Capítulo 5
Capítulo 5
Claro que eu não iria atrás do Alfa Zayas sem um plano mínimo. Então, fui para casa e encontrei um adolescente sentado numa enorme mala de viagem, ostentando um moicano azul e piercings na frente da porta do meu apartamento. Parecia um ser humano e isso me fez relaxar e soltar um suspiro. Deve ter sido alto... bem... alto o suficiente para o garoto virar o rosto na minha direção.
Eu tive cinco segundos de pânico encarando a maquiagem carregada borrada pelas lágrimas e os olhos arregalados e suplicantes. Quando ele abriu a boca meus pesadelos tornaram-se reais e sambavam na minha cara.
— Oi Dan, espero que você não se importe de eu ficar com você por uns dias. — Ele fungou e apontou para a mala e a mochila. — Foi tudo o que eu consegui carregar sem a mamãe perceber.
— Ma... José Carlos, você fugiu de casa? — Minha voz ecoou no corredor vazio, seus olhos castanho-dourados estavam tão largos que eu podia ver todo o caminho ao redor de sua íris. — Tá brincando né?
Ela tinha os olhos da mamãe. Seu cabelo preto longo e liso também. Ela... quer dizer ele... tinha pele e o nariz, muito parecidos com os meus e por isso eu suspeitava que tínhamos o mesmo pai. Não sei se meu irmão tinha começado a terapia de hormônios, mas tinha mudando quase todos os outros aspectos de sua aparência e admitidamente tinham sido muito para engolir, mas eu esperava que seu jeito doce e sensível não tivesse mudado. O que eu estou pensando. Parei de conviver com ele há dez anos. A verdade é... esse menino é um total desconhecido para mim.
Eu só queria que ele se amasse e ficasse feliz com o que via quando se olhava no espelho e, no fundo, eu sabia que isso era tudo que mamãe queria também. Nós conversamos bastante pelo celular e aplicativos de bate-papo. O que dava para entender das conversas com o Zeca é que nossa mãe via a transição como a morte da sua princesinha, enquanto eu via um jovem preso no corpo errado implorando para sair, quanto mais demorasse para que isso acontecesse mais perto de uma depressão ele estaria.
Dada a escolha entre uma garota morta e aprender a aceitar o garoto que ele era na verdade, óbvio que ficava com a segunda alternativa. Talvez a frustração com a incapacidade da minha mãe em ver isso fosse o que o levou a estar aqui na minha frente. Talvez tenha sido minha culpa. Ao dar meu ombro e claramente meu incentivo para a transição, eu sabia que tinha tornado minha mãe a inimiga quando ela claramente era contra tudo isso.
Havia tanta coisa que eu gostaria de ter feito diferente, tantas palavras que eu gostaria de ter retomado e substituído por aquelas que deveria ter dito, se tivesse esperado um pouco e falado em amor e não em raiva.
De qualquer maneira, mamãe era assunto para outra hora, eu iria me perder para as constantes lembranças do meu fracasso como filho, como irmão mais velho, como um ser humano livre e consciente.
— Você chegou numa hora ruim, irmãozinho. — eu disse, passando pela bagagem e abrindo a porta de casa. — Mas, pode usar meu apartamento pelo tempo que quiser. Vou resolver uns problemas que me meti e não sei quanto tempo vou ficar fora. Entre e vou mostrar onde está tudo para que possa se sentir mais à vontade. Você não vai parar de ir na escola, né? Eu sei que não quer voltar pra casa de mamãe e ir nas aulas seria o melhor jeito de ser pego por ela, mas eu sei o quanto você quer entrar na faculdade.
Zeca estava olhando para mim como se eu fosse absolutamente louco, com os braços cruzados sobre a blusa de banda de mangas compridas com rasgos customizados; ela parecia original e não aquelas que se compra nos camelôs da 25 de março. Merda. Isso me fez lembrar que a primeira coisa que minha mãe fará e cortar a mesada dele, força-lo a voltar por não poder manter o padrão de gastos é um dos truques mais usados e eficazes. Eu deixaria o aluguel pago e compras do mês feita, contas de consumo também em dia. Zeca deve ter algum guardado para emergências, certo?
Mamãe sempre ficava quieta quando eu perguntava sobre seu passado, e ela nunca dava detalhes de como ela ganhou dinheiro o suficiente para comprar seu apartamento, mas ela sempre ficava tão animada quando falava das viagens que fez quando era jovem, antes de ter um patrocinador fixo. Pelo menos era assim que eu entendia as histórias que ela contava quando eu era pequeno.
Ela contava as mesmas aventuras para Maria Fernanda (agora Zeca) às vezes, eu me apoiava na porta apenas ouvindo e minha irmãzinha ficaria tão extasiada com os contos dramáticos de antigas maldições e misteriosas feras que espreitavam na escuridão da floresta. Elas nem notavam minha presença. Foi somente naqueles momentos, onde eu estava do lado de fora, que eu senti como se fôssemos a família que eu sempre sonhei em ter. Mais ou menos como aparas de ferro se agrupando em torno de um imã porque éramos feitos da mesma coisa, e era mais fácil estar junto do que separado.
— Acho que tudo bem ir pra escola. — disse entrando na sala e largando as malas num baque. — Mamãe vai dar pelo menos uma semana pra eu sentir como a vida é dura e estar sobre seus "cuidados" é muito mais vantajoso.
— Ele me deixou um bilhete e seu convite... o alfa Estebán Zayas. Não é uma prisão nem nada disso, não é que eu seria seu escravo sexual ou algo desse tipo. — respondi à pergunta não feita. Na verdade, era mais um discurso de autoconvencimento, eu estou fora do mercado de qualquer maneira e agora tenho mais uma boca para alimentar, alguém que quero manter seguro. Eu queria que o Zeca sentisse estar em família comigo e família compartilha as alegrias e as preocupações. Não é? Pelo menos é assim que eu imagino uma família funcional. Quem sabe alguém de fora, que não fez tudo o que eu fiz para sobreviver, tivesse uma ideia do que eu deveria fazer agora. — Leia o bilhete e me diga se tem alguma intenção escondida e eu não estou pegando. — Estendi o pedaço de papel que já estava rasgando nas dobras.
Ele fez uma careta para mim não querendo imaginar seu irmão mais velho em atividades íntimas. — Então ele é um idiota arrogante, isso é uma coisa normal, universal eu diria entre os alfas lobisomens. — Zeca disse essas palavras como se esse conhecimento fosse a coisa mais banal do mundo.
— Hey. — eu disse, apontando para ele. — De onde veio todo esse entendimento, hein? Eu vejo essas coisas não humanas desde pequeno, você tem essa habilidade também?
Ele revirou os olhos. Como os adolescentes mantinham as malditas ideias em suas cabeças quando ainda estavam aprendendo como o mundo funciona? — Os clientes da mãe são 95% lobos, irmão. E mesmo ela me banindo para o quarto eu não sou cego nem burro. Você sabe disso, certo?
— Eu sempre pensei que todos os clientes eram lobos. Como você sabe a diferença? — eu disse, parando de falar apenas o tempo suficiente para olhar para ele.
— O cheiro é diferente. — ele disse, como se fosse muito comum sentir o cheiro das pessoas e saber diferenciar os seres humanos e não humanos pelo odor.
— Pera aí... cheiro? Você é humano, certo? — Zeca deu de ombros como se essa fosse uma informação irrelevante ou desconhecida.
Meu rosto ficou vazio, mas eu sabia que minhas palavras estavam afundando. Nos últimos dois anos eu conversei com o Zeca via celular ou chats e eu me lembraria se visse algo incomum em meu irmão quando ele era pequeno. Eu me senti como uma merda por não ser capaz de ter certeza. Esse "dom" era o que me manteve inteiro na adolescência. Me fazia sentir especial. Como se só eu pudesse ver o segredo daquelas pessoas. Ver sua verdadeira forma que escondiam a todo o custo para viver em paz na sociedade. Eu olhei para meu irmão mais novo com toda a minha concentração tentando ver outra forma que não fosse do menino meio gótico do meu lado. Nada fora do comum.
— Os lobisomens têm um cheiro mais acre. — disse ele em um tom calmo e sabido. Eu tinha certeza de que todos os adolescentes da história da humanidade achavam que eles eram mais sábios do que os adultos, mas quando ele tinha esse olhar em seus olhos, eu realmente me vi acreditando nisso. Era o mesmo olhar que mamãe tinha quando chegava a um ponto além da teimosia e das brigas. Um ponto em que ela parecia quase feroz. Havia algo perigoso naquele olhar, algo inumano que desencadeou uma resposta de presa em minha mente que não fazia sentido, especialmente quando se tratava de meu próprio irmão e mais novo, diga-se de passagem. — Fadas têm um cheiro enjoativo, doce, parece baunilha.
Minha coluna endureceu. — Mamãe tem transado com fadas? — Pode ter soado como uma pergunta, mas eu só estava pensando em voz alta.
— Eu não sei e nem quero saber. Ela é minha mãe, porra. Mães não transam. — ele disse irritado.
— Desculpa, irmaõzinho. Não falei para te deixar sem graça, nem nada disso. Só estava tentando fazer essa informação fazer sentido na minha cabeça. — eu disse, empurrando nossas almofadas e sentando com as pernas cruzadas no sofá. — Você bem sabe pelo que leu no bilhete que fazer sexo com um lobo não te deixa muitas opções depois. Por isso é mais comum os amantes de um lobisomem serem meio que exclusivos, entende, serem sustentados como num harém. — Mas, parece que a mamãe era mais aberta com você do que comigo. — Eu tinha um tom de amargura na voz. O filho gay que, provavelmente, espantava os clientes por causa dos olhos desiguais, como vim a saber recentemente.
— Então, mãe estava agindo um pouco nervosa nessas últimas duas semanas. Sempre me perguntando se estava tudo bem. Se eu estava usando meu amuleto. Se eu queria fazer um intercâmbio fora do país. — ele olhava para mim como se eu de repente aparecesse com todas as explicações que ele queria.
Suas palavras martelavam na cabeça. Levei um segundo para preencher minha mente com as possibilidades. Sim. Eu lembrava do amuleto. Fiquei chorando uma semana por não ter ganhado um também. — Não falo com a mamãe há dez anos. Não sei o que a preocuparia tanto assim. — Tentei passar descontração na voz. Para não deixar Zeca encafifado.
— Bem, eu acho que você deveria procurar o alfa Zayas. Ele tem a responsabilidade de cuidar de você, agora. Eu posso me virar sozinho aqui, se eu puder ficar. — Ele parecia um pouco menos confiante quando me virei para encará-lo, mas pude ver a teimosia brilhando em seus olhos. Ele engoliu em seco. — Toma o bilhete de volta. Está assinado, então é um salvo conduto. A mamãe vai ficar legal, né?
Eu podia ouvir o pedido em sua pergunta. O desespero. Eu poderia mentir para ele, o que era algo que eu tinha uma quantidade razoável de orgulho por nunca ter feito, ou dizer a verdade e quebrar seu coração. O fato de eu saber que a revelação iria machucá-lo muito mais do que já me machucou era apenas mais uma prova de que meu relacionamento familiar tinha morrido muito tempo antes do que quer que esteja acontecendo com mamãe nesse momento.
— Claro que vai.
— Não minta para mim! — Lágrimas escorreram pelo seu rosto, e aquela luz selvagem brilhou em seus olhos como o sol. — Eu não sou uma criança!
— Estou dizendo a verdade. — eu disse, encolhendo os ombros. Nenhuma quantidade de amargura ou traição me empurraria para o ponto em que eu estava disposto a manchar a imagem que Zeca tinha de sua mãe, mesmo que fosse apenas com a verdade. Eu vou protegê-lo das tiradas mais duras de mamãe quando começar sua transição, mas isso era o que quebraria seu espírito.
Ele franziu a testa. — Ok. Vamos pedir uma pizza? Estou com fome e já que não vai enfrentar os lobos hoje, você pode me orientar onde ficam as coisas aqui na sua casa.
— Certo, vamos para as coisas práticas. — eu disse, dando-lhe um tapinha na coxa. —Venha, vamos pra cozinha que sempre é o coração de qualquer lar.
Ele largou a mochila no sofá, encarando-a como quem encerra uma etapa da vida. O que provavelmente é verdade. — Por que não contem pra gente que crescer é tão duro. — Ela resmungou.
— Porque apenas quando vivemos tudo isso que podemos amadurecer. — respondi sem perder o ritmo. — Pegue o cardápio pendurado na geladeira, essa é a melhor pizzaria do bairro.
Ele suspirou pesadamente pegando o papel grudado por um imã, se jogou em uma das cadeiras em volta da mesa e leu a seleção e ingredientes de cada uma antes de propor o que mais gostava. Enquanto esperávamos o entregador fui ambientando meu irmão do seu novo lar.
Quando acabamos de jantar ele estava exausto. Foram muitas coisas para digerir num dia só e ter fugido de casa cobrou seu preço em forma de cansaço emocional. Eu também tive um dia difícil. Cedi a cama para o Zé Carlos e arrumei o sofá para mim. A vida não ia ser fácil.
Não para nós.
**
A ligação veio no meio da noite. Mais uma noite de insônia pensando em como irei viver sob a "tutela" do arrogante Estebán Zayas. Que vida de merda. Fui tentar ser michê e o primeiro cliente tinha que ser uma porra de um lobisomem alfa. Não só um alfa mas O Alfa. Só o cara mais importante, da matilha mais importante de São Paulo. Agora tenho que esperar meses até o cheiro daquele homem sair de mim. E até lá estou sob sua proteção. Em outras palavras, sou um prisioneiro, na verdade, me sinto mais como uma freira. Uma princesa virgem trancafiada numa droga de um castelo. Tentei sair um par de vezes pra ver possíveis amantes correndo, com pavor nos olhos.
Voltando ao telefonema no meio da noite. Era do IML e parece que encontraram um corpo relacionado a mim. Parece que minha mãe poderia ter se envolvido num acidente de carro. Fui chamado para reconhecer o corpo. Parece que agora tenho só o José Carlos para chamar de família. Me senti um órfão de mãe viva por tanto tempo... agora...
Tomo um banho. O chuveiro sempre foi meu lugar preferido para colocar as ideias no lugar. Assim que coloquei os pés na calçada na frente do meu prédio um carro escuro abriu as portas. Como é que ele já sabia disso? Alguém insignificante como eu. Uma foda de uma vez que deu muito errado. Eu ainda não consigo ver o quebra-cabeças montado. Sabe.. quando você perdeu a caixa e não faz ideia de como é a figura que vai aparecer depois de pronto. É assim que me sinto.
Chego no IML do centro, na Cerqueira Cesar. Sou conduzido por um policial até a sala onde ficam as geladeiras. O legista nos aguarda. Olho com apreensão sua mão na maçaneta da gaveta frigorífica. E assim que ele puxa revelando o corpo um arrepio percorre meu corpo.
Desvio o olhar. Não quero ver. Não quero ter certeza. Certeza de que a mulher que me deu à luz está morta e eu não consigo sentir nada. Um certo alívio por não ter mais que fingir alguma coisa quando nos encontramos sem querer em algum lugar. Eu começo a rir, uma risada histérica. Que ecoa pela sala cinza. E o riso se torna pranto e minhas pernas não são mais capazes de me sustentar. E eu caio de joelhos, minha visão embaçada. Sinto meu estômago revirar. Tenho medo de começar a vomitar ali. Naquele lugar estéril.
Braços fortes me erguem do chão e me aquecem. Nunca imaginei ele ali. Nesse contexto bizarro. Mas, fico grato e aliviado. Meu choro molha sua camisa de grife. Eu não queria dar esse gostinho final a ela. Uma mãe que finge que o filho não existe. Eu sempre fui invisível para ela. Uma dor, uma saudade do que nunca foi, mas podia ter sido me invade como uma onda de um tsunami. As emoções são tão fortes que eu tenho que me livrar daqueles braços, tenho que sair dali.
Eu pulo e corro. Entro no banheiro e me tranco numa das cabines e começo a vomitar. Todo o lodo emocional cai na privada fétida. Todo o desamor de uma vida inteira. Toda a solidão em que vivi me sentindo um lixo. Um filho indesejado. Sem conseguir fazer conexões reais. Com medo de ser abandonado. De novo. E sempre. E outra vez.
Saio e vou até a pia. Limpo a boca e o rosto e antes de bater no chão ele me pega. Eu me aconchego em seu colo.
-- Vamos pra casa, Danilo. Depois o delegado manda os papeis pra você assinar.
Eu só consigo acenar com a cabeça antes que a escuridão me envolva em seu doce esquecimento. O rosto cheio de pinos e com olhos de cachorro que caiu da mudança invade meu campo mental. Zeca.. eu preciso voltar para o meu apartamento. O Zeca não vai ficar sozinho como me senti até ele falar comigo por mensagem privada na rede social.
Não posso deixar meu irmão sozinho.
**
Oi lobinhes,
OMG... e agora?? ...
Façam suas teorias. suposições. opiniões sinceras. clique na estrelinha para deixar a autora feliz.
bjokas e até a próxima att.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro