Capítulo 0
–É amanhã!
Harlan nem se deu ao trabalho de erguer os olhos do papel onde escrevia. O lápis parou, sim, mas era difícil saber se era apenas por ela o ter distraído. Érica bufou, atirando-se para a sua poltrona centenária.
–Oh, vá lá! Já estivemos tanto tempo presos aqui sozinhos, só os dois... como é que não estás entusiasmado por a escola reabrir?
Desta vez ele reagiu. Pousou o lápis sobre a resma de papel que segurava no colo, empurrou os óculos mais para cima e olhou-a com intensidade através deles. Érica riu-se, ajustando-se na poltrona.
–Faz-te de irritado, faz. Mas eu cá acho que nos vai fazer bem aos dois sair daqui.
Aquela sala não era realmente a melhor de todas. Tinha quatro paredes forradas com estantes de livros e de documentos, uma janela e nenhuma porta. Cheirava sempre a mofo, a humidade e a papel velho. Seria quase um milagre que aqueles livros antiquíssimos não tivessem todos ainda sido comidos por bichinhos da prata, se ela não conhecesse a forma quase religiosa com que Harlan tomava conta deles. Estavam ali fechados há décadas, e Érica estava a ficar um pouco cansada disso.
–Sabes bem que eu prefiro o silêncio, –disse ele, finalmente.
–Bem, pelo menos as obras acabaram!– ela atirou os braços ao ar, celebrando. –Foram anos daquilo. Eu não sei como é que conseguiqs escrever com aquela barulheira toda...
Ele voltou a pegar no lápis. –Eu consigo escrever contigo à beira, Érica. Tudo parece fácil, comparativamente.
–Tu adoras-me, –disse ela.
Harlan não conseguiu conter aquele sorrisinho.
–E além disso, –continuou, disfarçando –Não acredito muito que ter duas centenas de adolescentes pela escola, dia e noite, seja uma tão boa alternativa quanto tu queres fazer parecer.
Ela levantou um dedo para o calar. –Vai ter menos alunos internos.
–Que grande diferença.
–Há positivos! –defendeu ela. –Eles estão a puseram livros novos na biblioteca. E computadores! Alguma vez usaste um computador?
–Não, Érica, nunca usei um computador.
Ela pôs-se em pé e, sorrindo, deixou-se flutuar para perto de uma das estantes que decoravam as paredes. –Talvez te consiga gamar um livro ou dois, se for ligeira. Mas se tu aceitares ser aluno...
Ele suspirou, pousando novamente o lápis ao perceber que ela não se ia calar tão cedo. Até pousou os papéis onde escrevia na mesinha de apoio à beira dele.
–Já tivemos esta conversa para aí dez vezes, Érica. Nós estamos mortos. Não é suposto estarmos a mexer nessas coisas, a influenciar...
Ela fez beicinho, virando-se para ele de rompante ainda com um livro da estante na mão. –Vá lá! Ninguém vai descobrir. E depois de todo o trabalho que eu tive a falsificar as nossas inscrições...
–Érica!
Ela riu-se, voltando a pôr o livro no sítio. –O mínimo que podes fazer é vir comigo amanhã!
–Érica...
–Érica nada! –Ela sentou-se no ar, ignorando a cadeira ao aproveitar o facto de poder flutuar. –Eu até pus na tua fichinha que tu tinhas um problema qualquer de saúde que te dá as faltas justificadas, e eu posso sempre inventar alguma coisa de sermos vizinhos para poder avisar aos professores quando tu não vens...
Ele suspirou sonoramente, fingindo irritação.
–Tu não aprendes, pois não?
–Eu aprendo a ser melhor naquilo que faço, sim.
Se fosse a primeira vez que ela usava aquela desculpa, ele talvez tivesse sorrido. Mas como era a quadragésima, ele simplesmente a ignorou.
–Pelo menos diz-me que não usaste os nossos nomes verdadeiros?
Ela hesitou, mas conseguiu falar ainda antes de ele ter tempo para reclamar
–A escola está fechada há cinquenta e tal anos, Harlan. Ninguém os vai reconhecer. E eu por acaso fartei-me de usar nomes falsos para aí à terceira vez que tivemos de os mudar.
Ele pôs a cara nas mãos, algures entre o exasperado e um ataque de riso. Ela esticou os pés para os fazer tocar o chão.
–Eu não te posso obrigar a vir, Harlan. Mas, se quiseres, estás convidado.
Ele desprendeu a cara das mãos, passando-as pelo cabelo imaculadamente penteado. Depois ganhou força para se levantar e, abanando a cabeça, dirigiu-se a uma das estantes onde guardava o montão de manuscritos que tinha acumulado ao longo dos anos. Remexeu-lhes, à procura de algo. Ele tinha sempre os pés tão assentes no chão...
–Eu tenho mais medo do que tu farás se eu não te mantiver debaixo de olho. Por isso, eu vou.
Ela não escondeu o seu agrado.
–Mas, em troca... –continuou ele, encontrando o maço de papéos específico de que estava à procura. –vais-me ajudar a editar este livro.
–Temos acordo!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro