01 Rosas e Espinhos
PARTE 1
Paraíso do Tocantins - TO, 2009
A água límpida do lago refletia o rosto da jovem, que, alheia ao seu próprio reflexo, de olhos fechados, respirava lentamente, com o peito subindo e descendo, num ritmo cadenciado. O vestido simples e florido cobria boa parte das pernas estendidas para a frente e ela se apoiava nas mãos, espalmando-as sobre o chão de terra com grama rala. A flor branca em sua orelha direita se destacava sobre a pele morena e os cabelos escuros. Ela parecia desfrutar da calmaria à sua volta, do sossego e paz que aquele ambiente lhe trazia.
Passos se fizeram ouvir por perto, mas ela não fez menção de abrir os olhos.
" Tudo estava bem. "
Em seguida, um beijo em sua bochecha a fez sorrir, contente.
- É um deleite para os meus olhos ver você assim, tão linda, na beira desse lago, toda tranquila. Você me deixa atordoado com tanta beleza.
Joseline abriu os olhos e virou a cabeça na direção do rapaz, que se sentara ao seu lado, à margem do lago.
- Meu amor - disse ele, como uma constatação, fitando sempre os olhos enegrecidos da noiva, que mais pareciam duas jabuticabas maduras.
- E você me deixa constrangida falando assim - de fato o rosto dela havia ficado levemente rubro. - Parece um poeta, fala tão bonito...
Maurício se aproximou um pouco mais, tomando a mão esquerda dela para si, beijando o dorso repetidas vezes.
- Você sabe que eu gosto de escrever uns poemas - disse ele, de forma doce. - Especialmente depois que te conheci, fiquei ainda mais inspirado. Mas... - ele contornou o rosto dela com o polegar. - Independente disso, as palavras bonitas surgem com muita facilidade quando eu te vejo.
Joseline se inclinou para beijar o noivo, com paixão.
- Eu te amo, te amo demais... - sussurrou.
Ela o fitou, admirando o rosto tão amado. Maurício era seu noivo há quase um ano. E desde os dezesseis os dois namoravam. O sentimento havia surgido quase que imediatamente, assim que se conheceram no sarau literário do colégio, ocasião em que ele recitara um poema de própria autoria na frente da escola toda.
Ela se lembrava de não conseguir tirar os olhos dele, enquanto a maioria dos alunos estavam dispersos, alheios à grandiosidade daquele momento.
Dali em diante, a troca de olhares passou a ser constante, os sorrisos tímidos e disfarçados, até ele tomar coragem e dizer oi para ela no fim da aula, alguns dias depois. Desde então, não se desgrudaram.
Os pais de Maurício eram cristãos protestantes, extremamente religiosos e um tanto quanto intoleráveis à determinados tipos de condutas. Seus olhos de pais preocupados com a reputação e a honra do filho logo perscrutaram sem cerimônias a moça que o filho lhes apresentava, e puderam constatar - para alívio de Maurício - que Joseline se encaixava no perfil de nora que procuravam: uma moça recatada, decente, honesta e boa.
Embora a família de Joseline não fosse tão religiosa quanto a do namorado, não foi difícil se darem bem, uma vez que possuíam bons princípios e acreditavam em Deus.
Tudo ficou ainda mais perfeito quando Joseline e sua família se mudaram para a mesma rua onde Maurício e os pais residiam.
Os dois não poderiam estar mais felizes. Agora, além de se amarem muito e estarem noivos, também eram vizinhos! A proximidade só fez aumentar ainda mais o amor e a cumplicidade, previamente existentes.
Apesar dos pesares, e de sua vida não ser nada fácil, Joseline sabia que tinha sorte e que era feliz.
🌻
Depois do passeio no lago, retornaram de mãos dadas para a pequena casa onde a avó de Joseline os esperava com café fresco e pães recém saídos do forno.
Joseline amava visitar o sítio da avó. Crescera ali com os irmãos, Jane, de treze e Pedro, que agora estava com sete. Eles corriam descalços pela pequena propriedade, brincando de pega pega ao redor do lago, brincadeira que sempre acabava em um mergulho, para aproveitar o sol do meio dia, até os pais gritarem que a comida estava pronta, que saíssem da água e se secassem para almoçar.
Quando Joseline completou quatorze anos, a mãe engravidou pela quarta vez e decidiram que era hora de sair do sítio da avó e alugar uma casa na cidade. A situação financeira da família nunca havia sido muito boa, e a mudança para a cidade não foi exatamente a resolução dos problemas, mas seu pai bateu pé firme que voltar a morar com a sogra ele não iria nunca mais.
As crianças ficaram sentidas de ter que deixar a avozinha de quem tanto gostavam, mas, ao mesmo tempo, a expectativa de conhecerem pessoas novas, pessoas da cidade, fizeram com que aceitassem melhor a situação.
E no fim das contas Joseline era grata por isso, pois do contrário, seu caminho não teria se cruzado com o de Maurício.
- Até que enfim! - Uma moça baixinha, de pele e cabelos claros saiu de dentro do casebre, ao lado de dona Zélia, a avó de Joseline. - Pensei que teria que fazer uma busca no lago, pra encontrar vocês dois.
- Credo, Laisa. Vira essa boca pra lá - Joseline franziu a testa.
Laisa fora a primeira pessoa com quem Joseline havia falado em seu primeiro dia na escola da cidade, e desde então, ficaram amigas.
A razão pela qual ela também estava ali no sítio da avó de Joseline, era que os pais de Maurício não concordavam absolutamente que o filho saísse com a noiva de carro sozinho.
" Prudência nunca é demais! " diziam.
Então, quando não era a irmã, Jane, era a amiga que os acompanhava.
E era até bem divertido, achavam, os três, dentro do velho Fiat Uno do seu Ernane, pai de Maurício, um modelo antigo, mas um tanto conservado.
- Vocês vem ou não, tomar café? - Inquiriu dona Zélia, com as mãos na cintura e um pano de prato rasgado sobre o ombro. Ela cheirava à pão e pó de café.
Joseline abraçou a avó, inspirando aquele cheiro familiar. Sentia-se em casa dentro do abraço da velha senhora mais do que em qualquer outro lugar.
- É claro que vamos, vó - disse, entrando de braços dados com ela.
Maurício e Laisa se serviram de café e, munidos com uma vasilha cheia de pãezinhos, foram se sentar na porta da casa, enquanto conversavam animadamente.
Joseline ficou na pequena e escura cozinha, com a avó. Olhou pela janelinha de madeira, cuja tranca de ferro jazia enferrujada, devido ao passar do tempo.
A vista era bonita. Dali, avistava-se parte da Serra do Estrondo, com sua beleza parisiense de tirar o fôlego. Havia chovido bastante há algumas semanas, e o pasto - embora a avó não tivesse gado - estava grande e bonito e as montanhas além dele também pareciam incrivelmente verdes.
Joseline realmente adorava o sítio, mas o fato da avó morar ali sozinha a preocupava.
- Vó, por que não vem pra cidade com a gente? Eu queria que ficasse mais perto de nós, assim eu poderia cuidar da senhora...
- Você é uma neta maravilhosa, querida. Mas eu sei me cuidar sozinha. Além do mais, o que eu ia fazer na cidade? Mal cabem vocês naquela casa minúscula!
Joseline riu. Era verdade. A casa de dois quartos com um banheiro, uma sala pequena e a cozinha, já parecia apertada demais para ela, os pais e os três irmãos.
- Eu tô muito melhor aqui, acredite. Até por que... seu pai não ia me querer mesmo lá.
- Teimosia de vocês dois... Não sei por que vivem se espezinhando!
Dona Zélia fez um gesto de desprezo, como se a rixa entre ela e o genro não tivesse importância. Ela sorveu um gole do café e mudou de assunto.
- E o casamento, sai quando?
Joseline tirou os olhos da vista lá fora para sorrir para a avó.
- Em breve, vó. Ainda não fomos ao cartório porque o Maurício quer terminar nossa casinha primeiro. A senhora sabe, os pais dele cederam o terreno ao lado, que são deles, pra gente começar nossa vida. Da última vez que estive aqui eu disse o quê? Que já tinham feito a base e a fundação, e levantado as paredes, não foi?
Dona Zélia anuiu, observando a animação da neta.
- Então. Agora estão terminando as divisões da casa. Vai ser uma casinha pequena, poucos cômodos. Depois vão rebocar tudo, pintar... - ela parou para tomar fôlego. - Ah! Não vejo a hora de estar tudo pronto...
- Meu Deus, menina! Quanta afobação!
Joseline agarrou as mãos ressecadas da avó por cima da mesa.
- Não é afobação, vó. É amor. Me diz, a senhora quando casou com meu avô, estava tão apaixonada assim como eu tô?? Hum?
Dona Zélia balançou a cabeça.
- Estava. Muito, muito - houve um leve suspirar. - Ah, que saudade do meu velho!
- Pois então a senhora me entende, não é? Nem todo mundo entende. Falam que eu sou louca por querer casar tão cedo assim. Dezoito anos é uma idade ideal pra casar, a senhora não acha?
- Olha...
- Mas mesmo que não seja - Joseline interrompeu-a. - Eu sinto que estou preparada para ser uma dona de casa de responsabilidade. Eu sei cozinhar, lavar, passar, sei fazer tudo o que é preciso saber pra ser uma boa dona de casa. E mais do que isso, eu tenho amor pelo que faço.
Dona Zélia viu a forma como os olhos da neta brilhavam, enquanto ela falava.
- Você não acha assim que deveria estudar um pouco mais antes de casar, Joseline? Você terminou o Ensino Médio, agora poderia fazer um cursinho, uma faculdade...
- Faculdade, vó! Claro que eu queria fazer faculdade, mas como? Com que dinheiro?
- Não tem o tal Enem que os jovens fazem pra estudar de graça?
- Não é bem assim, totalmente de graça. Sempre custa uma coisa ou outra. Além do mais, pra fazer Enem e faculdade precisa estudar muito. E pra estudar precisa de tempo. Tendo um marido e uma casa pra cuidar, que tempo que eu vou ter pra estudar, vó, me diz?
A velha abanou a cabeça.
- Não tem jeito. O que você quer mesmo é casar, não é?
Joseline fez que sim. Era verdade, não tinha ambições. Sua única vontade era ter uma família, uma família linda, da qual cuidaria com todo o amor que existia dentro de si.
- Ama tanto assim esse rapaz?
- Amo, vó! Amo muito. A gente se ama. E é um amor lindo, sabe? Puro, diferente. Tudo o que eu sempre sonhei.
Ela beijou a mão da avó repetidas vezes.
- A gente vai se casar e vamos ser muito felizes, vó. A senhora vai ver.
🌻
Meia hora depois, dona Zélia acenava da cancela de madeira, enquanto o carro desaparecia pela estrada poeirenta. Em algumas horas, o sol estaria se pondo, e a noite chegaria, mansa, escura e fria, como costumava ser ali.
Dona Zélia fechou a cancela e caminhou de volta para a casa, pensando no brilho dos olhos da neta.
Dentro do carro, Joseline ia debruçada sobre a janela, a cabeça para fora, sentindo o vento no rosto, e a alegria que especialmente tomava conta dela naquele dia. Matar as saudades da avó a fazia se sentir renovada sempre que voltava para casa.
Maurício tirou uma das mãos do volante, para pegar a dela e acariciar brevemente.
Depois, perguntou às duas se haviam gostado do passeio.
No banco de trás, Laisa suspirou.
- Demais! Ah, os pãezinhos da dona Zélia!
Joseline concordava com a amiga. Sua avó era uma verdadeira fada na cozinha. E ela herdara o dom, pois se tinha algo que gostava de fazer, era cozinhar. Maurício passaria bem, dentro dos limites das condições que ambos tinham. O importante, como gostava de frisar, era que fizesse tudo com amor.
🌻
Laisa foi a primeira a ser deixada em casa. Em seguida, uma vez que eram vizinhos, Maurício decidiu levar a noiva para sua casa, para que seus pais a vissem e conversassem, um costume que tinham desde os tempos de namoro.
Joseline gostava dos sogros. Apesar do jeito um tanto quanto sério e sistemático, eles se davam bem. Talvez porque ela mesma possuía um grande apreço pelos bons princípios que eles cultivavam. Sim, era uma moça à moda antiga, e tinha certeza que seus valores fariam com que fosse vista como uma mulher honrada, independente de sua classe social.
- Como está sua avó, Joseline? - Perguntou a sogra, enquanto estavam reunidos na sala. Ainda era possível ouvir o ronco do motor do carro, que Maurício guardava na garagem.
- Ela está ótima. Vendendo saúde!
- Isso é muito bom, não é mesmo? Já pensou se sua avó também tivesse problemas de saúde como seu pai e seu irmãozinho? - O sogro disse, encostado na parede.
Joseline bloqueou aquele pensamento. Já era difícil lidar com o pai e o irmão que viviam doentes em casa. Se a avó adoecesse... Não queria nem pensar! Que bom que ela era uma senhorinha muito forte e saudável.
- Que comentário desnecessário, querido. Joseline não precisa disso.
- Me desculpa, Joseline - disse o sogro e ela sorriu, demonstrando que estava tudo bem.
Depois, se levantou, despedindo-se. Precisava ir para casa, pois em breve iria escurecer. Sua família a esperava.
Maurício a acompanhou, ao sair da garagem.
- Meu amor, o dia foi ótimo - ela o beijou, contente. - Com você, como sempre, cada momento é especial.
Maurício retribuiu o beijo, demorando-se um pouco mais, até ouvir um pigarro do pai, que os observava da porta. Ele revirou os olhos discretamente, de forma que só a noiva visse e se afastou. Joseline riu, contida.
- Eu te amo - ele murmurou, fitando-a. Ela sentiu-se como se fosse uma jóia rara, uma preciosidade aos olhos dele. Era sempre assim que se sentia.
- Eu te amo mais - disse e então suspirou, resignada. - Bom, tenho que ir. Daqui a pouco escurece e eu tenho que tomar um banho. E você também!
Os olhares se prolongaram, sentidos de terem que se separar. Era o momento mais difícil. Embora fossem vizinhos, era um verdadeiro suplício o momento da despedida. Algumas casas entre eles pareciam centenas de quilômetros de distância.
Antes que pudesse começar a caminhar para casa, Joseline viu sua irmã correr em sua direção. O desespero no rosto de Jane e na forma como gritava por ela a apavorou.
- Jô! - A irmã a alcançou, agarrando suas mãos, num gesto claro de aflição e angústia.
- Jane! - Joseline a abraçou. Ela acreditava que os abraços possuíam o poder de acalmar, curar e proteger. Fosse qual fosse o problema da irmã adolescente, ela queria poder arrancá-lo dela, protegê-la dos males do mundo e confortar seu coração.
- O que aconteceu, Janinha?
- Nós... - a garota soluçou, chorosa. - Nós estamos sendo despejados. A dona da casa está lá, ela chegou com dois homens e eles estão jogando nossas coisas na rua!
- O quê? - Joseline trocou um olhar com o noivo, alarmada, e então começou a correr, atravessando a rua, em direção à casa onde moravam, a poucos metros dali.
Maurício segurou a mão de Jane e também caminharam até lá.
Joseline mal pôde acreditar no que seus olhos viam.
Duas cadeiras e uma pequena poltrona de tecido gasto estavam entre alguns dos móveis postos do lado de fora da casa. E, como Jane havia dito, dois homenzarrões recebiam ordens da proprietária de continuarem com o despejo.
Joseline foi até ela, e inquiriu-a, furiosa:
- O que é isso? O que está fazendo??
A mulher a olhou como se ela fosse um inseto, ou um rato que acabara de sair do esgoto.
- Não pagaram o aluguel atrasado. Eu disse que iria despejar vocês se não pagassem!
- Como assim... - Joseline se virou, desnorteada, procurando pelo pai com os olhos. O homem magro e de aparência frágil na frente da casa abanou a cabeça, parecia pedir desculpas com o olhar abatido. - Pai...??
- Me desculpe... As contas, o gás... Não deu pra pagar o aluguel mês passado, nem esse mês.
Joseline passou as mãos pelos cabelos, incrédula. Não podia deixar aquilo acontecer. Para onde iriam? Não podiam simplesmente voltar para o sítio da avó. Mas também não podiam ficar na rua. Ela sabia que precisava fazer alguma coisa.
- Por favor - se virou novamente para a dona da casa, que a encarou, intrigada. - Você nem nos avisou previamente sobre esse despejo. Mande esses homens recolocarem tudo de volta no lugar. Eu vou pagar tudo, tudo o que estamos devendo de aluguel.
- Quando? - A mulher perguntou, a desconfiança evidente em seu rosto rude.
- O mais rápido possível. A senhora pode ter certeza de que vai receber cada centavo. Mas por favor, não nos coloque pra fora. Eu tenho dois irmãozinhos pequenos, um deles...
- Uma semana - disse a mulher. - Você tem uma semana para me pagar, ou terão que sair.
Joseline arregalou os olhos.
- Uma semana? Mas é muito pouco tempo!
- Prefere sair agora então?
- Não! Não, não. Por favor, senhora, eu...
- Uma semana - a outra disse, irredutível. - E nada mais.
Ela deu ordens aos homens que recolocassem os móveis de volta dentro da casa e partiu, sem despedir-se.
- Como vai fazer pra pagar essa dívida, Joseline? - O pai se aproximou, trêmulo. - Eu mesmo mal consigo...
Ela se virou para o pai, determinada.
- Eu vou quitar essa dívida, pai. Vou conseguir um emprego. E tenho menos de uma semana pra isso.
...
NOTA:
Espero que gostem da história nova.
A foto representa mais ou menos a forma como eu imagino nossa protagonista.
O nome Jane aqui é pronunciado da forma brasileira mesmo, e não americana (Jheine).
Até o próximo capítulo!
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro