não a consegues fazer, porque...
–Porque um feitiço correu mal. –Bem, aquilo era tecnicamente verdade, mesmo que nada do que se seguia o fosse. –Acho que não devo ter pagado o preço suficiente para uma experiência que estava a fazer, e agora não consigo fazer nenhum feitiço. –Riu. –É como se o meu sangue tivesse crédito negativo.
Eduardo riu-se. –Se o problema é dinheiro, eu conheço um gajo...
Alma bateu-lhe na parte detrás da cabeça. –Tu às vezes és tão burro!
Érica abriu o caderno que Alma roubava, à procura de uma anotação em específico que sabia ali estar. Devia ter usado aquele feitiço mais de um milhão de vezes mas, todo este tempo depois, queria ter a certeza de o estar a fazer direito. Além disso, queria confirmar se sempre era possível fazer magia com a energia de outrem. Entregou a lâmina a Eduardo que, de entre os dois, parecia ser o que mais coragem tinha.
–Que foi?
–Tira um bocado e eu mostro-te. Considera-o um empréstimo.
Alma fez uma careta. –Só não o faças na mão, que demora uma eternidade a sarar!
Ele olhou entre ela, a lâmina e a expressão de Anastácia, que o olhava. Depois encolheu os ombros e fez um corte pouco profundo nas costas do braço.
Aquilo sim, era estranho. Mas ela só precisava de umas gotinhas para demonstrar o que queria.
–Este é um feitiço simples mas que contém as três partes. O pagamento, –gesticulou para os dedos húmidos de vermelho, –Uma indicação...
Estendeu a palma da mão limpa e, com o sangue roubado, desenhou uma linha desde a base dela e a ponta do dedo médio. Repetiu o gesto para o indicador e para o polegar, deixando as linhas todas encontrarem-se na base da mão. Depois tocou com a ponta do dedo médio nesse ponto, fechando o círculo.
–Depois o comando verbal... Move-te, –ordenou, abrindo a mão marcada em direção ao caderno em cima da mesa. –E, por último, os gestos.
Fechou os dedos como se estivesse a pegar no caderno, só que à distância, e depois ergueu a mão. Isso foi o suficiente para fazer o caderno de erguer um pouco e para o sangue roubado começar a ser gasto. Com tão pouco, o feitiço não durou por muito tempo e, depois de Érica erguer um pouco mais o caderno, ele voltou a cair de volta para a mesa.
Os dedos formigavam-lhe como que com eletricidade, e o pouco sangue que roubou a Eduardo tinha desaparecido. Bem, pelo menos sabia que aquilo funcionava! E que ainda não lhe tinha perdido o jeito.
Mostrou a palma agora limpa para os colegas, incluindo Anastácia. Ela tinha empalidecido e, com isso, decidido sentar-se numa das poltronas durante a demonstração de Érica.
–O sangue desapareceu? –exclamou ela.
Érica riu-se. –Claro! É o pagamento. A magia cobra-nos para existir.
Bem, o sangue não era dela, e o pagamento também não. Mas isso eram só detalhes, nada de importante.
Eduardo sorriu. Mexeu a pele para fazer o corte voltar a sangrar e, com cuidado, imitou o que Érica tinha feito.
O feitiço funcionou à primeira, mas foram preciso duas ou três tentativas até ele conseguir agarrar suficientemente bem no caderno para que ele não lhe escapasse. –É mais difícil do que parece, –desculpou-se ele, pousando o caderno de volta na mesa, agora que o desenho a sangue já tinha quase todo desaparecido. Abanou a mão agora limpa. –Mas... wow.
Érica riu-se. Sim, não haveria palavra melhor que "wow" para descrever a sensação de lançar um feitiço. O tremer dos dedos, aquele formigueiro elétrico que se espalhava por si adentro, aquela leveza súbita de possuir menos um pedaço de si, mesmo que temporariamente. Eduardo aproximou-se do caderno e começou a folhear, emocionado com aquilo.
–Deixa-me a mim tentar! –queixou-se Alma, empurrando-o para o lado na brincadeira. –Ou achas que é tudo para ti?
–Este sangue é meu, muito obrigada, e preferiria se ficasse para mim sim.
–Tu não tens graça!
Érica estendeu-lhe uma lâmina que tinha trazido exatamente para aquela situação. –Escolhe outra coisa em que pegar, desde que seja leve. É preciso um feitiço mais complicado se assim for e, além disso, quanto mais pesado, mais energia leva...
–Sim, sim! –disse ela, não esperando para a explicação para fazer um corte leve na parte de trás do antebraço. –Quanto mais energia leva, mais sangue é preciso. Eu aprendo rápido!
Fez os desenhos na mão à pressa, e notava-se. Mas o feitiço, sendo tão simples assim, não se pareceu incomodar com isso. Ela demorou ainda mais que Eduardo a finalmente conseguir agarrar o seu objeto de opção, a prancheta do tabuleiro de Ouija que tinha ali sido abandonado depois do desastre da última vez. Quando o conseguiu, pô-lo a dançar no ar, balançando sobre a mesa de centro e a andar aos círculos como se voasse. Mas não chegou a gastar todo o pagamento porque, antes de a prancheta cair, Anastácia decidiu finalmente intervir e pescá-la da sua frente.
–Hei! –exclamou Alma, levantando-se para ameaçar a colega. –Se tu não queres participar, não estejas aqui, mas não sejas uma desmancha-prazeres!
Anastácia olhou para ela sem expressão. Depois suspirou, andando em direção à mesa para devolver a prancheta.
–Tenho medo, –admitiu, a voz não mais alta que um suspiro. –E não percebo como é que vocês não têm.
Alma encolheu os ombros. –Não é que não tenha medo, é só que a curiosidade é maior que ele. –Teve que refazer a encantação e tentar voltar a pegar na prancheta antes de a conseguir voltar a flutuar. –E o que é a pior coisa que pode acontecer?
Pois, qual mesmo? Érica riu-se para si mesma, mas aparentemente foi menos discreta do que queria porque Anastácia se virou para ela.
–E tu não tens medo porque...
–Nada me pode magoar, –respondeu honestamente, ainda antes de pensar. –Ao contrário destes dois bananas, eu sei o que faço! –mentiu.
Eduardo riu-se. –Tem cuidado, Érica, que em menos de nada eu vou ser melhor que tu!
–Está apostado.
Anastácia acabou por se sentar ao lado deles, no monte de almofadas empilhadas no chão. –E tu, Eduardo, porque é que não tens medo?
–Não faço a mínima. Mas, seja porque for, é fixe, porque me deixa fazer isto sem me ter de preocupar. –Segurava uma pequena chama sobre a palma da mão, numa imitação perfeita, se mais forte ainda, do primeiro feitiço que Alma lhe tinha mostrado.
Anastácia sorriu. Sentou-se à beira deles, não parecendo completamente convencida pelos argumentos dos colegas, mas deixando que aquelas palavras a tranquilizassem o suficiente para deixar de os tentar impedir.
Não participou nesse dia, só ficou a ouvir as explicações que Érica dava sobre a base dos feitiços, as coisas teóricas que tinha aprendido durante anos de estudo na altura em que não tinha literalmente mais nada para fazer. As explicações de como deviam pensar na magia como uma entidade, não bem uma pessoa e não bem um animal, mas algo bem mais fluido que um conjunto de regras e de operações. Também não participou no dia seguinte, nem no a seguir a esse. Tomava notas num caderninho, e era muito óbvio que estava a prestar atenção a tudo aquilo, mas não tinha conseguido a coragem de sequer tentar aquelas coisas mais fáceis que eles já tinham abandonado há semanas. A complexidade das coisas ia aumentando, e a regularidade daqueles encontros clandestinos também, ao ponto em que aquilo mais parecia uma extracurricular do que um encontro
Durante as aulas, continuava tudo normal. Magia era o seu segredo, e nenhum deles queria partilhá-lo. Apenas Márcio, que andava cada vez mais colado a Eduardo, sabia o que eles faziam, mas depois de Alma ameaçar amaldiçoá-lo, jurou pela própria vida que nunca se chibaria. Não precisava de saber que Alma mentia! Nenhum deles queria usar aquele poder para partidas ou coisas pequenas, e portanto nunca o usavam em frente aos colegas ou professores. Não havia risco de serem descobertos.
Durante a noite, era um pouco diferente. Enquanto eles dormiam, Érica continuava os estudos, continuava à procura de uma solução. Habituou-se a picar os braços de Anastácia, tirando-lhe as mais pequenas gotas de sangue para experimentar. Não era pior que uma picada de mosquito, e demoraria até que a reencarnada descobrisse que havia algo de errado. Não parecia haver nada de especial nele, pelo menos nada que Érica conseguisse encontrar. Mas isso não a ia impedir de continuar à procura.
Infelizmente ou não, não era a única ambiciosa ali. Érica e Anastácia bem avisavam os outros dois que era necessário que deixassem as feridas sarar, que não deviam arriscar tanto, que tirarem o seu próprio sangue daquela forma podia ser perigoso se não tivessem cuidado. Mas Alma e Eduardo eram ótimos a ignorá-las e, honestamente, até parecia que ficavam melhores ainda com a prática, com o completo desprezar de cada aviso e de cada subsequente sermão. Os braços deles estavam a ficar marcados de cicatrizes, de linhas gastas, mas eles não queriam saber. Porque quereriam, quando isso os deixava encantar objetos, criar ilusões, até ver o passado?
Mas foi esse último feitiço que correu mal e que acabou com Alma na enfermaria.
Era um encantamento complexo, um que ela não devia sequer ter tentado fazer sozinha. O problema foi que, quando tinha sugerido aquele feitiço aos colegas, Érica os conseguiu convencer de que aquilo era complexo e perigoso demais. Eduardo pouco interesse tinha naquele, e desistiu facilmente, mas Anastácia parecia interessada, interessada demais para o seu próprio bem.
–Está bem! –teve Érica que dizer. –Está bem, vais poder fazer esse feitiço, mas não agora. Tens que aprender os básicos primeiro.
–Mas eu...
–Mas nada! E não digas que tens estudado muito e tal, que não é a mesma coisa. Isto é perigoso e, se correr mal porque tu não sabias como o fazer direito, a culpa vai ser toda tua! –Aquela tinha sido a sua última esperança, a única maneira de conseguir dissuadir Anastácia de o tentar. A malfadada reencarnada já tinha acesso demais ao passado de Érica, e ela não queria que a outra conseguisse mais ainda.
A outra finalmente assentiu. –Está bem. Então o que é que tenho de fazer?
Alma bufou e, enquanto Érica estava entretida a ensinar Anastácia, agora que ela tinha finalmente decidido juntar-se à diversão toda —quem diria que seria Alma a convencê-la?— e Eduardo estava a fazer os cálculos para o símbolo de um novo feitiço, saiu sótão a fora. Ninguém lhe deu muita atenção, realmente. A moça era teimosa como um jumento, e em nada valia a pena tentar mudar-lhe de ideias mas, normalmente, quando as coisas não corriam como ela as queria, precisava de um tempinho para arranjar novos argumentos ou para se acalmar. Nem reparam que ela tinha levado o caderno onde tinha lido aquilo ou, se repararam, não lhe deram a importância que deviam.
Normalmente, Márcio dava o seu melhor para soar forte e despreocupado e por isso, quando o ouviram gritar os seus nomes, desceram os três à pressa para ver o que se passava.
Alma estava na arrecadação, a sangrar no chão, com os desenhos e encantações feitos a sangue sobre a sua pele, sangue que não tinha todo sido gasto pelo feitiço, ou porque ela desistiu a meio ou porque a fraqueza tomou essa decisão por ela.
–Eu estou bem! –insistiu ela, agarrando o braço com força para tentar parar o sangue.
–Estás bem o tanas! –gritou Érica, procurando à volta por algo que pudesse usar para atar a ferida por onde a outra ainda sangrava. Anastácia rasgou a camisa do uniforme e deu-lhe o trapo para tentar ajudar, Eduardo saiu à procura de ajuda e foi Márcio que pegou na rapariguinha para a levar dali para fora, mesmo contra a barragem de insultos que ela lhe lançava.
Érica limpou os desenhos de sangue da face da amiga, não querendo sequer imaginar o que seria dito se alguém fora do grupo os visse. –Se tu não ficares bem depressa, eu juro que eu ainda te bato por cima, –disse. Alma riu-se de volta, fraca. Érica deixou-a e ficou para trás para fechar as escadas para o sótão e a porta do armário de arrumações. Só desceu para a enfermaria quando garantiu que aquilo estava novamente escondido.
–Desviem-se! –indicava a diretora aos alunos que se tinham acumulado ao ver a colega a passar. –O que aconteceu?
–Encontrei-a assim, –respondeu Márcio, deixando que a adulta pegasse em Alma.
–Eu tenho pés! –guinchava ela, ainda agarrada ao braço ferido. –Deixem-me ir ao chão!
–Ainda estás a pingar sangue, –respondeu Eduardo. –Por isso, não acho que seja uma boa ideia.
Alma deitou a língua de fora.
–Meninos, deixem-na. Eu vou levá-la para a enfermaria, e ver se ela precisa de ir ao hospital ou não. Vocês os três, –indicou o grupinho, exceto Érica, que estava metida entre a multidão de alunos que se tinha formado atrás deles –podem esperar por mim no meu gabinete. O resto, fora! –gritou. Assim que chegou à enfermaria e pousou Alma numa das macas, trancou a porta para não deixar mais ninguém entrar.
Só aí é que Érica se conseguiu juntar aos colegas.
–O que é que vamos fazer?
–Eles vão tratar dela. O enfermeiro é ótimo, e temos muito mais equipamento do que uma escola normal. E ainda bem, que o hospital fica a quê, uma hora e tal pela autoestrada? –disse Eduardo.
–O que raio é que vocês andam a fazer para isto acontecer? –sibilou Márcio, baixinho, irado.
–Eu juro que nós não fizemos nada. Se ela nos tivesse ouvido, isto não teria acontecido!
–Mas aconteceu, o problema é esse! –Virou-se para Eduardo. –Por favor diz-me, honestamente, que não andas a fazer estupidezes destas?
–Prometo.
–Ela vai ficar bem, –disse Anastácia.
Érica hesitou um pouco. –Pois vai, –assentiu. –Mas e nós?
–Achas que eles pensam que foi um de nós que a magoou?
Eduardo abanou a cabeça. –Eles vão ver as cicatrizes que ela tem, e achar que a culpa é dela.
–Mas a culpa é nossa, –disse Anastácia. –Se eu tivesse ido com ela...
Érica levantou uma mão para a calar. –Não vale a pena pensar nisso agora. Eles não sabem o que aconteceu e, se depender de mim, não vão saber. –Virou-se e começou a andar.
–Onde é que pensas que vais?
Ela hesitou. Depois virou-se para trás e olhou Márcio na cara. –Não há nada que possa fazer por ela. Vou lá acima limpar e esconder os livros.
–Porquê? –perguntou Eduardo.
Sei lá, porque se sentia culpada, talvez? –Até ela ficar melhor e até isto acalmar, seria boa ideia não mexermos mais com... aquilo, –disse, olhando para os poucos alunos que ainda rodeavam a entrada da enfermaria, não querendo ser sobreouvida. –Ela magoou-se por causadisso, e devíamos pensar bem, juntos e com calma, o que devemos fazer agora. –Etambém não queria que ninguém fosse tentar curá-la com magia porque, além deisso ser pior para a pobre Alma, acabaria com todos eles expulsos por fazeremparte de um culto qualquer.
‑Eu vou contigo, –disse Eduardo.
Ela riu. –Nem penses. Se tu souberes onde eles estão, é inútil sequer mudá-los de sítio. Fica aqui a tomar conta do Márcio.
–Hei!
Anastácia abanou a cabeça. –Então eu vou contigo. Senão vais ficar lá a tarde toda.
Érica hesitou. –Tudo bem, –disse. –Anda.
Nota da Autora
Ui ui ui! Como estão hoje, meus amores? Eu estou bem ^u^ Passei sabe-se lá bem quanto tempo a tentar fazer o set-up do que vem a seguir e, assim que me lembrei desta solução, ficou tudo mais resolvido... Ainda tenho muito trabalho pela frente, sim, mas agora sei pelo menos em que direção o livro terá que ir, o que já é, em si, uma grande vitória!
O que acharam disto? É um par de cenas muito... estranhas. Lembrem-se que este é apenas um primeiro rascunho do livro e, por isso, ainda pode mudar muita coisa (e, com isso em mente, desculpem a falta de qualidade aqui!) Não estou nada habituada a trabalhar com grupos tão grandes de personagens, demorei meses a lhes decorar os nomes e as personalidades ainda estão como work-in-progress então se tiverem dicas, guias ou soluções especificamente para este tipo de problemas, I'd love to see them! Digam-me! Preciso mesmo de ajuda...
Seja como for, bons dias, boas tardes ou boas noites, dependendo da hora e do local onde se encontra, e beijinhos, até à próxima! Tchüss~
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