Parte 3 - Narrador 2
Curioso, como o amor se pode manifestar nas situações mais descabidas. Aliás, eu já devia saber que não há situações descabidas para o amor acontecer. Chamem-me louco, chamem-me insensato, mas com a minha idade sei perceber quando o amor surge, mesmo que por pequenos instantes. A vida tem-me ensinado a amar sobre as mais diversas circunstâncias e descobri ao longo dos anos que existem muitas formas de amar. Podemos e devemos meter o nosso amor em tudo o que fazemos e seremos o espelho da felicidade, por muitas barreiras que surjam no nosso campo de batalha. “Cento e vinte e dois”, ouço o número e confirmo na tela, depois confirmo no papel e levanto-me com todas as forças do meu ser. Está na hora de encarar de frente a decisão mais difícil da minha vida, decisão tomada há quinze anos perante toda a contestação de um povo que hoje nem me reconhece. Com a vida de trabalho ficou o homem de barbas compridas, e é sem barbas que hoje me apresento ao lado destes camaradas que são recrutados para o dia do fim. Antes de avançar para a área de inquérito olho mais uma vez para o último amor da minha vida, abano a cabeça, sei que ela será a seguir, tirou a senha a seguir à minha e sentou-se ao meu lado, e consequência desse ato, nasceu este amor. “Cento e vinte e dois”, ouço outra vez a voz impaciente por motivo da minha demora. Terá sido o amor número cento e vinte e dois da minha vida? Repetem o número e desta vez, sigo destemido. A senhora que até então me chamava de forma impaciente, mostra agora um sorriso ternurento, fruto dos seus quarenta, como explica na música dos meus tempos de criança. Convida-me a entrar por uma porta, lá dentro vão estar os especialistas para me interrogar. No corredor, existem portas por todo lado, vidraças transparentes deixam ver dois especialistas por cada velho, alguns filhos dos velhos, representantes legais dos velhos, advogados dos velhos e os próprios velhos. A senhora na casa dos quarenta convida-me a entrar numa dessas portas e junta-se a um outro especialista que já nos espera. Sento-me antes que me convidem a sentar, encho um copo de água antes que alguém mo ofereça, e encosto-me para trás a fim de gozar pela última vez do conforto de um sofá. “Trouxe a sua identificação?”, questiona o especialista, sociólogo, segundo a placa ao peito. Não respondo. Tiro apenas a carteira do bolso de trás das calças de linho, abro-a sobre a pequena mesa entre mim e os especialistas e tiro o meu cartão do cidadão. “O senhor? Por amor de Deus, sabe que nem teremos de continuar esta entrevista, certo? Desculpe, não o reconheci de imediato”, replica o homem, muito acelerado, a voz a atropelar a sua calma de há pouco, enquanto começa a preencher os meus dados no pc sobre a mesa. Mostra a minha identificação à senhora, ambos partilham um olhar que não consigo distinguir se é de medo, se é de cumplicidade, se é de pânico por não saberem muito bem o que fazer. Eu não respondo a nada, ninguém me pergunta nada, mantenho silêncio e olho para a figura parva que ambos estão a fazer. A senhora levanta-se e vai buscar uma folha à impressora a uns três metros dali. Traz ainda um carimbo consigo, um carimbo verde, e passa o testemunho para a mão do colega de secretária. Este pega no carimbo e prepara-se para bater o carimbo, quando finalmente faço soar a minha voz:
- O que está a fazer? Isso não é contra o regulamento? Ninguém me colocou qualquer questão. Não me recordo de serem estes os procedimentos, segundo o que tive a oportunidade de estudar - ironizo. - Mas o doutor tem o diploma que garante que o Estado paga o seu imposto cinco para mais cinco anos de vida - replica o jovem, ingénuo. - Sim, mas sabe que esse direito tem de ser por mim pronunciado e exigido, caso contrário terei de ser sujeito aos mesmos testes que todos os outros velhos das salas vizinhas.
- Entendo perfeitamente, mas o senhor doutor não se negaria a usar desse direito, certo? - Pergunta a senhora dos amáveis quarenta anos. - Errado. - Respondo firme, sem me justificar.
- Desculpe a ousadia, mas estou certo de que estaremos a perder tempo. Se renunciar a esse direito, estará apenas a adiar uma decisão que à partida parece ser óbvia. O doutor tem uma filha formada, de certeza que também juntou algum dinheiro durante os seus anos de atividade, parece estar em perfeito estado de saúde, e com toda a certeza tem condições de viver mais uns anos sem depender do governo. - Insiste o irritante sociólogo. Por que raio pode um tipo com um curso de sociologia tomar por suas as opções que pertencem aos outros. Será que dão aulas de liberdade e livre arbítrio no curso de sociologia?
- Por favor, coloque as questões que tem para colocar, eu responderei às mesmas e aguardarei um veredicto justo.
Temos de ser firmes, quando queremos ensinar a alguém, lições sobre liberdade. O livre arbítrio é o maior dos tesouros que temos à nossa disposição.
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