Capítulo 5
O quarto cheirava a chá de camomila e torradas. O sol adentrava suavemente pela janela, os pássaros cantavam, a brisa de Inverno soprava para arrepiar a pele de Rhiara, cujas mãos puxaram mais para cima os lençóis da sua cama. Torceu o nariz, numa careta de aborrecimento que nenhum dos presentes quis saber... a não ser ele. A única pessoa que estava ali e que não queria ver nem pintada de ouro.
Todos os seus amigos encontravam-se à sua frente, cada um falando por cima do outro, cada um passando um sermão pior do que o outro. Pouco se importavam com o facto de Rhiara estar na cama, debilitada, a tentar comer as torradas que uma das empregadas preparara para si juntamente com o chá quente que fumegava no seu tabuleiro. Estavam para lá de irritados, com razão. Apenas Harry Hook se encontrava calado, os braços cruzados, as costas encostadas na ombreira da porta.
Rhiara tentava não olhar para ele... A custo. Era impossível ignorar o olhar azul intenso que ele lhe lançava. Para sua infelicidade, as íris dos olhos de Harry eram exatamente da cor do mar, das ondas límpidas e cristalinas que Rhiara tanto amara velejar, meses antes. Estava mais magro, as roupas amarrotadas, olheiras escuras debaixo dos olhos, lábios gretados. Em resumo, estava num pior estado do que quando o vira pela última vez. Um sorriso discreto surgiu na boca dele, apercebendo-se dos olhares inevitáveis que ela lhe lançava. Rhiara rangeu os dentes, irritada. Com um pigarrear, chamou a atenção de todos, os olhos esmeralda fitando cada um deles com dureza enquanto dizia:
- Agradeço a preocupação mas estou bem. Sei tomar conta de mim...
- Mas deixaste-nos preocupados. - interrompeu Ben, cruzando os braços - Estamos nisto juntos, Rhia.
- Queremos ajudar-te a encontrar a Rainha Rapunzel. - continuou Mal, sentando-se à beira da cama, encolhendo os ombros - Mas não podemos ajudar-te se decidires fazer tudo sozinha. Somos teus amigos, certo?
Rhiara não respondeu. As palavras de Gwendolyn repetiam-se na sua mente, uma e outra vez. Tinha apenas três dias para trazer Gothel de volta... Ou Rapunzel perecia. Por muito que quisesse toda a ajuda do mundo, não podia dizer a Mal ou aos restantes o que tinha de fazer ou o que realmente acontecera a Rapunzel. Os olhos esmeralda desviaram-se dos de Evie, que a encarava com preocupação. A doce filha da Rainha Má certamente iria sentir-se culpada por Rapunzel estar sobre os efeitos da poção que a sua mãe criara, sem necessidade. Para além disso, ressuscitar os mortos era ilegal. Se Ben e Mal soubessem o que Rhiara tinha de fazer, ficariam numa posição muito difícil: defender as leis do seu reino... Ou ajudar a amiga a salvar a mãe?
Não iria pôr ninguém nessa posição. Sentiu o olhar de Audrey sobre si, escrutinando-lhe o rosto, procurando ver por entre a máscara de tranquilidade que colocara. Sentiu o peso do olhar de Harry, que sequer abrira a boca, não se atrevendo a irritá-la. Viu Uma e Gil no canto da sala, este último com o filho de Jafar ao lado, os braços cruzados, a expressão atenta à postura do amigo, que parecia inquieto com o silêncio de Rhiara. A princesa suspirou, ciente de que Gil se preocupava imenso consigo. Todos eles se preocupavam com ela.
- Encontraste-a? - questionou Evie, sentando-se no outro extremo da cama, gentilmente - Gwendolyn?
A filha de Rapunzel abanou a cabeça, negando.
- Não. Não a encontrei.
O sabor agridoce da mentira permaneceu na sua boca, familiar. Evie pousou a mão sobre a sua, o rosto emoldurado pelos longos cabelos azuis, os lábios vermelhos curvados num pequeno sorriso enquanto dizia:
- Vamos encontrá-la e saber se ela tem alguma coisa a ver com o desaparecimento da tua mãe.
- E vamos encontrar a Rapunzel. - assegurou Ben, convicto - Temos a guarda real à procura dela, o teu pai também...
- Nós também podemos ajudar. - ofereceu-se Uma, aproximando-se da cama onde Rhiara se encontrava - Digam-nos o que pudemos fazer e nós cumprimos. - a pirata sorriu, piscando o olho - Os piratas ajudam-se uns aos outros.
Rhiara abanou de imediato a cabeça, sentindo o coração acelerar ao ver Harry endireitar-se.
- Vocês não têm que...
- Nós queremos. Ajudaste-nos a salvar Auradon, lembraste? - perguntou Mal, sorrindo - Agora é a nossa vez.
- Mal. - chamou Ben, o telemóvel na mão, os olhos preocupados fixos na sua Rainha - O meu pai mandou-me mensagem. Há uma confusão na zona Norte de Auradon e somos necessários lá.
Mal arregalou os olhos, virando a cabeça de Ben para Rhiara.
- Mas...
- Vão. Por favor. - pediu Rhiara - Neste momento preciso de descansar, não me sinto bem... Como Ben disse e bem, está toda a gente à procura da minha mãe. Evie, Jay, Carlos, vocês também têm as vossas coisas. Uma, Gil... - parou, evitando olhar para Harry, cujos sobrancelhas se ergueram - Se puderem procurar a minha mãe na Ilha dos Perdidos eu agradecia, vocês conhecem melhor as ruas do que qualquer um. - mentiu, esboçando um sorriso fraco - Não há muito mais que possamos fazer por isso vão tratar dos vossos assuntos, Vossas Majestades.
- Tens a certeza? - perguntou Ben, sentindo-se culpado.
Rhiara assentiu. Olhou para Audrey, a qual não desviara o olhar dela nem por um segundo.
- Audrey, temos de nos focar na coroação. Se não tivermos os preparativos arranjados quando a minha mãe for encontrada, ela com certeza mata-me. - disse a princesa, sentindo um aperto no peito ao pensar em Rapunzel - E-Eu estou bem. Está tudo bem. Só preciso de... Descansar. Preciso de descansar.
O grupo entreolhou-se, murmurando entre si. Apenas Harry permanecia em silêncio e Rhiara sentia o olhar dele sobre si. Queria muito falar com ele, ouvir a sua voz, vê-lo sorrir...
Pigarreou, ignorando a sensação de que o coração lhe iria saltar da boca e despediu-se dos amigos, vendo-os sair enquanto lhe desejavam as melhoras.
O último a sair foi Harry. Os dois encararam-se, em silêncio. Rhiara queria chamá-lo. Harry queria ir ter com ela, abraçá-la, perguntar-lhe se estava bem. Nenhum dos dois fez o que queria.
Ele saiu, deixando Rhiara sozinha com as suas emoções confusas.
Audrey saiu do quarto, apressada. Num movimento rápido, puxou a manga da camisa de Uma para si, empurrando a jovem pela porta mais próxima. Ouviu a voz da pirata a protestar mas ignorou, fechando a porta atrás de si depois de verificar que ninguém tinha dado por elas.
- Se estás a pensar raptar-me, essa não foi a melhor abordagem. - comentou Uma, cruzando os braços - Além do mais, a minha mãe nunca pagaria o meu resgate. Ela adora-me mas não tem o dinheiro que eu valho.
- Preciso de um favor. - respondeu a princesa, de rompante.
- Um favor?
- Sim. Somos amigas, não somos? - Uma ergueu uma sobrancelha, fazendo-a revirar os olhos - Somos alguma coisa, temos uma amiga em comum e é por isso mesmo que aqui estou. - Audrey mordeu o lábio inferior, nervosa - A Rhiara está a esconder alguma coisa.
A pirata inclinou a cabeça, analisando-a. Estavam sozinhas e Audrey tinha-a puxado para o escritório de Ben, enorme como todas as assoalhadas do castelo de Auradon. Aproximou-se da princesa, os olhos achocolatados analisando o rosto perfeito de Audrey, cujas bochechas enrubesceram levemente com a sua aproximação. Uma sorriu, achando graça ao nervosismo da princesa.
- A Rhiara já teve a sua quota de mentiras e acho que já percebeu que é uma péssima mentirosa. Não iria repetir a proeza. - ripostou, abanando a cabeça - Por isso...
- Acredita em mim, conheço a Rhia como a palma da minha mão. Ela está a esconder alguma coisa e tenho quase a certeza que mentiu sobre a filha de Gothel. Se ninguém a impedir, vai sair daqui para fora e fazer o que tem a fazer, provavelmente alguma coisa perigosa e irresponsável.
Uma ergueu uma sobrancelha.
- Queres que a vigie?
Audrey abanou a cabeça, mordendo o lábio inferior, um tique nervoso que tinha desde miúda.
- Quero que vás com ela.
- Não a queres impedir? Se dizes que vai fazer alguma coisa perigosa...
- Ninguém a consegue impedir. Quando aquela teimosa mete uma coisa na cabeça... - Audrey abanou a cabeça, convicta - Sou a melhor amiga dela, é meu dever apoiá-la. Então é o que vou fazer mas... Se me oferecer para ir com ela, com certeza vai recusar. Por isso quero te pedir que tu e os piratas a acompanhem.
A filha de Úrsula pestanejou, pensativa. Por mais amiga que fosse de Rhiara, não queria meter-se em sarilhos. Para além disso, havia a questão de Harry e da relação entre eles... Os olhos de Audrey fitaram-na, implorando em silêncio. Suspirou, derrotada.
- Está bem, eu vou com a Rhiara onde ela for. Não te preocupes, vai ser um excelente passeio entre dois piratas e duas pessoas que não se querem ver à frente. - ironizou, revirando os olhos só de pensar.
Audrey esboçou um sorriso de agradecimento. Com um acenar de cabeça, Uma afastou-se, virando as costas e encaminhando-se para a porta.
- Uma.
A voz da princesa fez a dona daquele nome virar-se, analisando-a com curiosidade. Os olhos de Audrey encaravam o chão, turbulentos. Lentamente, ergueu a cabeça, encarando a filha de Úrsula. Essa era uma das características que Uma se descobriu admirar em Audrey: durante toda a conversa entre elas, mesmo num momento que parecia delicado para ela, Audrey fitava-a sempre diretamente nos olhos. Por muita vergonha ou embaraço que sentisse, lá estava ela, de queixo erguido e olhos-avelã fixos nos seus.
- No passado, tentaste magoar... pessoas. Ben e Mal, principalmente. Isso não... Não te atormenta?
A pergunta apanhou Uma desprevenida. Pensou na resposta, baixando a cabeça. Por fim, negou, dizendo:
- Não. Nem me arrependo. Se conhecesse Ben como conheço agora, talvez não o tivesse feito mas para alguma coisa serviu, não foi? Desde que raptei Ben que as coisas em Auradon mudaram. Se eu não tivesse sido a vilã naquele momento, talvez a Ilha dos Perdidos continuasse na mesma: um lugar isolado, cheio de crianças inocentes e abandonadas pelos bonzinhos. - Uma abanou a cabeça, as tranças azuis do seu cabelo acompanhando-lhe o movimento - Não me arrependo e durmo de consciência tranquila. Fiz o que tinha a fazer. Lutei pelo que acredito e defendi o meu povo.
A filha da Bela Adormecida assentiu, inquieta. Engoliu em seco, sentindo os olhos marejarem, as emoções à flor da pele. Compadecida, Uma aproximou-se dela, os olhos cor de chocolate analisando-a pacientemente. Por fim, Audrey suspirou, abraçando-se a si mesma.
- Gostava de me sentir assim. Gostava de sentir que tive um motivo válido para querer magoar as pessoas que gosto... Mas foi puro egoísmo. - abanou a cabeça, pesarosa - Quase arruinei Auradon inteiro por um punhado de ilusões que ninguém me forçou a acreditar.
- Não concordo. - retorquiu Uma, vendo os olhos de Audrey se arregalarem, surpreendidos - Cometeste um erro... Vários, na verdade. - encolheu os ombros, rindo perante a careta da outra - Temos de ser honestos, foste terrível. Mas... O que te fizeram também não foi justo. Mal chegou aqui e roubou-te o namorado, os sonhos, a reputação... Tanto ela como Ben se esqueceram do que as suas ações poderiam provocar no resto do mundo. É esse um dos defeitos de Mal: raramente pesa as consequências das suas decisões. Por isso, apesar de tudo, ninguém te pode realmente culpar por teres ficado revoltada com toda a situação, pois não?
- Eu me culpo. - confessou Audrey, baixinho - Principalmente... Pelo que fiz a Rhia.
- A Rhiara já te perdoou. Todos já te perdoaram, Audrey. - a pirata pousou a mão no ombro da princesa, cujos olhos a encararam, brilhantes de choro - Talvez esteja na altura de tu também te perdoares.
As duas encararam-se, em silêncio. A luz do dia adentrava pelas janelas, atingindo o rosto da filha de Aurora. Uma engoliu em seco, apercebendo-se da profundidade dos olhos de Audrey, que sempre a fitavam tão diretamente. Para uma princesa que se apresentava como fútil e frágil, tinha um olhar intenso e uma ferocidade que Uma não contava encontrar nela. Afastou-se, sentindo a pele da sua mão queimar pelo contacto com o corpo da princesa.
- O-Obrigada. - gaguejou Audrey, atrapalhada - Vou... Vou ter com a Rhiara.
E saiu dali, deixando Uma sozinha com os seus próprios pensamentos.
Rhiara encarou as ruas de Auradon, as pessoas parecendo tão pequenas ao serem vistas àquela distância. Mal e Ben tinham-na colocado no quarto onde Audrey estivera, um ano antes, quando o cetro de Maléfica quase a matara. Recordar a palidez da melhor amiga, a sensação de estar a perdê-la... Abanou a cabeça, afastando aqueles pensamentos para longe. Questionou-se como se sentiria Audrey, já que agora era Rhiara que desfalecia, lentamente. A ligação com Rapunzel era ainda mais forte do que a que tinha com Audrey. Sentia a dormência da mãe, a sua alma lentamente a ceder às malícias da poção, o corpo mole e fraco. Não sabia o que aconteceria se falhasse. Se Rapunzel adormecesse para sempre, iria com ela? Seria a Flor Dourada cruel a esse ponto?
Ouviu a porta abrir e fechar, tirando-a do seu torpor. Virando-se, deu de caras com o rosto rosado de Audrey, que parecia confusa. A filha da Bela Adormecida pestanejou fortemente, os olhos cor de avelã procurando os verde-esmeralda da melhor amiga. Mordeu o lábio inferior, caminhando a passos largos na direção de Rhiara, que cruzou os braços, tentando disfarçar as suas inquietações.
- Sei que há alguma coisa que não nos contaste. - afirmou Audrey, sem rodeios - E sei que vais fugir daqui para fora não tarda. Eu vou contigo.
- Não. - Rhiara abanou a cabeça, apertando a manta que cobria os seus ombros, sentindo-se enregelada - Eu preciso de ti aqui. Preciso que tomes conta do meu pai, mantenhas o reino em ordem, que organizes a coroação... E que me cubras. Inventa uma história qualquer...
- Eu sou péssima a mentir!
- Mas és boa a inventar histórias, ou todas as histórias que me contavas quando éramos crianças eram verdadeiras? - questionou a filha de Rapunzel, divertida - Eu confio em ti, sei que és a pessoa certa para...
- Vais-me dizer o que se passa?
Os olhos esmeralda de Rhiara encararam os da melhor amiga, pesarosos.
- Audrey...
- Está bem, está bem, não vou insistir! Mas não te deixo ires sozinha. - Audrey ergueu a mão, o dedo indicador apontado ao nariz de Rhiara, impedindo-a de ripostar - É a minha condição. Eu cubro-te, faço o que tu quiseres... mas levas os piratas contigo.
Rhiara engasgou-se, horrorizada.
- Elouqueceste.
- Rhia, o que quer que vás fazer envolve a Ilha dos Perdidos, mil perigos e tu arriscares a tua vida para salvar a tua mãe. Acertei? - Rhiara baixou os olhos, sem responder - Então pronto! Sabes perfeitamente que eles te conseguem proteger e ajudar, mesmo o Harry...
- Eu não o quero comigo.
- Eu sei que ele te magoou. - disse Audrey, pegando-lhe nas mãos - Mas também sei que tem aptidões que podem ser muito úteis no que quer que pretendas fazer. Os três têm e Uma já se disponibilizou a ajudar-te. - um leve rubor tomou conta das bochechas de Audrey - Confio nela para te proteger. É a única forma que te deixo ir fazer o que quer que vás fazer que eu não vou saber o que é...
- Está bem.
A filha de Rapunzel assentiu, contrariada. Tinha de admitir que a ajuda dos piratas era necessária. Os três conheciam a ilha melhor que ninguém. Gil tinha a força bruta, Uma a coerência de uma líder e Harry... Harry era um excelente engodo, caso tivessem que lançar alguém ao mar para ser comido por tubarões.
Corou, horrorizada com os seus pensamentos. No seu peito, sentia o coração acelerado, atraiçoando-a. As saudades do pirata eram muitas e teria de aprender a disfarça-las.
- Isto não é nenhum plano para nos juntares, pois não? - perguntou a Audrey, desconfiada - A mim e ao Harry?
- Claro que não! Estou preocupada com a tua vida!
Mas piscou o olho à melhor amiga, fazendo Rhiara sorrir, divertida.
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