Capítulo 6
Ilha dos Perdidos, 10h.
- Então, o que é que estamos aqui a fazer? - questionou Uma, erguendo a cabeça para encarar a amiga.
- Sim, ainda não nos disseste qual era a missão! - exclamou Gil, acenando alegremente - Olha o Smee. Olá, Mr. Smee!
- Alguma coisa maluca, com tanto secretismo.
Rhiara rangeu os dentes. Aquele último comentário era nada mais nada menos uma das poucas tentativas de pô-la a falar com ele. Imaginava o sorriso provocante no rosto de Harry Hook ao ver o rosto corar de irritação, os punhos fechados e a língua entre os dentes para não lhe responder. A antiga Rhiara teria lançado uma resposta mordaz assim que o pirata tivesse aberto a boca, sorrindo logo a seguir e rindo da troca de galhardetes entre eles. A nova Rhiara tinha de ser mais ponderada, educada, contida. Mordeu a parte interna da bochecha e virou-se para Uma, respondendo à pergunta que ela lhe fizera e ignorando Harry por completo:
- Preciso encontrar o Hades e falar com ele. Há uns meses atrás a Mal contou-me que ele ainda está na ilha... Talvez me possas ajudar a encontrá-lo?
- Podemos tentar falar com o Dr. Facilier. - sugeriu Gil, olhando para as mãos como se não tivesse dito nada- Eu tenho as mãos muito grandes, não tenho?
- O Gil tem razão. - retorquiu Uma, olhando para o amigo com admiração - Bem lembrado. Foi Celia que levou Mal ao covil do Hades no ano passado. Nenhum de nós foi com ela então nenhum de nós sabe onde fica... Talvez a Célia esteja com o pai ou então lhe tenha dito alguma coisa. Enquanto isso... Harry. - encarou o pirata, que ergueu uma sobrancelha, expectante - Tu e o Gil vão perguntar nas ruas. Alguém pode saber de alguma coisa. Encontramos-nos aqui numa hora e vemos o que fazer a seguir.
- De certeza? - perguntou Harry, olhando para Rhiara - Talvez seja melhor ficarmos todos juntos...
- Eu concordo com a Uma. - respondeu a princesa, rapidamente - Separados é melhor.
Harry prensou os lábios, vendo Rhiara abraçar Gil e ignorá-lo propositadamente. Sentia falta da sua princesa. Sentia falta de ouvir a sua risada, de a ver dançar e cantarolar sozinha, de ver os olhos esmeralda brilharem quando ele a fazia sorrir.
Ele podia ver Rhiara morder a parte interna da bochecha, um tique que tinha quando estava irritada. Num gesto ousado, puxou-lhe o pulso, a mão livre erguendo-lhe o queixo suavemente. Pelo canto do olho, viu Uma abanar a cabeça, puxando Gil para perto de si como se sempre tivesse querido falar com ele e não apenas para dar alguma privacidade ao ex-casal.
- Por favor, tem cuidado. - pediu à princesa, cujos olhos esmeralda o encaravam, esbugalhados pela surpresa.
- O que... Eu tenho sempre cuidado! - guinchou, empurrando-o bruscamente - Não sou nenhuma donzela em perigo, Harry Hook.
- Sei bem disso. - Harry retirou o chapéu de pirata da cabeça, numa vénia floreada - Mas isso não me impede de querer proteger a donzela mais bela de todos os reinos... Pois não?
- Isso já não funciona comigo. - murmurou Rhiara, ruborizada - Sai da minha frente e faz o que te pedi para fazer.
- Está bem. - Harry endireitou-se, estalando a língua- Mas o que eu ganho em troca?
Rhiara engasgou-se, fitando-o com incredulidade.
- Desculpa?!
- Ele está a abusar da sorte. - murmurou Uma, cruzando os braços.
- Ela vai matá-lo. - respondeu Gil, coçando o topo da cabeça - É pena, eu gosto do Harry vivo, não gosto dele morto.
- O que eu ganho em troca de te ajudar, princesa? - questionou Harry, aproximando-se de Rhiara.
O olhar dela não vacilou. Claro que ela não iria vacilar. Rhiara era a jovem mais corajosa que ele conhecera. Sem qualquer surpresa da sua parte, sentiu a picada no seu abdómen à medida que ela erguia a sua espada e a pressionava contra o seu corpo, os olhos esmeralda cortando mais que qualquer lâmina, um sorriso contido no rosto.
- Não me testes, Harry. - rosnou a morena, pressionando a espada mais um pouco - Queres ganhar alguma coisa em troca por me ajudares a salvar a minha mãe? Ouro. Eu pago o que quiseres para me ajudares. Era isso que querias ouvir?
Rhiara hesitou ao vê-lo empalidecer, recuando um passo. Parecia genuinamente atingido, os olhos azuis encarando-a sem a ver, as mãos erguendo-se no ar num gesto de rendição trémulo. Harry gaguejou, a respiração entrecortada, a mágoa bem presente na sua expressão.
- Eu... Eu estava a tentar... É isso que pensas de mim? - ele perguntou, baixinho - Que eu quero o teu dinheiro? Que eu quero... algo de ti, para além de...
- Harry, eu pensei...
- Eu estava a brincar. A meter-me contigo, a tentar ter alguma reação da tua parte. Eu não... Nunca... - Harry baixou os braços, os punhos cerrados junto ao corpo - Vou ajudar-te nesta missão mas depois disso saio do teu caminho. - estalou a língua, o sorriso louco que usava para disfarçar o que sentia tomando conta do seu rosto - Não queres um pirata ganancioso perto do teu querido reino, não é?
- Não foi isso que quis dizer! Harry, espera!
Ele não esperou. Com um floreado, acenou na direção de Uma e seguiu para a rua da esquerda, com Gil a juntar-se apressadamente. Rhiara bufou, embainhando a espada com irritação, sentindo os olhos da capitã encararem-na.
- Não comentes. - rosnou a princesa de Corona, seguindo para o lado oposto ao que os outros piratas tinham tomado - Vamos encontrar o Facilier. Quanto mais depressa resolvermos isto, mais depressa me livro deste pirata idiota.
- É mesmo isso que tu queres? - perguntou Uma, a sobrancelha erguida.
Rhiara não respondeu.
Meia hora depois, a princesa e a pirata adentraram o Salão de Jogos de Facilier. Rhiara bufava, resmungando sozinha sobre como a Ilha parecia mais pequena vista de fora e Uma ria, achando as reclamações da amiga divertidas. As duas olharam em volta, deparando-se com um renovado e muito mais movimentado salão. Havia novos jogos, novas pessoas, mais empregados... Um sorriso formou-se no rosto de Rhiara. As coisas na Ilha dos Perdidos tinham mudado bastante e não podia deixar de se sentir feliz por ter feito parte daquela mudança.
- Ali. - apontou Um, fazendo a princesa virar-se e caminhar na direção que ela lhe mostrara.
- Bom dia, Dr. Facilier. - cumprimentou Rhiara, educada.
O Mestre do Vodoo virou-se lentamente na direção dela, as sobrancelhas erguidas. Trazia um copo na mão e agitava-o lentamente, os cubos de gelo a boiarem no líquido que Rhiara quase podia apostar que era whisky. O salão de jogos vibrava de pessoas, adultos e jovens, as gargalhadas efusivas e concentração silenciosa caraterizando o lugar. O pai de Celia esboçou um sorriso, a pele negra refletindo as luzes arroxeadas que faziam parte da decoração, as íris escuras fitando a princesa de Corona com curiosidade.
- Princesa Rhiara. Seja bem-vinda mais uma vez ao meu humilde estabelecimento. - cumprimentou Facilier, fazendo uma vénia - Em que posso ajudar a futura Rainha de Corona?
Rainha. A palavra soou-lhe amarga, deixando-a extremamente desconfortável. Cerrou os punhos, colocando as mãos atrás das costas e ergueu o queixo, abafando os seus sentimentos.
- Eu preciso de falar com Hades. - disse Rhiara, sorrindo suavemente - Mas não sei onde fica o seu covil ou casa ou seja lá o que for. No ano passado, foi a sua filha que nos guiou...
- Terceira rua ao lado da Praça do Tormento. - respondeu o mais velho, olhando para Uma - A filha de Úrsula sabe onde fica, não sabes minha querida?
Uma assentiu, estalando a língua.
- O meu nome é Uma, senhor Facilier. Não é "minha querida".
- Perdoe a minha audácia, minha querida. - retorquiu Facilier, ignorando o olhar de irritação da pirata - No canto, do lado esquerdo, está um grande portão com um esqueleto a decorar. Hades tem um péssimo gosto, na minha opinião. Basta entrares, hoje em dia o Deus do Submundo está ligeiramente mais amigável e menos... rabugento que antigamente.
- Muito obrigada, Dr. Facilier. - agradeceu Rhiara, permitindo que o vilão lhe beijasse a palma da mão, numa reverência.
- Permite-me questionar se a sua visita a Hades está relacionada com o desaparecimento da sua mãe?
Rhiara empalideceu.
- Como...
- Os rumores correm depressa aqui na Ilha. - respondeu Facilier, vendo o choque da princesa - Nós, os vilões, sabemos que um rapto é mais difícil de resolver do que o Rei de Corona quer transmitir aos seus súbditos.
A princesa prensou os lábios, sentindo o olhar atento de Uma sobre si. Não contara a ninguém as suas verdadeiras intenções no que à sua missão dizia respeito, nem a Uma, nem a Audrey... Ninguém. Se a sua expressão a denunciasse, Uma facilmente montaria o puzzle na sua cabeça perspicaz e saberia exatamente o que Rhiara pretendia de Hades. Mais uma vez, sentiu a sua personalidade ser empurrada para bem longe, substituída por aquela pessoa fria e apática cujo sorriso contido que dirigiu a Facilier era mais falso do que o pior vilão.
- Não. Nada tem a ver e agradecia-lhe que mantivesse a descrição quanto a esta visita. - colocou a mão no bolso, retirando uma pequena bolsa de camurça das calças que usava - Um pequeno bónus pela sua ajuda. Muito obrigada mais uma vez, Dr. Facilier.
O homem não respondeu, os olhos arregalando-se ao ver as moedas de ouro que caíram na palma da sua mão. Uma cerrou os olhos, observando Rhiara sem qualquer expressão. A princesa recusou-se a encará-la. Queria gritar. Queria sair dali a correr e berrar para quem a quisesse ouvir. Queria despir a máscara de princesa e ser novamente Anna, a filha de Alice, que chegara a Auradon sem conhecer nada nem ninguém e que conquistara o coração de todos pela sua genuidade e uma pitada de excentricidade que lhe era tão caraterística. Queria arrancar o capuz vermelho que trazia sobre a sua mais recente roupa de vilã, desenhada por Evie, e ir experimentar cada um dos jogos que lhe zumbiam ao ouvido com as suas músicas, sons, gargalhadas associadas...
- Vamos. - foi tudo o que fez, dirigindo-se a Uma sem a olhar.
- Majestade.
O tom de voz de Facilier fez a jovem estacar, sentindo a aproximação do antigo vilão arrepiar-lhe a pele. O médium esboçou um sorriso de lado, as mãos agitando-se num floreado enquanto falava.
- A princesa pode comprar o meu silêncio... Mas isso de nada adiantará. Eu sei um truque ou outro e tenho uma ligação muito... especial com o Submundo. - estalou a língua, fazendo uma pausa dramática - Os mortos falam entre si. Um homem como eu apenas tem de ser excelente em escutar.
- Não sei o que o senhor ouviu mas...
- A mulher que enfrenta é bem mais obscura do que imagina, Majestade. - interrompeu Facilier, os olhos escuros analisando o rosto pálido de Rhiara - É a minha única rival de peso. Sabe como ela é conhecida?
Rhiara não respondeu. Sentia o corpo tremer, a dormência da mãe consumi-la, o coração acelerar para a combater. Mentalmente, recitou as palavras que sabia de cor, o brilho enfraquecido na sua pele ajudando-a a curar-se a si mesma. A mão de Uma pousou no seu ombro, o corpo atrás do seu para mostrar-lhe que estava ali, que ela não estava sozinha, não tão sozinha como acreditava.
- A Bruxa da Lua. E acredite em mim... - Facilier sorriu, abanando a cabeça - A Princesa do Sol não está à altura da escuridão que ela carrega.
- O que raio aquele homem andou a beber?! Ele era bem menos assustador na última vez que o vimos! E que conversa era aquela?!
Rhiara caminhava apressadamente, os olhos esmeralda fixos no chão. As palavras de Uma soavam distantes, todo o seu corpo parecia distante, apenas a mente corria velozmente, desorganizada, depressa demais, assustada demais.
- O que se passa comigo? - questionou para si mesma.
A Bruxa da Lua.
A Bruxa da Lua.
Gwendolyn.
"Os mortos falam... Eu limito-me apenas a escutar."
Um corpo chocou com o seu, quase derrubando-a, não fosse pelo aperto firme e a mão que a segurou pela cintura. Ela sabia quem era. Não precisava sequer de erguer a cabeça, de ver o par de olhos azuis encará-la, o rosto com o esboço de um sorriso travesso. Reconhecia o seu odor a maresia ainda com vestígios de álcool. Reconhecia a voz que a provocava, como se nada tivesse acontecido, como se estivesse tudo bem dizer-lhe:
- Temos de parar de nos encontrar assim, linda dama.
A morena revirou os olhos, sem conseguir conter o sorriso. Fitaram-se, como se o mundo não existisse, como se o tempo tivesse parado.
- Nós já sabemos onde Hades mora. - sussurrou Rhiara, sentindo-se estúpida pela única frase que fora capaz de pensar em dizer quando estava nos braços do rapaz que gostava e que detestava ao mesmo tempo.
- Nós não. - respondeu Harry Hook, encolhendo os ombros - Mas... - apontou para Gil, que ergueu as mãos - Trouxemos comida. Também é importante, não acham?
O filho de Gastão esboçou um sorriso muito satisfeito.
- Quem quer uma sandwich?
Rhiara não pode deixar de rir, sem ver o olhar intenso de Harry pousado em si.
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