Capítulo 1
Eles tiveram cuidado de não serem os primeiros a chegar. Tornaram-se físicos num corredor desocupado, depois de terem garantido que não havia ninguém por perto para os ver a aparecer do nada, e esconderam-se num canto qualquer para vestirem as fardas escolares que Érica tinha gamado do armazém. Quando chegaram ao grande átrio de entrada, virando discretamente de um dos corredores laterais como se sempre estivessem estado ali, já o espaço estava cheio da azáfama comum ao primeiro dia de aulas.
Em todas as obras que tinham ali sido feitas, a grande Hall de entrada estava exatamente igual. O ar cheirava a campo, à brisa fresca de final de verão que entornava para lá para dentro pelas enormes portas de madeira, escancaradas para deixar a multidão de alunos passar por elas sem impedimentos. A falta de teto fazia com que o espaço parecesse ainda maior que era, com os vitrais velhos e coloridos que ficavam por cima da porta a esticarem-se para cima para tentar tocar o céu, a um andar de altura para que a traquinice dos alunos tivesse menos probabilidade de os danificar. O mais perto que se lhe conseguia chegar era a partir do patamar do primeiro andar, aquela balaustrada em meio-arco que dava teto a apenas metade do espaço, aquela cuja entrada ficava entre as escadas simétricas que levavam lá para cima, escondida atrás das cortinas vermelhas, que servia de sala de lazer e de cantina. O mármore do chão, a madeira escura das balaustradas e das portas, o enorme castiçal de ouro dependurado do longínquo teto... estava tudo igual. Melhor, estava melhor; estava igual ao que estivera, todas essas décadas atrás, antes do desuso e do abandono deixar que os bichos comessem a madeira e que o chão perdesse o seu brilho. Se não fosse a diferença nas fardas dos alunos e a forma das malas que eram levadas para os dormitórios, ela teria achado que estava novamente de volta ao tempo em que costumava estar viva.
–Até está bonito, –disse ele, seco.
–Sim, está, –respondeu ela, sem sequer ter vontade de lhe revirar os olhos e de se chatear com ele por ser tão insípido.
Sentaram-se nas escadas, lado a lado, iluminados pela luz elétrica do castiçal e pelos poucos raios de sol que, àquela hora, atravessavam o grande vitral na fachada virada a norte. Ele tinha trazido um livro, o mesmo que já tinha lido um milhão de vezes, e já o tinha pousado no colo para voltar a começar tudo a partir da primeira página. Ela aproveitava para analisar a multidão.
As despedidas já tinham sido feitas, achava ela, porque não havia um único paizinho ou empregado ali dentro, a ajudar aquela gente finória carregar as malas para os dormitórios ou sequer para os confortar naquela partida. Aquele sítio era um colégio interno, no seu cerne, independentemente de agora ter decidido aceitar alunos externos, e a maioria daquelas crianças e jovens só iam voltar a ver a família daí a meses. O dinheiro comprava aos pais uns meses de silêncio em casa, e aos filhos conecções que poderiam usar mais tarde na sua vida profissional. Toda a gente saía a ganhar, em teoria.
Os mais novos pareciam não querer saber. Depois da correria de serem levados para os dormitórios e apresentados aos colegas, já estavam a formar círculos para jogar em roda ou para se apresentarem uns aos outros. Os mais velhos variavam mais. Alguns pareciam-se já conhecer, e conversavam baixinho pelos cantos, outros tentavam apresentar-se aos novos colegas de turma, e outros ainda estavam sentados por aí ou encostados às paredes, tentando evitar a confusão e adaptar-se ao facto de a escola não permitir que os alunos tivessem telemóveis. As conversas que Érica conseguia ouvir eram sobre as férias de verão, o tempo passado nas Caraíbas ou no Dubai com a família rica, e ela estava a dar o seu melhor por as achar desinteressantes. Uma das piores coisas de ser um fantasma a assombrar uma escola, imagine-se, era o facto de nunca mais poder de lá sair. Adeusinho, férias de praia em lugares exóticos!
Depois do que lhe pareceu uma eternidade, os funcionários começaram a fechar as grandes portas que davam entrada ao edifício. As conversas começaram a reduzir, os círculos de crianças começaram a dispersar e, quando a nova diretora da escola apareceu na balaustrada do primeiro andar que sobrevia todo o grande átrio, já quase havia silêncio. Érica não se deu ao trabalho de se levantar para a ver melhor, e Harlan nem tampouco fechou o livro que relia. Os discursos tendiam a ser sempre iguais.
–Bom dia, estudantes! Sejam bem-vindos ao Conservatório Dædalus, que será a nova casa da maioria de vós durante este ano letivo. A escola abriu este ano e, por isso, está nas vossas mãos forjar a reputação pela qual será conhecida!
Harlan suprimiu um riso.
–Parece que aquela que nós lhe demos da última vez não serviu, –sussurrou-lhe Érica.
–Mudaram-lhe o nome e tudo! Pois, acho que não, –respondeu ele.
–Este edifício foi renovado, –continuou a diretora. –Era originalmente um palácio vitoriano, e foi apenas mais tarde convertido para uma escola e nós tivemos, portanto, de garantir que vós tereis todas as acomodações necessárias para o tempo que aqui vão passar. Além das remodelações à construção principal, temos também campos de jogos e um programa equestre, juntamente com um pavilhão com piscina construído de raiz para vós!
Ela sorriu. Talvez passar a eternidade trancada naquela escola não fosse assim tão mau.
O discurso continuou, referindo informações que deviam ser novas para a maioria dos alunos, mas não para ela. Ela conhecia aquelas regras todas de cor e salteado. O que não significava que estivesse preparada para as cumprir. Depois os professores foram apresentados, e a seguir os diretores de turma começaram a chamar as suas turmas, aluno a aluno, para o que seria uma rápida tour do edifício antes da hora de almoço. Começaram pelos mais novos, como já era costume, e não demorou até que as únicas pessoas que ali restavam serem os estudantes do último ano e os restantes professores. Pelo menos não demoraria até serem também eles chamados.
A turma era pequena. Minúscula, até. A escola era nova e, sendo aquele o último ano do currículo, não devia valer muito a pena para os paisinhos inscrever os filhos ali só para ter de os mudar no ano seguinte. Eram dez alunos, se tanto, incluindo-a a ela e a Harlan. Era triste, mesmo.
–Érica... Finch.
O diretor de turma hesitou ao ler o nome dela, e Harlan aproveitou enquanto ela se levantava para lhe sussurrar ao ouvido –Eu avisei-te que íamos ser reconhecidos.
Ela encolheu os ombros e seguiu para o grupinho de gente que se aglomerava à volta do professor. Era suposto ser uma filinha indiana, mas nenhum daqueles jovens parecia estar com paciência para isso e por isso, quando o professor os começou a guiar pelos corredores que Érica já conhecia tão bem, a turma já estava a toda ao molho e fé em deus.
As fardas dificultavam a tarefa de tentar perceber a personalidade dos alunos. Ela ia ter o ano todo para os conhecer, certo, mas quem tinha paciência para isso? Por isso, em vez de prestar atenção ao que o professor dizia, explicando que atrás da quinquagésima porta igual estaria mais uma sala de aula, ela pôs-se a fazer conversa.
Márcio, aquele rapazinho forte, de tez morena e com o andar de quem se estava a tentar fazer maior do que realmente era, devia ser filho de militares. Se ela tivesse de adivinhar, tinha sido mandado para aquela escola por ter sido expulsa da anterior, especialmente julgando pelo olhar ávido que lançava ao loirinho que ia à sua frente ou, melhor dizendo, ao Rolex que ele tinha no pulso. Alma também lhe chamou a atenção, provavelmente por estar com a camisa desabotoada a mostrar uma t-shirt que dizia "so emo I was born black" o que, por mais que parecesse ser a verdade, era uma clara violação das regras de vestuário.
Desacelerou o passo, voltando para junto de Harlan que, casmurro como sempre, se tinha recusado a começar conversa com qualquer um dos do grupo.
–O que achas? –perguntou ele, perfeitamente desinteressado.
–Algo me diz que vai ser um ano em cheio.
–Só tu para achares que isso é uma coisa boa! Eu espero mesmo que estejas errada. Como, aliás, já é costume, –acrescentou.
–Hei!
Mas Harlan estava a sorrir e, por isso, ela deixou o insulto passar.
Ela não soube bem o que é que a fez reparar na rapariga que ia na frente do grupo, quase colada ao professor. O facto de ser a única a ainda estar atenta, talvez, quando o professor enumerava as regras da escola pela terceira vez? Não era pelo uniforme, de certeza, que estava imaculado, nem devia ser pelo perfeitamente ordinário cabelo castanho que estava cortado pelos ombros, nem pela tez pálida, nem pela cara tão comum que ela quase achou que se tratasse de outra pessoa. Ou talvez fosse mesmo por causa daquela cara tão esquecível? Pelo dejà vu que lhe causou, mais exatamente falando.
–Aquela moça não parece alguém que conhecemos? –perguntou ela a Harlan, quando finalmente viraram para sair do edifício principal numa pequena tour pelos pomares e jardins.
Ele encolheu os ombros. –É possível. Filha de alguém que tenha andado aqui antes da escola fechar? Ou neta de algum dos nossos colegas de turma. Não sei.
Érica inclinou a cabeça, pouco convencida. –É. Talvez.
A temperatura amena do ar, mesmo àquela hora tão perto do almoço, traía que o verão estava para findar. O cheiro de relva cortada enchia-lhe as narinas, trazido pela mesma brisa que lhe apresentava o cantar dos pássaros e do riacho que corria ali perto e das conversas dos alunos que já tinham acabado a tour por ela não estar a ser dada pelo maldito professor Goddard, o mais lento e chato de todos.
Vista de fora, a escola era ainda mais imponente. A fachada estava a levar com mais sol, a esta hora, o que dava mais brio e brilho às pedras beges de que era construída e mais cores ao grande vitral que decorava acima das portas fechadas. Simétricos, à direita e à esquerda, os dormitórios esticavam-se ao céu, parecidos com torres de castelo, se as suas janelas não fossem tão amplas e o seu telhado tão íngreme, do mesmo verde escuro que o do sótão que cobria as partes mais baixas do edifício.
Tinha um certo charme, ver aquilo assim, comparar a forma como a pedra lavada à pressão estava agora a como tinha estado durante o seu tempo de abandono. Não havia uma única janela partida, ali, e havia ali muitas janelas para partir. Ela apostava que não ia demorar muito tempo até que uma bola de futebol aparecesse para retificar isso.
Atrás, escondido quase por vergonha, ficava o pavilhão novo. Era tão básico, comparativamente! As paredes deviam ser de plástico ou de coisa parecida, pintadas da mesma cor que a pedra do edifício tentando, em vão, absorver para si algum do seu charme. Tinha uns glorificados buracos para o ar, numa linha perto do topo, a fingir que eram janelas, e nem sequer telhado tinha. Com tanta área onde o construir, tinha mesmo de ficar tão perto do corpo da escola? Os estábulos também ficavam mais ou menos à mesma distância, sim, mas os estábulos eram pelo menos bonitos!
–Não gosto de como puseram isto, –queixou-se Harlan. –Pelo menos aquilo que já cá estava não ficou pior.
–Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, –respondeu ela, encolhendo os ombros. –Pelo menos fica escondido atrás do edifício. Tu não vieste passear fora daquela sala durante todo o tempo que o estavam a construir, e por isso não tens razão de queixa. Podias ter evitado uma surpresa desagradável.
–Não era por não ser surpresa que ia deixar de ser desagradável.
Ela deixou-o queixar. Quase parecia um avozinho, da forma como o fazia, e ela já há muito que tinha deixado de tentar convencer a parar. Felizmente não teve de o aguentar por muito tempo, desta vez, que o tour finalmente acabou e o Doutor Goddard deixou a turma ficar na treta no jardim durante o pouco tempo antes de o almoço ser servido. Tempo que ela obviamente aproveitou para ir fazer conversa com a estranha misteriosa que a fazia lembrar-se de alguém.
A miúda estava sentada na relva, à sombra de uma das grandes árvores, a escrever num caderno que trazia ao colo. Estava a ir devagar, pausadamente, com o cuidado que era costume os alunos darem às anotações apenas durante os primeiros dias de aulas, antes de as pressas do costume voltarem a tornar a caligrafia em linhas todas escangalhadas. Érica sentou-se à frente dela, pensando que aquela tinha mesmo a cara —e o estojo!— de ser uma das poucas pessoas que realmente conseguia manter tudo organizado até ao fim.
Assim, mais de perto, a sensação de que a conhecia de algum lado só se estava a tornar mais forte.
–Eu chamo-me Érica, –apresentou-se ela, desenvergonhada. –Estou na tua turma.
A outra tirou a tampa do lado de trás da caneta de feltro colorida para a tapar, com um sorriso nervoso na cara. –Prazer, Érica. Eu sou a Anastácia.
Não, ela não se lembrava de nenhuma Anastácia.
–É bom conhecer-te! Vais ficar aqui interna?
Anastácia abanou a cabeça, ligeiramente desapontada, voltando a arrumar os milhentos marcadores e canetas coloridas com que enfeitava as notas que tomava de volta no estojo.
–Porque é que vieste para aqui? –perguntou Anastácia, as palavras a voar-lhe da boca antes que se tivesse apercebido de que aquilo pudesse ser rude. Corou profusamente, tentando desculpar-se. –Quer dizer, para aqui para a escola, não para a minha beira! É só que notei que a turma era pequena, e parece-me que cada um tem as suas razões para vir para uma escola onde só vai poder passar um ano. Quer dizer...
Érica riu-se, abanando uma mão no ar para desfazer as preocupações da outra. –A minha avó era aqui aluna, –explicou, mentindo. –Ela morreu o ano passado e, quando eu ouvi que a escola ia voltar a abrir, pedi logo para me mudar para aqui.
Anastácia acenou com a cabeça, compreensiva. –As minhas condolências.
Érica virou a cara para esconder um riso abafado que acabou por soar mais como um soluço. –Não faz mal. Eu vim por causa disso, e aquele moço ali, –disse, indicando Harlan, –é meu vizinho e decidiu vir também. Não era propriamente popular no nosso antigo colégio, sabes, e deves poder adivinhar porquê...
Ele já estava quase a acabar de ler o maldito livro, talvez porque já sabia tantas das palavras de cor que nem sequer precisava de as ver escritas na página. Estava encostado ao edifício, com os grandes óculos redondos empoleirados na ponta no nariz e o cabelo impecavelmente penteado a mostrar o quão velho a mente dele realmente era.
Quando Anastácia se virou para o olhar, Érica congelou. Aquele simples movimento da cabeça tinha servido para revelar aquele símbolo, aquele maldito símbolo que ela tinha marcado sobre a clavícula, a tocar na base do pescoço. Ela agora percebia de onde tinha reconhecido Anastácia.
Mas aquilo era impossível, não era? Quase um século depois...
–O que tens aí no pescoço? –perguntou Érica, recuperada do choque e fazendo o seu melhor por parecer despreocupada.
Anastácia desviou o colarinho da camisa branca do uniforme, despreocupada, mostrando ainda mais daquela maldita coisa.
–É uma marca de nascença, –explicou ela. –É estranha, não é? Parece um desenho.
–Parece, sim, –murmurou ela, em resposta. Depois levantou-se, sacudindo a relva que se lhe tinha colado à saia. –É gira, até, –elogiou, escondendo o seu vitriol atrás de um sorriso.
Anastácia acenou com a cabeça, voltando a esconder a marca com a camisa. –Vais sair?
–Sim. Tenho que ir falar com o Harlan, para ver se vamos comer aqui na cantina ou se vamos para casa. Somos externos, e as aulas só começam amanhã.
–Oh.
–Vejo-te por aí? –perguntou, já virada para se afastar.
A outra só acenou com a cabeça.
O que Érica sabia muito bem e de que Anastácia não fazia ideia era que, debaixo do colarinho da fantasma, se encontrava uma cicatriz queimada a fogo, exatamente no mesmo sítio e da mesma cor daquela "marca de nascença" dela. Aquilo estava mais assombrado que aquela escola! Independentemente do que Érica fizesse, fosse isso ficar etérea e transparente para todos que não ela e Harlan, fosse mudar de corpo de cada vez que queria ser uma nova aluna naquela escola, na altura em que a sua face ainda podia ser reconhecida, fosse das várias vezes em que tinha sido desfeita molécula a molécula ao tentar sair dos limites da escola, fosse daquela embaraçosa vez em que tinha decidido tentar possuir o antigo diretor do colégio... aquela marca, aquela maldita marca que era parte do feitiço que a tinha matado tinha, de alguma forma, aparecido numa rapariga que ela nunca tinha visto mais gorda.
–Onde vais? –perguntou-lhe Harlan, marcando a página que lia com o dedo, sem fechar completamente o livro.
–Levanta-te e vamos embora. Temos de conversar.
Ele riu. –Já te apresentaste a toda a gente? Estás a dizer que não me vais obrigar a ficar para o almoço na cantina? Ou será que te lembraste do quão horrível é para nós comer?
Érica agarrou-lhe na mão para o ajudar a levantar-se, irritada. Não era nada daquilo!
–Eu já sei de onde a reconheci, Harlan. A Arabela voltou só que, desta vez, chama-se Anastácia.
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