Capítulo 9
Harry chegara tarde demais. Quando o grito de Rhiara o acordara, ele pusera-se imediatamente de pé, galgando as escadas em direção ao som. Abrira a porta com toda a força e tropeçara nos seus próprios pés, os olhos arregalados de pânico ao ver Rhiara cair desmaiada nos braços de alguém que imediatamente saltou borda fora do navio, em direção às ruas da Ilha dos Perdidos. O filho do Capitão Gancho seguira o homem que levava a princesa às costas mas alguém o agarrara por trás, batendo-lhe fortemente na cabeça e deixando-o também a ele à beira da inconsciência.
Com lágrimas nos olhos da dor e do desespero, o pirata fechou os olhos, dando um murro no chão. Perdera Rhiara de vista. A sua Rhiara.
Um som ensurdecedor ecoou pela Ilha e arredores. Harry tapou a cabeça de forma instintiva, protegendo-se da explosão. O cheiro a pólvora e a queimado entranhou-se nas suas narinas, trazendo-o à realidade.
Arregalou os olhos, virando-se para ver o Jolly Roger a arder.
- UMA! - gritou, pondo-se de pé - GIL!
Correu pelas ruas fora, aproximando-se do barco. As chamas consumiam bruscamente a madeira do navio, o fogo rugindo, o fumo fazendo Harry tossir. Fez menção de subir a bordo mas viu-se barrado pelas chamas ameaçadoras, as mãos em redor da boca enquanto gritava:
- UMA! UMA! - abanou a cabeça, frenético - Oh céus... GIL!
Cerrou os maxilares, rosnando baixinho enquanto tomava uma decisão. Num impulso, adentrou o navio, os braços erguidos para bloquear o fogo, sentindo o calor assolar-lhe o corpo. A tossir e a lacrimejar, procurou entre as chamas, chamando o nome dos amigos, recusando-se a acreditar que eles... Que eles...
- UMA! GIL! ONDE ESTÃO?!
Harry perdera Rhiara. Perdera o Jolly Roger.
Não podia perder os amigos, muito menos para a morte.
- HARRY! HARRY, AJUDA-ME!
O som da voz de Uma aliviou-o. Era quase impossível determinar de onde viera mas Harry fez um esforço, sentindo as chamas lamberem a pele exposta das suas pernas e dos seus braços. Ignorou as picadas de dor que sentia, tossindo enquanto prosseguia. Gritou novamente pela amiga, recebendo a resposta mais e mais perto, até encontrá-la.
- Uma! - agachou-se ao lado da capitã, cujo rosto ensanguentado o encarou com angústia - Temos de sair daqui!
- Harry, o Gil está lá embaixo. - disse, apontando para a porta à sua frente - A porta está encravada mas eu ouvi-o. Por favor, não podemos deixá-lo...
- Harry? - chamou uma voz, abafada pela distância, pelo som do fogo, pela madeira entre eles - Uma?
- Gil. - Harry ouviu-o tossir, esmurrando a porta entre eles - Nós vamos tirar-te daí. Eu prometo.
- Por favor não me deixem aqui. - pediu o amigo, num fio de voz.
As chamas consumiam cada pedaço do navio. Numa troca de olhares com a capitã, Harry atirou o corpo contra a madeira, ao mesmo tempo que Uma. O rosto dela estava debulhado de lágrimas, o fumo fazendo-a tossir, os olhos lacrimejando. Harry praguejou baixinho, sentindo o braço dorido da força com que tentava rebentar a porta.
- Não está a resultar! - guinchou Uma perto de si, à beira do pânico.
- Uma, mergulha. - disse Harry, puxando a amiga para a forçar a encará-lo - Transforma-te e apaga este fogo. Agora!
A filha de Úrsula assentiu, tapando o rosto com o braço. Num impulso, atirou-se ao mar, o colar no seu peito a brilhar. Segundos depois, emergiu, os tentáculos gigantes balançando ao seu comando.
- Aguentem-se! - exclamou.
Harry fechou os olhos.
Uma segurava um lado de Gil, Harry o outro. Juntos, caminharam ao longo da doca, as roupas ensopadas, os rostos uma mistura de cinzas e salitre, o odor a queimado entranhado no seu corpo.
- Aquilo... Foi insano. - disse Gil, caindo de joelhos no chão.
Os amigos sentaram-se ao pé dele, exaustos. Harry sentia o coração querer saltar-lhe do peito, demasiadas emoções à flor da pele para sequer conseguir processá-las. Nunca gostara de emoções. Preferia viver no limite, sem pensar, sem medir, sem sentir.
Rhiara mudara isso.
- Temos de ir. - murmurou, tentando pôr-se de pé- Rhia...
Uma tontura assolou-o. O corpo cedeu, as mãos amparando a queda, o mundo girando à sua volta.
- Harry! - o braço de Uma envolveu-o - Estás a sangrar. Não te mexas...
- Tu também estás a sangrar. - murmurou, tendo reparado no fio de sangue que escorria pela face de Uma.
- Mas eu não estou pálida que nem um cadáver. Precisamos de curativos. O Gil partiu o pé, tenho de pô-lo no sítio... - abanou a cabeça, pesarosa - Harry, nós não estamos em condições de ir salvar a Rhiara.
- Temos... Temos de ir...
Uma girou o rosto dele na sua direção, os olhos castanhos encarando-o com seriedade.
- A Rhiara não é nenhuma donzela em perigo e nós sabemos disso. Vamos procurá-la mas temos de estar em condições. Pelo que vimos... - apontou para o navio, a madeira escurecida pelo fogo - Não estão para brincadeiras.
Harry fechou os olhos. As palavras saíram-lhe, a culpa correndo-o por dentro, os punhos fechados para suprimir a dor que sentia.
- Isto é culpa minha. Isto é tudo culpa minha.
A brisa fresca e o odor a maresia trouxeram-na à consciência. Abriu os olhos, pestanejando, tentando combater a sonolência. Estava amarrada, percebeu. Ao olhar para cima, avistou uma bandeira familiar a baloiçar com o vento. Preta. Com uma caveira branca no centro.
Empalideceu.
Estava a bordo de um navio pirata... mas não o navio do costume.
Olhou em volta, remexendo-se, numa tentativa de soltar as cordas que a prendiam. Mordeu a língua, praguejando baixinho ao ver a sua espada caída a vários metros de distância. Precisava de alguma coisa afiada para se libertar. Precisava sair dali antes que alguém desse por estar acordada. Pensou em Uma, em Gil, em Harry... O que lhes teria acontecido? Recordou-se do corpo de Uma caído no chão, o estômago revirando-se de preocupação. Harry fora ao seu encontro, gritara por ela. O que lhe teria acontecido?
- Ah, a princesinha está acordada. É um prazer conhecê-la, princesa Rhiara de Corona, filha da Rainha Rapunzel... e namorada do meu filho.
Rhiara conteve-se. Ela realmente fez o esforço. Inspirou fundo. Expirou fundo. Cerrou os punhos. Prensou os lábios. Ela tentou...
E não aguentou.
- CAPITÃO GANCHO?! É UMA HONRA PODER FINALMENTE CONHECÊ-LO!
Amarrada em cordas, com os cabelos desgrenhados e cinquenta piratas a encará-la, a princesa de Corona exibiu um sorriso gigante no rosto, balançando o corpo de um lado para o outro sem conter o entusiasmo.
- O senhor é uma lenda! Eu sou prisioneira do Capitão Gancho! - guinchou, abanando a cabeça- Por todas as flores de Corona, isto é muito melhor do que eu poderia ter imaginado!
- A princesa imaginou ser prisioneira de um pirata? - questionou James Hook, visivelmente chocado.
- Oh sim mas o pirata em questão não chega aos seus calcanhares... Afinal de contas, o senhor é o Capitão Gancho.
O pirata olhou para os seus marujos, que se aproximavam, sem saber se deveria sentir-se lisonjeado ou preocupado com o discernimento da rapariga à sua frente. O sorriso de Rhiara ia de orelha a orelha, os olhos esmeralda brilhantes ao observar o navio à sua frente.
- Isto é uma réplica do Jolly Roger? - perguntou, esticando o pescoço, já que as cordas a imobilizavam contra o mastro - Como se chama?
- Jolly Roger II.
A morena torceu o nariz.
- Pouco criativo. Que tal... O Infame Veloz. Ou o Implacável.
- O meu filho apaixonou-se por uma tagarela. - Gancho abanou a cabeça, desgostoso - Que tristeza. Com tanta rapariga bonita por aí...
- Oh mas o senhor está muito enganado. - contrapôs Rhiara, soltando uma risada divertida - O seu filho não está apaixonado por mim. Na verdade, eu não faço ideia o que ele sentiu por mim mas lhe garanto que não era amor.
- Ai sim? - perguntou o pirata, com um sorriso contido - Porque diz isso, Sua Majestade?
Rhiara encolheu os ombros, sentindo uma vontade descontrolada de rir.
- Porque quando eu disse o que sentia por ele, Harry Hook fugiu a sete pés de mim. Isso não é amor.
- Ele fez isso? - perguntou James, surpreendido - Uau... Nunca pensei que o meu filho tivesse esse altruísmo todo.
- Altruísmo? - a morena franziu o sobrolho - Do que está a falar? Aliás, o que quer de mim?
O Capitão Gancho balançou o gancho, onde deveria estar a sua mão esquerda. Os olhos azuis-marinhos idênticos aos do filho fitaram-na, com um brilho ganancioso, os dentes arreganhados.
- O que eu sempre quis. O que o meu querido filho se recusou a dar-me.
Desviou uma das madeixas do cabelo de Rhiara, que lhe caíra para o rosto. A superfície gelada do metal do gancho contra a sua pele quente fê-la arrepiar-se, os lábios prensados numa expressão de medo contido.
- A tua Coroa.
- Onde é que ela está?!
A rapariga que adentrou o estabelecimento mal olhou para quem lá se encontrava, os olhos castanhos fixos na pirata sentada ao balcão. Esta não a encarou, ocupada demais a passar uma compressa na nuca de um dos seus melhores amigos. Ergueu os olhos, lentamente.
Os olhos de Audrey encheram-se de lágrimas.
- Uma, por favor... Onde está a Rhiara?
- Foi levada. - respondeu Harry, fechando os olhos pela dor que sentia quando Uma lhe tocava na ferida - Nós vamos procurá-la...
- Levada? Por quem?
- Audrey, tem calma...
- Não me peças para ter calma quando a minha melhor amiga foi raptada, Uma!
As duas jovens fitaram-se. Uma soltou um suspiro, pousando a compressa no balcão do restaurante da sua mãe para caminhar até Audrey, cujo corpo tremia. Os braços da capitã puxaram-na para um abraço e a princesa sentiu o rosto corar, surpreendida pelo gesto.
- Nós sabemos quem a levou. Vamos buscá-la não tarda, está bem? É a Rhiara. - Uma afastou-se, esboçando um sorriso de lado - Ela sabe muito bem defender-se.
- Como soubeste o que aconteceu? - perguntou Harry, de sobrolho franzido.
- A explosão foi ouvida em Auradon. A doca está cheia de jornalistas neste momento e eu vim para cá assim que vi. Umas crianças ajudaram-me a encontrar o restaurante de Úrsula, foi o sítio onde me lembrei que poderiam estar... - explicou Audrey, torcendo as mãos- Consegui convencer o Rei Eugene de que Rhiara não estava no Jolly Roger quando a explosão aconteceu mas... Sinceramente, ele não está bem. Continua a não haver sinais da Rainha Rapunzel...
- A Rhiara sabe onde ela está. - afirmou Harry, pondo-se de pé - Parece ter algum plano para a salvar.
- Primeiro temos de salvar a Rhia.
Uma abanou a cabeça de imediato.
- "Nós " não te inclui a ti, Audrey.
- Eu vou salvar a minha melhor amiga.
- A tua melhor amiga matava-nos se te armasses em heroína.
- Eu não quero saber.
- Mas eu quero.
- Audrey...
- Uma...
- Eu vou sozinho.
A voz de Harry fez-se ouvir, com uma calma assustadora. As duas viraram-se para o encarar, ambas com uma cara de poucos amigos, os corpos ainda demasiado próximos. Pigarreando, Audrey afastou-se, franzindo o sobrolho ao ver o rapaz pôr-se de pé, verificando a espada na sua bainha e pousando o seu chapéu de pirata na cabeça.
- Não vais sozinho. - negou Uma, estalando a língua- Está fora de questão.
- A culpa da Rhiara estar nesta situação é minha. É da minha responsabilidade resolver.
- Tua? - Audrey trocou um olhar com Uma, que baixou a cabeça, sabendo do que se tratava - Como assim? Por acaso não tens algum plano maquiavélico de ir salvar a Rhiara para que ela te perdoe, pois não? Do género, pagaste a alguém para a raptar e agora vais salvá-la, qual cavaleiro no cavalo branco?
- Não sou assim tão inteligente. - respondeu Harry, sarcástico - Mas obrigado por pensares que sim.
- Não era um elogio.
- Harry. - chamou Uma, séria - Conta-lhe.
A filha da Bela Adormecida olhou para ambos, alternadamente, a expressão confusa.
- Contar-me o quê?
Uma prensou os lábios.
- A verdadeira razão porque o Harry fugiu da Rhiara.
- Se o senhor quer a minha coroa, eu dou-lhe a minha coroa. Não faço questão nenhuma de a ter.
Rhiara encarava o pirata à sua frente com atenção, os olhos esmeralda não deixando transparecer qualquer emoção, mesmo que por dentro o seu coração batesse desenfreado. Sentia pontadas de dor no corpo todo, ciente de que não lhe pertenciam. O Capitão Gancho fizera algo com os seus amigos, sabia disso. Estava consciente das fisgadas de dor que Harry sentia na cabeça. O corpo moído de Uma. O pé latejante de Gil.
Se mostrasse a sua preocupação, estaria a dar a Gancho o que ele queria. Quando a raptara, pensara que Rhiara era apenas uma princesa indefesa, não aquela rapariga excêntrica e despreocupada que na realidade era. Sentira falta de ser ela própria, pensou, esboçando um sorriso alegre ao ver a expressão confusa de James Hook.
- Assim? De mão beijada?
- Claro. Com uma condição. - Rhiara encolheu os ombros - Nunca mais me chateia a cabeça, nem a mim nem aos meus. A minha coroa vale ouro suficiente para ser rico para o resto da vida. A questão é... - inclinou-se ligeiramente, fazendo beicinho - O senhor parece-me ser demasiado ganancioso para fazer este tipo de acordo então... Não posso confiar em si. Vai sempre querer mais e mais e mais e nunca estará satisfeito. Posso dar-lhe a minha coroa mas isso não chega, pois não?
O Capitão Gancho esboçou um sorriso cruel.
- Foi exatamente isso que o meu filho pensou. Por isso ele deixou a sua princesinha para trás. Que romântico!
A filha da Rapunzel franziu o sobrolho, confusa.
- Não sei do que está a falar.
- Oh minha querida, não vês? Ele está tão apaixonado por ti que se tornou um perigo. - James soltou uma risada maliciosa - Há uns meses atrás, quando a barreira caiu, eu soube que o meu filho estava com uma princesa. O povo estava admirado com a ousadia de uma das suas princesas, a mais misteriosa, aquela que esteve escondida a vida toda. Eu pensei logo na brilhante ideia que o meu filho tivera: estar com uma princesa, roubar-lhe o tesouro, viver às custas da realeza... Parecia-me excelente.
- Mas o Harry não é assim. - defendeu Rhiara, o coração querendo saltar-lhe da boca ao pensar no seu pirata .
- Ah sim, ele é... Era. Antes de te conhecer. Quando fui ter com ele, estava mudado, apaixonado, com o coração no sítio certo. - o Capitão bufou, com desprezo - Patético. Ia propor-lhe uma aliança, de pai para filho...
- Ele recusou. - interrompeu a princesa, sem se conter - Não foi?
- Ele recusou... E aceitou. - o pirata riu novamente - Eu ameacei a sua princesa, fiz questão de garantir que te matava se ele não fizesse o que eu queria e ele concordou em trabalhar para mim. Roubava algumas jóias, umas tapeçarias, ouro dos bolsos dos ricos com quem se cruzava... Até desaparecer do mapa. Um dia, Harry não veio ao meu encontro como combinado. Tinha-lhe pedido para parar de roubar coisas pequenas e ir ao encontro daquilo que realmente me importava: a coroa da princesa, uma das jóias mais belas de todos os reinos. Assumo que ele se negou a fazê-lo e por isso nunca mais apareceu.
- Eu... Eu não entendo... - sussurrou Rhiara, à beira das lágrimas.
James Hook agachou-se à sua frente. A ponta do gancho espetou-se na garganta de Rhiara, que engoliu em seco, sentindo a pele ferida quando o metal a perfurou. O Capitão Gancho sorriu, observando um fio de sangue escuro escorrer pela pele morena da jovem à sua frente, apreciando o medo nos olhos esmeralda tão inocentes fixos em si.
- Harry ganhou algo que nós vilões desprezamos: uma consciência. Noutra altura, ele roubaria sem problemas mas agora, estar a roubar a pessoa que gosta custava-lhe demais, pensou que estivesse a trair a tua confiança. - o Capitão encolheu os ombros- Sabendo que eu mataria a sua princesa se ele não cumprisse a sua parte do acordo...
- Ele deixou-me... Para me proteger. - percebeu Rhiara, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto em meio a soluços fortes - O Harry fugiu de mim porque não aguentou mais. Ele não queria... Oh céus. Ele não queria pôr-me em perigo nem estar a roubar-me... Então ele foi-se. Ele abdicou de mim... Por mim.
O pai de Harry Hook sorriu.
- Isso é amor, princesa Rhiara.
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