Está a incomodar-me ainda não lhe ter dito que o conheço. Reconheci-o nas notícias de hoje de manhã. Ontem, quando o vi e conversámos durante cinco minutos, já adivinhava que o reconhecia de algum lugar, mas hoje, quando vi as noticias, imediatamente me apercebi de que o meu instinto não me enganara. Apesar da barba feita, a forma de falar mantém-se fiel à daqueles tempos em que quase diariamente aparecia na televisão a pedir coragem ao povo, a oferecer mensagens de esperança ou a dar gritos de revolta. Eu era uma fã incondicional da sua forma de estar e das suas medidas, apesar de algumas poderem ter sido controversas, pelo que não me foi difícil decorar-lhe alguns tiques de expressão e até, de forma inconsciente, treinar algumas formas de reconhecimento vocal. Hoje no café, fiz questão de lhe dizer que não tinha culpa, que se libertasse desse peso, mas julgo que ele não entendeu, ou não associou. Não sei se lhe diga agora que sei quem ele é, mas que apesar disso, não o culpo de nada, nem da eminência de quase ter morrido hoje, nem da morte do meu marido há alguns anos atrás. As coisas são como são, por vezes temos de tomar decisões difíceis na vida e quando nos perguntam, entre dois filhos, qual queremos salvar, provavelmente não vamos conseguir tomar uma decisão e vamos adiar essa decisão até que os dois morram porque não conseguimos salvar um deles, mas quando nos perguntam se queremos salvar os nossos filhos ou os nossos pais, por muito complicado que seja decidir, vamos salvar os nossos filhos, porque apesar de amarmos ambos, sabemos que não é possível salvar a todos e temos de tomar a decisão mais lógica nesse momento. Creio que foi esse o sentimento que brotou na mente deste homem à minha frente, quando anos antes, foi obrigado a tomar a segunda decisão mais difícil de toda a sua vida. A segunda, porque a decisão mais difícil, creio que foi ontem, entre viver e morrer, naquele momento entre escolher a entregar-se à pena que ele próprio criou ou à salvação que ele recusou a tantos.