Prólogo
ᨖ 𝐄𝐯𝐚 𝐒𝐢𝐧𝐜𝐥𝐚𝐢𝐫 ᨖ
Seattle
A rua estava vazia, escura e fria. As rápidas e finas gotas de chuva molhavam minhas roupas ensanguentadas conforme eu andava, me deixando incomodada com a sensação desagradável daqueles tecidos encharcados colados na minha pele.
Olhei para as minhas mãos, especificadamente para as manchas de sangues que as cobriam. Então, parei em frente a uma vitrine, analisando meu reflexo e constatando a imundície que meu corpo se encontrava. Pude sentir um nó se formar em minha garganta.
— O que eu faço agora? – perguntei retoricamente ao meu próprio reflexo, observando as lágrimas que traçavam um caminho único pelo meu rosto, até finalmente cederem ao chão, misturando-se com aquela chuva incessante.
Era uma pergunta idiota! Não existia o que se fazer. Meu pai estava morto... Eu o matei! Matei um dos policiais mais renomados de Seattle, era questão de tempo até que viessem me encarcerar. Eu não posso deixar que isso aconteça. Não quero ser presa!
Desviei meu olhar da vitrine para o chão e continuei a caminhar, sem rumo. Apesar da tremedeira de frio que a combinação que minhas roupas encharcadas e o vento gelado ocasionavam, eu ainda conseguia sentir o calor daqueles dedos que antes pressionaram o meu corpo e me tocaram à força. Ainda conseguia sentir as mãos daquele homem no meu pescoço, prendendo minhas vias respiratórias. Conseguia visualizar seus olhos cheios de desejo em minha direção. Os mesmos olhos que deveriam me olhar apenas com carinho paternal. Sentia seu repulsivo e ainda quente sangue em mim, fazendo-me sentir imunda de todas as maneiras possíveis.
Como ele pôde fazer isso comigo? Como pude confiar nele? Meu próprio pai...
Solucei, tentando prender em vão minhas lágrimas. Então ergui meu olhar, ainda sem saber que direção tomar.
Foi então que um vulto passou poucos centímetros a minha frente, me fazendo parar de andar abruptamente, assustada. Que diabos? Olhei em volta, buscando quem interrompeu meu momento melancólico. Não vejo nada.
Decidi continuar a caminhar, dessa vez um pouco mais rápido. Enfiei minha mão no bolso da calça, apertando o canivete suíço que estava ali dentro. Passos audíveis se manifestaram atrás de mim e me virei para olhar. Ninguém, não havia ninguém.
Você está enlouquecendo, Eva.
Continuei, ainda tensa. Um frio na minha barriga fez o meu corpo inteiro tensionar, conforme a sensação de estar sendo vigiada ficava cada vez mais drástica. Minhas pernas estavam bambas, mas eu não me deixei cair. Meus olhos analisaram cada canto do horizonte à minha frente, me deixando alerta para qualquer sinal.
Ouvi os passos novamente, em um ritmo consideravelmente mais acelerado. Dessa vez, decidi não olhar para trás de novo, apenas comecei a correr sem uma direção específica. Não consegui escutar a pessoa me seguindo, mas tampouco consegui parar de correr.
E então, um vulto esbarrou em mim, me derrubando no chão. Olhei ao redor desnorteada, mas não havia ninguém comigo. Absolutamente ninguém.
Mesmo com as gotas de chuva caindo sobre mim o tempo todo, senti meus lábios se secarem e a minha garganta se fechar. Minhas veias pulsavam em adrenalina. O medo me consumia de uma forma que eu simplesmente não conseguia parar de senti-lo por um segundo sequer.
Antes que eu conseguisse me levantar, senti um ardor latejante em meu braço. Um corte que ia da lateral da minha mão até meu antebraço começou a jorrar sangue sem parar, me fazendo berrar de dor. Me curvei sobre minhas pernas, apertando com força o braço – agora ferido – tentando desesperadamente conter a dor ou o fluxo de sangue. Até surgir um par de sapatos em meu campo de visão. Me forcei a olhar para cima, encontrando dois olhos vermelhos me encarando com desdém.
Um vermelho tão intenso quanto o sangue que corria do meu braço.
— P-Por favor, me ajude! – supliquei, com esforço. Eu não sabia quem era, sequer sabia se era ele que havia feito isso comigo. Minha mente não conseguia mais raciocinar normalmente por conta da fraqueza. Fechei os meus olhos, com a sensação de tontura me dominando por completo.
Senti seus braços me pegarem no colo, então me encolhi contra o seu peito, pressionando nossos corpos em uma tentativa inútil de conter o líquido vermelho que o meu corte despejava.
Olhei para a sua face, tentando o reconhecer. Cabelos loiros escuros, um rosto fino e marcado. Eu já vi esse rosto antes, mas simplesmente não consegui lembrar de onde.
— Para onde está me levando? – perguntei em um sussurro, mas fui ignorada. — Para onde você está me levando? – questionei, dessa vez com a voz mais firme. Então o escutei soltar um suspiro cansado.
Sem me responder, ele começou a correr em uma velocidade completamente anormal, ainda me carregando. Eu vi os prédios se tornarem vultos e fechei os olhos com força, sentindo náuseas. Uma onda de vento colidiu com brutalidade contra o meu rosto, roubando o meu ar. Meu coração acelerou, bombardeando meu peito com tanta força que parecia prestes a explodir. Era rápido demais. Como podia ser tão rápido?
Em alguns segundos, o homem parou de correr. Ao abrir meus olhos, vejo que estamos em um cenário completamente diferente do qual estávamos momentos antes. Fui carregada para dentro de uma casa desconhecida, ainda me sentindo zonza demais para abrir a boca. Ele me deixou sobre uma cama e se virou de costas para mim, enquanto mexia em alguma coisa sobre uma bancada.
— Como… como você fez isso? - indaguei, recuperando o fôlego.
Lutei contra a ânsia de vômito que tentava me dominar. Olhei de volta para as suas costas, enfurecida por ter sido ignorada novamente. Bufei de frustração e me deitei na cama, me deixando levar pela fraqueza. Meus olhos começavam a pesar e a dor ainda queimava em meu braço. Eu queria me manter alerta, apavorada com a hipótese dele me tocar, mas a inconsciência começou a falar mais alto.
— O que você está fazendo? - perguntei, mesmo sabendo que não seria respondida. Era apenas em uma tentativa de me manter acordada, mas dar continuidade ao monólogo não estava ajudando muito. Agarrei novamente meu canivete e em alguns segundos, eu apaguei completamente.
⊹────⊱♱⊰────⊹
Abri os olhos, sonolenta, esfregando-os com a mão direita. Uma dor latente na lateral do meu braço quase me fez ver estrelinhas. Olhei para o meu membro, que agora estava enfaixado com um curativo mal feito, me relembrando do evento da noite anterior. Analisei o lugar ao meu redor, hesitante. A casa estava completamente bagunçada, cheia de coisas espalhadas e sujas, como se ninguém pisasse aqui dentro por anos. A cama e as minhas roupas ainda estavam molhadas e ensanguentadas, o que me fez suspirar de alívio. Se permaneci do mesmo jeito que adormeci, eu poderia concluir que ele não havia me despido ou me tocado de uma forma inapropriada. Não tinha como ter certeza, mas eu rezava aos céus para estar certa.
A porta se abriu com certa violência, me assustando. O homem loiro de ontem me encarou sério. Senti um arrepio percorrer toda a extensão da minha espinha só de ver novamente suas iris escarlate. Meu corpo inteiro tremeu, mas eu tentei ao máximo não demonstrar meu medo quando mantive meus olhos fixos nos seus.
— Você... Quem é você? – perguntei, minha voz mais ríspida do que deveria ser, considerando minha situação.
— Isso não importa agora. Está sentindo dor? – apontou para o meu braço. Sua voz era melodiosa, levemente rouca. Era encantadora, ao mesmo tempo que parecia perturbadora.
— Hã, está doendo um pouquinho, sim. – respondi, sem conseguir esconder minha surpresa por ele finalmente ter me respondido alguma coisa. Meu estômago protestou audivelmente de fome e eu desviei os olhos em constrangimento, sentindo meu sangue quente se acumular nas minhas bochechas coradas. Ele se afastou um pouco mais, indo em direção aos armários, enquanto ostentava um semblante rígido.
— Eu só tenho isso. – arremessou um pacote de macarrão instantâneo para mim, sem nenhum cuidado. Arqueei as sombrancelhas em confusão. Ele quer que eu coma cru?
— Eu.. posso cozinhar ele, pelo menos? – perguntei, hesitante. Ainda não sei até quando ele pretende não me machucar, e não estava com nenhuma vontade de descobrir.
— Claro. Desculpe! - respondeu, sem jeito. Essa cena até seria cômica se eu ainda não estivesse apavorada. Eu fui sequestrada e ainda por cima, meu sequestrador parecia não ser um humano. Como podia não ser humano? Infelizmente o luxo de poder rir estava bem longe do meu alcance no momento.
Me levantei da cama, andando até o microondas e colocando o macarrão ali dentro. Me virei, vendo ele atento a cada movimento meu. Mordi os lábios por nervosismo.
— Foi você quem fez isso, não foi? – ergui o meu braço.
— Tive que fazer, você estava sangrando muito e...
— Não estou falando disso! Foi você quem me cortou, certo? – o interrompi, rispidamente.
— Sim! – admitiu. Ele ainda me encarava fixamente, sem piscar uma vez sequer. E eu não pretendia desviar o olhar também. Aproveitei para analisar com calma sua face. Apesar dos olhos medonhos, aquele homem tinha uma aparência quase angelical e estranhamente familiar. Não consigo parar de pensar que já vi ele antes.
— Então, por que você não me deixou sangrando até a morte? – questionei, ouvindo o microondas apitar. Peguei o pequeno recipiente de isopor e um garfo que vi jogado ali perto, começando a devorar o macarrão. A higiene não estava sendo minha prioridade no momento, sequer conseguia pensar nisso.
— Eu não... – ele parou, finalmente deixando de me encarar para olhar para cima. — Eu não sei. – deu de ombros.
Tive um tique no meu olho esquerdo. Eu não sei? Que raios de resposta era essa? Céus, eu estou tão fodida!
— E o que pretende fazer comigo? – questionei, com a voz quase falhando. Meu estômago começava a se embrulhar.
— Eu vou te levar para um lugar... Para alguém! – se corrigiu.
— O que é? Tráfico de pessoas? De órgãos? Prostituição? – terminei o macarrão, me sentindo enjoada. Senti meu coração se acelerar novamente só de pensar nas hipóteses. Um nó se formou na minha garganta, mas eu me recusei a chorar.
— Não posso dizer agora, mas não é nenhuma dessas opções. – voltou me encarar, dessa vez parecendo um pouco mais leve. — Talvez seja algo pior. – afirmou. Me arrepiei de cabo a rabo com a sua sinceridade.
— Posso saber o seu nome? – perguntei, com mínimas esperanças de que receberia uma resposta. Eu precisava saber se aquela familiriedade era coisa da minha cabeça ou não.
— Meu nome é Riley. Riley Biers! – minha mente de repente se iluminou.
— Biers! Você é um dos desaparecidos! – afirmei, boquiaberta. — O meu pai...
Me interrompi, estremecendo ao lembrar dos acontecimentos da noite anterior. Inspirei fundo e continuei:
— Ele estava encarregado do seu caso. – contei, vendo o Biers dar de ombros. — O que você sabe sobre isso?
— Você já vai descobrir por conta própria... – disse, indo em direção a janela e abrindo as cortinas.
Lá fora estava escuro, o céu completamente negro e sem nenhuma estrela para iluminá-lo. Só não sabia dizer se o tempo que passei dormindo foi curto o suficiente para eu acordar na mesma noite ou se foi longo o suficiente para eu acordar no dia seguinte.
— Agora! – Riley veio em minha direção e antes que eu pudesse reagir, ele me pegou no colo novamente.
Os eventos seguintes aconteceram com a mesma velocidade avassaladora de antes. Tão rápido que eu sequer pude discernir o que estava acontecendo. Só pude notar que estávamos correndo de novo, em rumo ao desconhecido. Cerrei os meus olhos, sentindo o familiar enjôo me preencher.
Dessa vez, o tempo pareceu correr mais devagar. Não consegui acompanhar, porque estava concentrada demais em não vomitar ali mesmo e em me agarrar em seu pescoço, temendo cair. Em questão do que eu acho que foram minutos, ele me colocou no chão e se afastou. Precisei me apoiar nos meus joelhos para não perder o equilíbrio.
— Eu sinto muito! – sussurrou tão baixo que quase não o escutei.
Fui olhar para ele, para tentar entender o motivo de sua fala, mas fui impedida ao sentir uma dor agonizante perfurar meu pescoço. Eu quis gritar, mas uma mão gelada cobriu a minha boca antes que eu pudesse fazê-lo. A última coisa que vi foi Riley desviando o olhar da cena e cabelos ruivos caírem sobre o meu rosto.
E então, o vazio.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro