03 - Eu Tenho uma Filha!
– Ok, pode começar a falar. – Encaro meu irmão com os olhos semicerrados. Estamos no meu quarto, sentados na minha cama de frente um para o outro. A janela está aberta, e sinto a brisa noturna adentrar, carregando um sutil perfume de verão. A maioria das pessoas me lança um olhar estranho quando falo sobre perfumes. Eu sinto o perfume de tudo, algo que se cria dentro da minha cabeça, por mais impossível que possa parecer. O meu preferido é o cheiro da lua. É lírico. É poético. É impossível. E eu sempre fui apaixonada pelas impossibilidades.
Alex se remexe inquieto, e passa a mexer na minha colcha lilás, de crochê. Ele fica alisando as pequenas margaridas. Estou ficando sem paciência, quando ele finalmente fala.
– Eu tentei beija-la. – Fico sem saber o que dizer. Para mim isso não parece grande coisa, mas a menina era mais nova, e certamente pensava de um jeito diferente. Talvez tenha ficado ofendida.
– Só isso? – Ele suspira.
– Eu coloco uma poesia diferente em sua mochila todos os dias.
– E...
– Toda sexta feira eu deixo uma rosa vermelha em sua mesa.
Assobio.
– Uau, você realmente gosta dela, hein. Nunca te vi se esforçando tanto assim antes.
Seu suspiro é melancólico, enquanto ajeita seu loiro bagunçado.
– Sim, o pior é que gosto. Mas ela nem dá bola para mim. – Ele funga. Tristinho desse jeito, ele fica tão fofo, que tenho vontade de dar uma mordida nele.
– Ei, não fica assim não. Eu prometi que iria te ajudar, não prometi? A gente vai dar um jeito, você vai ver.
Ele sorri para mim, e parece um anjo. Essa Sofya não é normal. Ninguém em seu estado normal rejeitaria o Alex.
– Obrigado, Si. Você é a melhor. - E me abraça. Ele é a única pessoa que eu conheço que me chama de Si, e só quando está querendo algo, ou agradecendo algo. Ou seja, quase sempre.
– Ok, ok, eu sempre soube que era a melhor. Mas agora preciso dormir. Tenho aula amanhã. E detenção depois. – Aponto para meu pijama, uma regata branca com um ursinho engolindo a lua, e minha calça com estampas de moranguinhos. Meu pai quase pirou quando ficou sabendo da detenção. Minha mãe me surpreendeu sendo mais compreensiva, e quando eu perguntei o motivo, ela deu uma risadinha, e depois disse: "Ah, na sua idade..." Na minha idade o que, mãe? Eu perguntei, e ela deu outra risadinha como resposta. Mães.
– Tudo bem, amanhã a gente se vê antes de ir para a escola. Boa noite.
– Boa noite, Alex, bons sonhos. – Dou um beijinho em seu rosto, e ele vai para seu quarto. Suspiro e deito de costas na cama, e começo a contar as estrelas fluorescentes que colei no teto. Mas isso não dura muito, porque logo ouço pequenas coisas baterem contra minha janela. Rolo os olhos e vou até a janela.
Sou atingida em cheio no meio do rosto por uma pequena pedrinha. Gemo de dor enquanto esfrego o local atingido.
– Ops, foi mal. – Noah se desculpa, mas não parece muito culpado. Ele está sentado no parapeito da sua janela, que fica de frente para a minha. O destino não é muito gentil comigo, quando se trata de Noah.
– Sei, óbvio que sim. O que você quer, peste? – Pergunto mal humorada.
– Eu ouvi a sua conversa com o Alex.
– Você o que?! – Pergunto indignada. Ele dá de ombros, como se ouvir a conversa alheia não fosse nada demais.
– Sabe, fiquei até com pena do Alex. – Noah fica me olhando, incitando-me a perguntar o porquê. Tudo o que menos quero é satisfaze-lo, ao perguntar. Mas minha curiosidade vence.
– Por quê? – Pergunto cansada, ciente de que tenho que acordar cedo, e já deveria estar no sétimo sono.
Ele sorri de modo convencido, enquanto se ajeita na janela. Só agora percebo seu pijama, que é constituído de uma calça flanela azul, e uma camisa do Scooby Doo. Faço força para não rir, mas um sorriso acaba escapando, e quando ele o vê, sorri de volta.
– Sofya fez um voto de castidade. – Espera, o que? – Ela quer ser freira, e essas coisas religiosas.
– Não.
– Sim.
– Não. – Repito.
– Você não espera que eu diga sim de novo, né?
– Ah, vai se catar. – Mas não estou prestando atenção nele. Estou pensando no pobre Alex, que finalmente estava realmente apaixonado dessa vez.
– E agora? – Pergunto para ninguém em particular. Mas Noah responde.
– E agora que ele deveria desistir dela. E você tem que ir dormir, doçura. Te vejo na escola.
Com isso Noah entra em seu quarto, e dá uma piscadela antes de fechar a janela e a cortina.
Deito na cama aturdida, olhando para as estrelas sem realmente vê-las.
Quando menos espero, o sono me apunhala, e viajo entre sonhos, dos quais sei que não me recordarei.
***
Pisco algumas vezes, tentando espantar o sono. Resmungo qualquer coisa, e saio rápido da cama, porque sei que se me demorar mais, não saio é nunca.
Fico com preguiça de me arrumar decentemente, com o sono ainda impregnado em mim, então coloco um vestido floral e uma jaqueta jeans por cima. Passo a chapinha nos cachos que começam a se formar, e após um pouco de rímel e gloss, declaro-me pronta.
No caminho para a porta pego minha mochila, e antes mesmo de descer, sinto o delicioso cheiro de café da manhã. Um dos meus cheiros preferidos.
– E aí, família? – Interprete isso como um "bom dia". Eles me dão oi, e continuam comendo.
– Passa a manteiga, Alex. – Digo enquanto coloco café na minha xícara. Ele me passa, e eu pego alguns pães torrados perto da mamãe. Conversamos sobre banalidades, e não demora muito para que terminemos.
– Vamos, Alex. – Digo enquanto me levanto. Apenas escovo os dentes, e então saio de casa com meu irmãozinho. Ele detesta quando o chamo de "irmãozinho" ou "maninho". Tudo o que faço é ignorar, e ser pertinente chamando-o novamente, só que com mais ênfase.
Andamos até o ponto de ônibus, e esperamos. Quando aquele monstro verde está dobrando a esquina, quase chegando, um Noah arfante chega correndo.
– Ufa, essa foi por pouco. – Ele diz, enquanto se recompõe. Apenas reviro os olhos. – E aí, Alex? Pegando muitas gatinhas? – Meu irmão cora feito um pimentão, e os olhos de Noah brilham com a desgraça alheia. Dou-lhe uma cotovelada.
– Ai! Porque fez isso, criatura satânica? – Ele esfrega o braço, no local onde lhe atingi, fingindo uma dor inexistente. Acho que Noah ainda vai pegar algum tipo de câncer nesse braço, se somar todas as inúmeras cotoveladas, tapas e socos que já recebeu no braço direito. De mim.
Sou poupada de responder quando o ônibus para à nossa frente. Noah faz um gesto exagerado para eu subir antes.
– Primeiro as damas. – E inclina a cabeça de modo debochado.
– Há! E por último os trouxas. – Puxo Alex, que sobre logo depois de mim. Sento em um banco no meio do ônibus, devido à minha teoria. Se você sentar na frente, quando o ônibus bater, você se ferra. Se você sentar atrás, e o ônibus levar uma batida, você se ferra. E se você sentar no meio, você só se ferra se tiver trem por perto. A boa notícia é que não tem um único trem onde moro. E nenhum trilho. De trem. Ah, tanto faz.
Sentamos, e Noah vai para o fundão, onde tem um amigo seu. Antigamente ele costumava sentar atrás de mim, para ficar me perturbando. Puxando meu cabelo. Batendo no meu banco. Recebendo socos de mim. O normal.
Não é um trajeto longo até a escola, e nesse meio tempo falo com Alex sobre um filme que havíamos assistido na semana anterior.
Quando o ônibus para, ficamos por último.
Descemos, e cada um vai para um lado. Eu dou um tchau que não é reciproco.
– Oi Saby, oi Lamar, oi Heyoon.
Heyoon é tipo minha melhor amiga. Ela chegou de viagem ontem de noite, por isso não foi para o primeiro dia de aula. Dessa vez seu cabelo está em um estranho tom de rosa pink. Ela está sempre mudando a cor de seus cabelos, de acordo com seu humor. O bom é que ela é uma pessoa sempre alegre, ou seja, as cores sempre são coloridas e vibrantes.
– Oi Sina! – Ela sorri, e esse é seu modo de dizer que sentiu saudades e que está feliz por me ver. Ela não é do tipo chegada em abraços ou demonstrações de afeto. Mas seu sorriso sempre diz tudo.
– Então, detenção hoje? – Lamar ergue uma sobrancelha, e tenho vontade de atira-lo naquela lixeira laranja. Ela é a mascote da nossa escola, e seu laranja está quase inexistente por debaixo de tantas assinaturas e desenhos que a cobrem. Como quase todo mundo, ela também tem uma história.
– Sim, detenção hoje e amanhã. E depois da manhã. E depois, e...
– Ok, já entendi. – Saby me corta. Sempre tão prática.
– Porque você está de detenção? – Heyoon pergunta curiosa.
– Professor Borges. – Digo, e ela solta um "Ah", como se aquelas duas palavras explicassem tudo. O que é verdade.
– Pergunta pra ela quem mais vai fazer detenção com nossa amiguinha. – Lamar me provoca.
– Quem? – Heyoon fica me olhando, curiosíssima, esperando uma resposta.
– Noah. – Murmuro baixinho.
– Quem?
– Noah! – Digo alto demais, e umas patricinhas que passam por nós me olham de um jeito estranho.
Então Heyoon começa a rir. E se dobrar de tanto rir. Tento não ficar irritada, mas é inútil.
– Bela amiga que você é, Heyoon.
Ela para imediatamente e me atira um olhar indignado.
– Ei! – Reclama.
– O que foi? – Pergunto de uma forma inocente.
– Problemas no paraíso? – Adivinha quem é o dono dessa frase? Dou uma balinha para quem acertar. Se bem que não vou ter balas o suficiente.
– Mas você é metido, hein. – Reclamo.
– Mas você é uma chata mal humorada, hein. – Ele rebate, e me cutuca no ombro. Ele sabe que eu odeio quando me cutucam. Principalmente no ombro. Acerto outra cotovelada nele, que começa a rir de mim.
– Não tem graça!
– Na verdade tem sim, - Saby interfere – parece que você chupou um limão azedo.
Atiro um olhar acusatório para ela, que ignora enquanto fica praticamente secando aquele amigo do Noah, o Bruno.
– Que isso azedinha, fica assim não. – Noah diz isso em um tom que as pessoas usam para falar com bebês, e passa o braço por cima do meu pescoço. Empurro-o irritada, e nesse momento todo mundo está rindo de mim.
Sério, parece que todo mundo está sempre do lado daquele cretino. Argh.
Saio pisando duro e bufando ao mesmo tempo, e naquele momento o sinal toca, anunciando o início da aula. Sou a primeira da minha turma a chegar à sala.
Sento no meu lugar de sempre, e fico encarrando o quadro negro. Aos poucos meus colegas vão chegando e preenchendo os lugares vazios. Então a professora Gina chega. Eu a adoro, e adoro sua matéria também, português.
Logo sou distraída por uma sacola preta que ela traz atrás de si, e larga ao lado de sua mesa.
– Bom dia turma! – Ela exclama animada. – Hoje tenho uma surpresinha para vocês!
Vish, surpresinhas, escola, professores, falta de sorte. Matem-me, e me poupem da tortura que virá a seguir.
– Então turma, eu andei pensando, e resolvi dar uma atividade diferente, que também irá ajudar-lhes futuramente. – Ela faz uma pausa, e pega a sacola do chão. Despeja seu conteúdo em cima à sua mesa. Revelam-se bonecas, tipo bebê. Acho até que já tive uma dessas. Faz um barulho infernal quando se aperta aquele botão para que chorem. São muitas, algumas em ótimo estado, e outras um pouco maltratadas. Começo a ficar confusa. Mas isso é por pouco tempo, já que depois do que Gina diz, fico em pânico. – Vocês serão mamães e papais por seis meses!
Seu tom é eufórico, e ela transborda alegria. Não se ouve um pio do resto da turma.
– Vamos gente, cadê a animação?
– Professora, eu vou ser papai. E nem tenho uma namorada. Como você quer que eu fique animado? – Jaques, meu colega que sempre perde as oportunidades de ficar calado, exclama ultrajado.
Ela suspira, prevendo confusão.
– Isso não tem nada a ver com vocês terem um parceiro ou não. E no final do semestre, vocês terão que me entregar um relatório de como foi a experiência de ser pais.
– Eu posso abandonar meu filho na porta de alguém? – Noah brilhantemente pergunta. Só então percebo que ele está sentado ao meu lado. Tento manter mais distância, mas encontro nada mais que a parede atrás de mim.
– Claro que pode! – Ela diz alegremente. – Mas duvido que vá conseguir abandonar na porta de alguém o zero que vou te dar.
Alguns riem dele, enquanto Noah faz um gesto dramático exagerado.
– Vocês estarão em duplas. Uma mãe e um pai. – Quando as pessoas começam a se combinar, Gina logo acaba com nossa felicidade. – Será por sorteio.
Fecho os olhos com força. De um jeito inexplicável, eu sabia com quem ia acabar ficando. Falta de sorte era uma das minhas características mais marcantes.
– Eu já escrevi o nome de todas as meninas da turma, e os garotos irão tirar desse potinho – ela balança um pote preto em sua mão esquerda.
Ela começa passando pela minha fila, o que aumenta as possibilidades de certo alguém tirar meu nome.
Krys, um garoto que consegue ser mais chato e mal humorado que eu, é o primeiro a tirar o papel.
– Heyoon. – Ele diz em sua voz extremamente máscula. Olho para minha amiga, que nem parece se importar em alguém dizer seu nome em voz alta para toda a turma. Ela tem uma queda pelo Krys desde a oitava série. Mesmo ela sendo super alto astral, e ele um chato do caramba. Vai entendê-la. Bom, pelo menos alguém vai sair feliz dessa situação.
Mais três garotos tiram os nomes das garotas, até que chega a vez do Noah. Cruzo os dedos, praticamente fazendo um pacto com as forças ocultas. Ele olha concentrado para o pote, e tira um papel lá de dentro.
Meu coração para quando o ouço.
– Sina. – E me dá um sorriso de orelha a orelha.
– Merda. – Digo baixinho. A turma começa a rir baixinho, fazendo piadinhas, mas ignoro.
Fico de braços cruzados e expressão emburrada até que todo mundo tenha um par.
– Então, vocês podem vir pegar seu filho! – A professora diz alegre. Continuo sentada, e é Noah quem vai pegar "nosso filho". Argh.
Quando ele volta com um bebê menina, estrangulo-o com os olhos.
– Olha só nossa filhinha! – Ele diz alegre. – A sua cara!
Pego a boneca de suas mãos.
– Ei, - ele reclama – não trate assim a Caolha.
– O que?! – Exclamo indignada. – Você não vai chama-la de Caolha!
Então algo me ocorre. Ele deve ter tido um motivo para chama-la assim. Olho para a boneca, que está perfeitamente conservada, com exceção do olho esquerdo que está faltando.
– Minha filha não tem um olho! – Exclamo indignada.
– Nossa filha. – Ele corrige.
– Por que diabos você foi pegar uma boneca sem um olho!?
Noah tira o brinquedo das minhas mãos, e o segura no colo como se realmente fosse um bebê.
– Não fale assim. Você vai magoar a Caolha.
Abro minha boca, mas não digo nada. Só fico lá, o encarando. Então percebo o silêncio que chega a ser quase palpável.
Está todo mundo prestando atenção em nós, como se nossa discussão fosse digna de atenção.
– Tão olhando o que?! – Digo braba, e imediatamente eles desviam o olhar. A professora limpa a garganta, em frente à sala, para chamar a atenção.
– Bom, espero que isso se torne divertido e produtivo para todos.
Ah, sim, penso, enquanto Noah continua a balançar a "nossa filha" sem um olho, e me lança um olhar maroto, com certeza isso vai ser muito divertido. E produtivíssimo.
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Oi pessoinhas, tudo bem?
Espero que sim! Vim com alguns avisos para a continuação da história, e vamos ter dias fixos de postagem!
Será as terças e quintas e vou tentar postar capítulos bônus aos domingos, que serão capítulos diferentes, com um pouco de mídia social.
Espero que curtam!
beijos e queijos xx
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